quinta-feira, 11 de março de 2010

Ivan Ilitch não leu “O Livro dos Prazeres”

“A maior felicidade é quando a pessoa sabe porque é infeliz” (Dostoievski)

“Pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte” (Clarice Lispector)1


Quando li “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” de Clarice Lispector fiquei com o livro a tiracolo por uns seis meses: passava os olhos num trecho qualquer e ainda assim boiava. Pressentia, no entanto, ali uma importância, e a sensação de que uma aprendizagem se insinuava, embora eu não presumisse qual.

Inexperiente, virei “especialista”. Entusiasta, fiz apologia do romance e saí por aí presenteando pessoas, induzindo-as à compra. Dizia que Clarice era isso e aquilo. Que a personagem me comovia. Que sua intensidade. Que sua liberdade. Que sua relação com Ulisses. E que a despeito de tudo, ela aprendera.

Mais de vinte anos depois não me lembro direito da história. Nenhum argumento persistiu, apenas “Ulisses”, porque fiquei sabendo, na época, que esse também era o nome do gato da Clarice. Mas hoje, exatamente quando acabo de ler Tolstói, quando sofro e choro a morte de Ivan Ilitch, soube, enfim, tudo o que aprendera, tudo.

Aprendera a vida. Vida não necessariamente leve, agradável, decente, mas vida humana. Vida vivida não em aparências, em artificialidades, na correção do socialmente aceitável. Tampouco vida chata, deliberada, do tipo intensa. Mas vida errante, rotineira, sofrível, contraditória, para uns até mesmo "indecente", mas plena do sentimento de existência, da certeza que se é assim como uma lamparina acesa, mesmo que rodeada de insetos.


Um mundo fantástico me rodeia e me é. Ouço o canto doido de um passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roída por um verme. E espero a apocalipse orgásmica. Uma chusma dissonante de insetos me rodeia, luz de lamparina acesa que sou (Clarice Lispector).2

Agora sei que Clarice me ensinou a viver a vida, vida que se aproxima da morte. E que Tolstói, me aproximando da morte, me ligou implacavelmente à vida.

Ivan Ilitch não teve a chance de ler Clarice Lispector. Mas todos nós temos a chance de ler “A morte de Ivan Ilitch”: viva!


1. Lóri, personagem de Clarice Lispector em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.


2. Encontrei a citação no livro “Romanceiro de Dona Virgo” de Cláudio Daniel. Não há registro de onde ela foi retirada. Mas com certeza não foi do “Livro dos Prazeres”.