Um dia, ainda na faculdade, uma amiga me emprestou “A Paixão Segundo GH” citando, segundo ela, a própria Clarice Lispector: “este é um livro para pessoas de alma formada”. “E é tão, tão difícil”, acrescentou. Minha alma já mirrada ficou apreensiva. Peguei o livro hesitante, com a frouxa determinação de chegar até o final, e não cheguei.
Resignado, fui obrigado a devolvê-lo confessando minha total inexperiência e, sobretudo, minha alma malformada, meu raquitismo existencial. Fui então aconselhado a comprar o livro e deixá-lo no meu quarto sempre à vista, na expectativa de um dia, por milagre, engolir a barata até a última substância, conquistando, assim, um lugar aos céus no paraíso das pessoas que “entendiam”.
Depois, já passando bem dos 30, numa nova tentativa, mas com a mesma vaidade, amarguei novamente o fracassado.
Engano total. Hoje sei que a questão é exatamente não entender. Não entender nada, pelo menos no sentido convencional, ou seja: analisar, esquematizar, classificar, explicar, reduzir a uma moral, a um sentido lógico qualquer. Tem sido uma libertação.
Nesta semana li na Revista da Cultura uma entrevista com o biográfo da Clarice, Benjamim Moser, que concluiu, depois de analisar os sofrimentos da escritora e suas “brigas” com Deus, o seguinte:
“Em ‘A Paixão segundo G.H.’, por exemplo, [Clarice] está querendo se reunir a esse Deus que acha horroroso. O símbolo de Deus é a matéria da barata”.
Tudo bem, eu sei que a biografia da Clarice é primorosa e eu não menosprezo nem questiono tal conclusão, muito pelo contrário, mesmo porque, na maioria das vezes, tudo o que se quer é alguém que nos ajude a desatar os pensamentos. Mas não posso deixar de manifestar aqui minha alegria quando prescindo de tais facilidades, já que o grande impacto do livro, e de tantas outras obras semelhantes, é exatamente fazer o leitor entregar-se ao mistério, ao abismo que se abre.
Como as mitológicas sereias, mulheres-peixe cujo canto doce atrairiam os tripulantes dos navios para colidirem com os rochedos e afundarem em regiões abissais, a palavra em Clarice é voragem, é o próprio abismo, a tormenta que nos arrasta às profundezas, à perplexidade diante de si, diante da vida.
Ler Clarice é entrar numa espécie de devaneio, é colocar-se numa outra ordenação que não a da vida prática, mas no domínio do informe, do não conhecido, da suspensão de significado, de um território que se aproxima da morte. Por isso, para enfrentar a sereia e sucumbir ao seu canto sedutor, é preciso coragem, sem a qual a cratera onde mora o verdadeiro entendimento jamais se abrirá.
E quem, em sã consciência, se lançaria ao abismo? Não sei, só sei que a palavra, em Clarice, é o canto da sereia.
Nesta semana li na Revista da Cultura uma entrevista com o biográfo da Clarice, Benjamim Moser, que concluiu, depois de analisar os sofrimentos da escritora e suas “brigas” com Deus, o seguinte:
“Em ‘A Paixão segundo G.H.’, por exemplo, [Clarice] está querendo se reunir a esse Deus que acha horroroso. O símbolo de Deus é a matéria da barata”.
Tudo bem, eu sei que a biografia da Clarice é primorosa e eu não menosprezo nem questiono tal conclusão, muito pelo contrário, mesmo porque, na maioria das vezes, tudo o que se quer é alguém que nos ajude a desatar os pensamentos. Mas não posso deixar de manifestar aqui minha alegria quando prescindo de tais facilidades, já que o grande impacto do livro, e de tantas outras obras semelhantes, é exatamente fazer o leitor entregar-se ao mistério, ao abismo que se abre.
Como as mitológicas sereias, mulheres-peixe cujo canto doce atrairiam os tripulantes dos navios para colidirem com os rochedos e afundarem em regiões abissais, a palavra em Clarice é voragem, é o próprio abismo, a tormenta que nos arrasta às profundezas, à perplexidade diante de si, diante da vida.
Ler Clarice é entrar numa espécie de devaneio, é colocar-se numa outra ordenação que não a da vida prática, mas no domínio do informe, do não conhecido, da suspensão de significado, de um território que se aproxima da morte. Por isso, para enfrentar a sereia e sucumbir ao seu canto sedutor, é preciso coragem, sem a qual a cratera onde mora o verdadeiro entendimento jamais se abrirá.
E quem, em sã consciência, se lançaria ao abismo? Não sei, só sei que a palavra, em Clarice, é o canto da sereia.
A Possíveis Leitores
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C.L.
Lic,
ResponderExcluirEste post me fez lembrar uma frase de Clarice, e a deixo aqui para você:
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada."
Beijo,
Eli
Oi Licurgo
ResponderExcluirRelendo esse post, lembrei de nosso debate no LabHum sobre a Joana/Clarice e são elas próprias (sim creio firmemente que elas são inseparáveis) que nos dão a resposta "Nunca sofra por não ter opiniões em relação a vários assuntos. Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la".
Beijos.
Ventania