terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tudo é Vacilação: Afetos em Contraponto

“[...] Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” [Nélson Rodrigues] [1]


Eu, porém, eternamente iludido com o volume das coisas, invejoso de ainda não ter lido esta ou aquela obra, quase nunca releio, quase nunca revejo, quase sempre fico ansioso pelo próximo da lista, o que é lamentável, eu sei. É que existe no mundo uma pressa difícil de resistir, embora eu esteja devagarzinho me desacelerando para reler dois clássicos da literatura, “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, e “Contraponto”, de Aldous Huxley. Pretendo um dia enfrentá-los num grande embate, na minha suposta, futura, imprevista dissertação de mestrado, que por enquanto não se realizou nem como projeto. Quem sabe então eu consiga vencer, assim como Ulisses na Odisseia [2], o “mar nunca antes vindimado”, o “mar piscoso” das minhas hesitações e incertezas.

O poeta Baudelaire me contou certa vez que devemos sempre escrever poesia, mesmo quando em prosa. Ouvi dizer que Gilles Deleuze, o filósofo francês, dissera que “a partir do momento que você sabe, é inútil escrever”. E é isso mesmo, eu escrevo porque não sei, eu escrevo para tentar entender. Pois é assim que vou “construindo a minha própria beleza” [3], que vou me humanizando, pelo o que há em mim de mais atávico, a linguagem poética. Sinto que é pela escrita, pela palavra que medra, que sou. Antes da palavra nada em mim é e promete. Tudo é vacilação. Minha vida só borbulha mesmo na frase posta.

Já poetizei “Os Demônios” quando escrevi aqui “Tinta Russa”. Agora quero versar sobre “Contraponto” de Aldous Huxley, romance que vivi no semestre passado para o curso “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades”, ministrado pelos professores Dante Gallian e Luis Felipe Pondé. Apenas para localizar, “Contraponto”, publicado em 1928, antecipou o caráter visionário de Aldous Huxley, que em 1932 lançaria “Admirável Mundo Novo”, uma das mais ferozes denuncias contra os aspectos desumanizadores do progresso científico e material. Sinto, no entanto, que “Admirável Mundo Novo”, por ser uma distopia ambientada num tempo muito além do nosso, não traduz com a mesma veracidade que “Contraponto” o mal-estar de nossos dias.

Como o meu objetivo não é fazer crítica literária, mas expor o que em mim provoca a leitura de um livro, de chofre confesso meu afeto, minha paixão, pelo personagem Everard Webley. E essa predileção mexeu especialmente comigo, pois embora eu abomine o autoritarismo fascista de Webley, é justamente ele o cara que se mostra o mais convincente. Mas deixando por enquanto de lado a lógica do amor-bandido, também Mark Rampion e Maurice Spandrell indignaram e exaltaram os meus sentimentos.

“Toda vez que o homem quer ser mais do que simplesmente homem, não se torna melhor, mas um ser inumano”. Sinto que é esse o refrão do livro, repetido inúmeras vezes por Mark Rampion, que dominaria - eu tinha certeza -, as discussões no curso. Mas que nada! Só eu toquei e insisti no nome dele. Só eu o idealizei. Justamente ele que encabeça o discurso contra os ideais utópicos que nos afastam da “vida integral” com a promessa de nos tornarmos perfeitos. Rampion não crê em nada disso, não crê no que possa transcender a existência. Não acredita em Deus, tampouco na perfectibilidade do homem [4]. Não acredita que as ideias de progresso, que a moral, a ciência ou a ideologia política possam nos tirar da condição humana e animal para nos fazer retornar ao Jardim do Éden.

Mas o que mais me intriga em Rampion não é a sua lucidez ácida e prolixa, sua descrença, nem seu romantismo raivoso. É sua determinação em afirmar no homem a sua integralidade. Em não aceitar que a verdade esteja sempre no cérebro e nunca no coração, e vice-versa. O verdadeiro homem civilizado para Rampion é aquele que consegue englobar tudo, harmonizar a razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo. “A barbárie consiste em pender mais para um lado do que para outro. Os civilizados sabem viver com todo o ser”. Rampion considera William Blake, poeta e pintor inglês, o verdadeiro homem civilizado. E acusa Shelley, o grande poeta romântico, de não ter sido humano, mas “um misto de fada e lesma branca”, que “espiritualizava demais o amor”. Rampion admira a “carnalidade”, embora flutue no mundo das ideias numa ânsia pedagógica que ele mesmo sabe inumana. “É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”, brada. “O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam”.

Foi, porém, uma indagação do Pondé que virou a chave da minha leitura. E tantas outras portas se abriram. “Não seria insuportável conviver com Rampion? Ele não é um purista, um chato?”. De fato, o discurso de Rampion é extenso e repetitivo. Sua vida uma grande aula, onde ele é um professor empedernido. Mas se Rampion está humanamente distante de alcançar a perfeição - para a sua alegria e satisfação - ele é coerente e autêntico. Sua acidez não é corrosiva. Sua raiva é quase abstrata na esperança que sutilmente nutre pela humanidade. Seu ateísmo não lhe tira o sentido e o prazer da vida concreta, que apesar de sofrida, é o que lhe resta. “Spandrell se recusa a ser homem”, aponta Rampion. “Não é um homem, mas sim um demônio ou um anjo morto”. Mark Rampion sabe que a humanidade do homem se pulveriza tanto no bem quanto no mal absolutos. E que se não existe a possibilidade da transcendência, que sejamos ao menos éticos e felizes.

E é exatamente na ética que Rampion se distancia de um outro grande personagem, Maurice Spandrell, o “Peter Pan à Dostoiévski”, o “pequeno Nikolai” [5], o cínico dos cínicos, que vacila entre o bem e o mal absolutos e se entrega a uma existência que beira o inumano. A não superação do seu pequeno drama pessoal, a relação mal resolvida com a mãe, a nostalgia de uma vida feliz na infância, o atira definitivamente no abismo. O vazio e a violência em Spandrell se perdem em qualquer entendimento. Ele hesita se acredita ou não acredita em Deus. Hesita se a vida como ela é vale ou não vale a pena. E entrega-se à barbárie. Spandrell é o contraponto do homem integral “rampioniano”, porque ora é demônio, ora é anjo contemplando Deus numa sinfonia de Beethoven. Vivendo nos extremos, Spandrell esvazia sua humanidade e se perde e se mata na falta de ética.

Já Philip Quarles, personagem injustamente declarado frio e calculista, paradoxalmente passa pelo romance sofrendo pela consciência que tem de sua inabilidade emocional. Ele apenas não aprendeu a lidar com seus sentimentos, uma defesa, talvez, pelo fato de ser fisicamente aleijado. Huxley tentou obstinadamente torná-lo “o insensível”, “o racional” do romance, mas parece que essa foi uma criação que se rebelou. Terminamos o romance sensibilizados por ele, comovidos por sua integridade e, sobretudo, solidários com sua falta de jeito em lidar com as coisas do coração.

Numa determinada passagem, Philip Quarles faz uma reflexão sobre as pessoas que são notáveis em determinada esfera da vida, mas desprezíveis em outra. Cita o escritor Liev Tolstói, que em sua visão foi um excepcional romancista, mas detestável nas ideias sobre moral e religião. Uso esse exemplo um tanto tendencioso somente como ponte para me fazer voltar ao tema do amor-bandido, pois assim é Everard Webley, o amável repugnante, o líder dos “Ingleses Livres”, partido político fascista que na trama anseia chegar ao poder. Porque Webley, a despeito de suas posições políticas desprezíveis, é um homem admirável por sua determinação e disciplina. Seguro de si, sempre sabe a direção a tomar. E ele usa todo o seu poder de decisão não somente na política, mas também no seu amor por Elinor, a frágil mulher carente que vive um casamento gelado com o intelectual Philip Quarles. Webley é o homem viril que seduz montado literalmente num cavalo branco, e conquista a mulher. Infelizmente, ou felizmente, dependendo do ponto de vista, se político ou pessoal, a potência de Webley é anulada pelo vazio existencial de Spandrell.

A potência que se aniquila diante do vazio e do tédio. É o que me vem à cabeça quando penso no desfecho da história. Embora Webley seja evidentemente mais um contraponto ao homem ideal imaginado por Rampion - porque aposta todas as fichas no aperfeiçoamento da sociedade pelo viés social e político -, mesmo assim acredito nele como sendo o personagem que mais se aproxima do homem “rampioniano”: Webley está preso à materialidade da terra; a potência e a determinação de sua virilidade parecem indicar harmonia entre razão e instintos; por último, Webley ama e sofre sinceramente por amor.

Mas por que tal potência foi covardemente extirpada? Por que Huxley teria dado a Webley uma alma fascista? Talvez para nos mostrar que não existe o homem perfeito. E que somos vulneráveis na luta entre o bem e o mal. Afinal, isso é o que nos faz humanos.


E não dá para esquecer outro importante desfecho do livro: quem herda o paraíso na terra é a hipocrisia. Pelo menos é isso o que acontece em “Contraponto”. Embora a ambição e a sensualidade em si não sejam reprováveis, é o fingimento e as más intenções que as tornam desprezíveis. Para o personagem herdeiro huxleyano do “reino dos céus”, dinheiro e carnalidade são o que verdadeiramente interessa. Sua bondade é puro fingimento. Burlap é o seu nome, personagem representante de um dos produtos mais bem acabados da tal perfectibilidade, que criou esse homem moderno, o “homem extraordinário”, o “homem de ação”, prático, eficiente, técnico, que sabe ser “espiritual” quando conveniente e usa as emoções para mascarar sua ânsia de conquista e poder. O que importa é cumprir metas. O que importa é vencer. E Burlap venceu.

Em contraponto, e para finalizar, retomo a questão inicial de Nélson Rodrigues. Encontrei outro dia a Sonia, uma querida amiga e companheira de cursos da Casa das Rosas, e lhe mostrei com afã o trecho sobre a experiência fascinante da releitura. Qual foi minha surpresa quando ela me retrucou com um enfático “Não concordo!”. Depois me contou de um palestrante que se dirigiu a alguém na plateia e perguntou: “Você já leu a Odisseia?”. “Não, respondeu o rapaz”. Então o palestrante soltou uma estrondosa e intrigante resposta: “Que inveja eu tenho de você! Porque eu nunca mais vou poder sentir o mesmo entusiasmo, a mesma perplexidade que um dia eu senti quando li pela primeira vez a Odisseia. Parabéns!”.

Mínima culpa: Nada comentei sobre Marjorie e Lucy. Nem sobre Elinor, Beatrice, Mary... É que só agora me dei conta de que nada falei sobre as mulheres em “Contraponto”, embora grite o hedonismo niilista de Lucy e incomode a chatice e o tipo de salvação religiosa encontrada por Marjorie. Mas eu simplesmente me esqueci delas, depois me faltou vontade. Enfim, para o bem ou para o mal, hei de enfrentá-las numa releitura!


Notas:

[1] Assim como a Jacqueline, começo com o mesmo trecho de Nélson Rodrigues que ela abriu “Luz no Pântano”, artigo publicado recentemente no blog do Laboratório de Humanidades. Por ele me dei conta de que “existe entre Dostoiévski e Nélson Rodrigues um laço de família”, que são “almas parentas”, cujos personagens invariavelmente estão no limiar, em regiões abissais. Também me aproximei de um Nélson Rodrigues entregue, arrebatado, que faz tal afirmação sobre o fascínio da releitura. Referências: RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54. SAKAMOTO, Jacqueline. Luz no Pântano. Blog do LabHum. URL: http://labhum.blogspot.com/2010/08/luz-no-pantano.html.

[2] No Laboratório de Humanidades, acabamos de discutir Odisseia. Recomendo uma edição portuguesa primorosa. A clareza e a beleza dos versos fazem da leitura um deleite. Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2003. (Tem na Livraria Cultura).

[3] “Construir a própria beleza” é uma referência ao ideal grego de formação do homem (Paideia), segundo o qual o homem alcançaria a excelência humana por meio da areté - virtude - na medida em que se dedicasse ao belo, ao bom e ao justo, contemplando assim a verdade. Bem, como não estou lá muito seguro dessa definição, nada me resta senão escrever sobre isso. Em breve.

[4] Perfectibilidade do homem: conceito filosófico pelo qual se admite que o homem, por sua própria força e natureza racional, é capaz de alcançar à Perfeição por meio do progresso moral, social, científico e tecnológico. Não se trata do impulso natural que temos de aprimorar continuamente as coisas, mas da presunção humana de se sentir no centro do universo e autossuficiente. Trata-se, portanto, de acreditar que pela educação, pela inteligência, pelo raciocínio lógico e matemático, pelo progresso científico e tecnológico, em suma, pela racionalidade humana, o homem possa de fato dominar tanto as forças externas da natureza quanto o que há de interno e incontrolável nele. Para os perfectibilistas de ontem e de hoje, a Perfeição e a Felicidade são produtos de uma equação que pressupõe a supremacia da Razão sobre a Natureza. A perfectibilidade é a própria base das utopias modernas. Negá-la é desacreditar a autossuficiência do homem, assumindo assim uma atitude profundamente religiosa, ainda que desvinculada de qualquer instituição e/ou sistema doutrinário.

[5] Nikolai Stavróguin, personagem central do livro “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Impressionante por sua complexidade. Flutua no vazio, no tédio, no nada. Indecifrável, intrigante. Cruel, patife, demoníaco. Paradoxalmente atraente.

Bibliografia:

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

Huxley, A. Contraponto. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. 6ª Edição. São Paulo: Globo, 2001.