terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tudo é Vacilação: Afetos em Contraponto

“[...] Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” [Nélson Rodrigues] [1]


Eu, porém, eternamente iludido com o volume das coisas, invejoso de ainda não ter lido esta ou aquela obra, quase nunca releio, quase nunca revejo, quase sempre fico ansioso pelo próximo da lista, o que é lamentável, eu sei. É que existe no mundo uma pressa difícil de resistir, embora eu esteja devagarzinho me desacelerando para reler dois clássicos da literatura, “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, e “Contraponto”, de Aldous Huxley. Pretendo um dia enfrentá-los num grande embate, na minha suposta, futura, imprevista dissertação de mestrado, que por enquanto não se realizou nem como projeto. Quem sabe então eu consiga vencer, assim como Ulisses na Odisseia [2], o “mar nunca antes vindimado”, o “mar piscoso” das minhas hesitações e incertezas.

O poeta Baudelaire me contou certa vez que devemos sempre escrever poesia, mesmo quando em prosa. Ouvi dizer que Gilles Deleuze, o filósofo francês, dissera que “a partir do momento que você sabe, é inútil escrever”. E é isso mesmo, eu escrevo porque não sei, eu escrevo para tentar entender. Pois é assim que vou “construindo a minha própria beleza” [3], que vou me humanizando, pelo o que há em mim de mais atávico, a linguagem poética. Sinto que é pela escrita, pela palavra que medra, que sou. Antes da palavra nada em mim é e promete. Tudo é vacilação. Minha vida só borbulha mesmo na frase posta.

Já poetizei “Os Demônios” quando escrevi aqui “Tinta Russa”. Agora quero versar sobre “Contraponto” de Aldous Huxley, romance que vivi no semestre passado para o curso “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades”, ministrado pelos professores Dante Gallian e Luis Felipe Pondé. Apenas para localizar, “Contraponto”, publicado em 1928, antecipou o caráter visionário de Aldous Huxley, que em 1932 lançaria “Admirável Mundo Novo”, uma das mais ferozes denuncias contra os aspectos desumanizadores do progresso científico e material. Sinto, no entanto, que “Admirável Mundo Novo”, por ser uma distopia ambientada num tempo muito além do nosso, não traduz com a mesma veracidade que “Contraponto” o mal-estar de nossos dias.

Como o meu objetivo não é fazer crítica literária, mas expor o que em mim provoca a leitura de um livro, de chofre confesso meu afeto, minha paixão, pelo personagem Everard Webley. E essa predileção mexeu especialmente comigo, pois embora eu abomine o autoritarismo fascista de Webley, é justamente ele o cara que se mostra o mais convincente. Mas deixando por enquanto de lado a lógica do amor-bandido, também Mark Rampion e Maurice Spandrell indignaram e exaltaram os meus sentimentos.

“Toda vez que o homem quer ser mais do que simplesmente homem, não se torna melhor, mas um ser inumano”. Sinto que é esse o refrão do livro, repetido inúmeras vezes por Mark Rampion, que dominaria - eu tinha certeza -, as discussões no curso. Mas que nada! Só eu toquei e insisti no nome dele. Só eu o idealizei. Justamente ele que encabeça o discurso contra os ideais utópicos que nos afastam da “vida integral” com a promessa de nos tornarmos perfeitos. Rampion não crê em nada disso, não crê no que possa transcender a existência. Não acredita em Deus, tampouco na perfectibilidade do homem [4]. Não acredita que as ideias de progresso, que a moral, a ciência ou a ideologia política possam nos tirar da condição humana e animal para nos fazer retornar ao Jardim do Éden.

Mas o que mais me intriga em Rampion não é a sua lucidez ácida e prolixa, sua descrença, nem seu romantismo raivoso. É sua determinação em afirmar no homem a sua integralidade. Em não aceitar que a verdade esteja sempre no cérebro e nunca no coração, e vice-versa. O verdadeiro homem civilizado para Rampion é aquele que consegue englobar tudo, harmonizar a razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo. “A barbárie consiste em pender mais para um lado do que para outro. Os civilizados sabem viver com todo o ser”. Rampion considera William Blake, poeta e pintor inglês, o verdadeiro homem civilizado. E acusa Shelley, o grande poeta romântico, de não ter sido humano, mas “um misto de fada e lesma branca”, que “espiritualizava demais o amor”. Rampion admira a “carnalidade”, embora flutue no mundo das ideias numa ânsia pedagógica que ele mesmo sabe inumana. “É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”, brada. “O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam”.

Foi, porém, uma indagação do Pondé que virou a chave da minha leitura. E tantas outras portas se abriram. “Não seria insuportável conviver com Rampion? Ele não é um purista, um chato?”. De fato, o discurso de Rampion é extenso e repetitivo. Sua vida uma grande aula, onde ele é um professor empedernido. Mas se Rampion está humanamente distante de alcançar a perfeição - para a sua alegria e satisfação - ele é coerente e autêntico. Sua acidez não é corrosiva. Sua raiva é quase abstrata na esperança que sutilmente nutre pela humanidade. Seu ateísmo não lhe tira o sentido e o prazer da vida concreta, que apesar de sofrida, é o que lhe resta. “Spandrell se recusa a ser homem”, aponta Rampion. “Não é um homem, mas sim um demônio ou um anjo morto”. Mark Rampion sabe que a humanidade do homem se pulveriza tanto no bem quanto no mal absolutos. E que se não existe a possibilidade da transcendência, que sejamos ao menos éticos e felizes.

E é exatamente na ética que Rampion se distancia de um outro grande personagem, Maurice Spandrell, o “Peter Pan à Dostoiévski”, o “pequeno Nikolai” [5], o cínico dos cínicos, que vacila entre o bem e o mal absolutos e se entrega a uma existência que beira o inumano. A não superação do seu pequeno drama pessoal, a relação mal resolvida com a mãe, a nostalgia de uma vida feliz na infância, o atira definitivamente no abismo. O vazio e a violência em Spandrell se perdem em qualquer entendimento. Ele hesita se acredita ou não acredita em Deus. Hesita se a vida como ela é vale ou não vale a pena. E entrega-se à barbárie. Spandrell é o contraponto do homem integral “rampioniano”, porque ora é demônio, ora é anjo contemplando Deus numa sinfonia de Beethoven. Vivendo nos extremos, Spandrell esvazia sua humanidade e se perde e se mata na falta de ética.

Já Philip Quarles, personagem injustamente declarado frio e calculista, paradoxalmente passa pelo romance sofrendo pela consciência que tem de sua inabilidade emocional. Ele apenas não aprendeu a lidar com seus sentimentos, uma defesa, talvez, pelo fato de ser fisicamente aleijado. Huxley tentou obstinadamente torná-lo “o insensível”, “o racional” do romance, mas parece que essa foi uma criação que se rebelou. Terminamos o romance sensibilizados por ele, comovidos por sua integridade e, sobretudo, solidários com sua falta de jeito em lidar com as coisas do coração.

Numa determinada passagem, Philip Quarles faz uma reflexão sobre as pessoas que são notáveis em determinada esfera da vida, mas desprezíveis em outra. Cita o escritor Liev Tolstói, que em sua visão foi um excepcional romancista, mas detestável nas ideias sobre moral e religião. Uso esse exemplo um tanto tendencioso somente como ponte para me fazer voltar ao tema do amor-bandido, pois assim é Everard Webley, o amável repugnante, o líder dos “Ingleses Livres”, partido político fascista que na trama anseia chegar ao poder. Porque Webley, a despeito de suas posições políticas desprezíveis, é um homem admirável por sua determinação e disciplina. Seguro de si, sempre sabe a direção a tomar. E ele usa todo o seu poder de decisão não somente na política, mas também no seu amor por Elinor, a frágil mulher carente que vive um casamento gelado com o intelectual Philip Quarles. Webley é o homem viril que seduz montado literalmente num cavalo branco, e conquista a mulher. Infelizmente, ou felizmente, dependendo do ponto de vista, se político ou pessoal, a potência de Webley é anulada pelo vazio existencial de Spandrell.

A potência que se aniquila diante do vazio e do tédio. É o que me vem à cabeça quando penso no desfecho da história. Embora Webley seja evidentemente mais um contraponto ao homem ideal imaginado por Rampion - porque aposta todas as fichas no aperfeiçoamento da sociedade pelo viés social e político -, mesmo assim acredito nele como sendo o personagem que mais se aproxima do homem “rampioniano”: Webley está preso à materialidade da terra; a potência e a determinação de sua virilidade parecem indicar harmonia entre razão e instintos; por último, Webley ama e sofre sinceramente por amor.

Mas por que tal potência foi covardemente extirpada? Por que Huxley teria dado a Webley uma alma fascista? Talvez para nos mostrar que não existe o homem perfeito. E que somos vulneráveis na luta entre o bem e o mal. Afinal, isso é o que nos faz humanos.


E não dá para esquecer outro importante desfecho do livro: quem herda o paraíso na terra é a hipocrisia. Pelo menos é isso o que acontece em “Contraponto”. Embora a ambição e a sensualidade em si não sejam reprováveis, é o fingimento e as más intenções que as tornam desprezíveis. Para o personagem herdeiro huxleyano do “reino dos céus”, dinheiro e carnalidade são o que verdadeiramente interessa. Sua bondade é puro fingimento. Burlap é o seu nome, personagem representante de um dos produtos mais bem acabados da tal perfectibilidade, que criou esse homem moderno, o “homem extraordinário”, o “homem de ação”, prático, eficiente, técnico, que sabe ser “espiritual” quando conveniente e usa as emoções para mascarar sua ânsia de conquista e poder. O que importa é cumprir metas. O que importa é vencer. E Burlap venceu.

Em contraponto, e para finalizar, retomo a questão inicial de Nélson Rodrigues. Encontrei outro dia a Sonia, uma querida amiga e companheira de cursos da Casa das Rosas, e lhe mostrei com afã o trecho sobre a experiência fascinante da releitura. Qual foi minha surpresa quando ela me retrucou com um enfático “Não concordo!”. Depois me contou de um palestrante que se dirigiu a alguém na plateia e perguntou: “Você já leu a Odisseia?”. “Não, respondeu o rapaz”. Então o palestrante soltou uma estrondosa e intrigante resposta: “Que inveja eu tenho de você! Porque eu nunca mais vou poder sentir o mesmo entusiasmo, a mesma perplexidade que um dia eu senti quando li pela primeira vez a Odisseia. Parabéns!”.

Mínima culpa: Nada comentei sobre Marjorie e Lucy. Nem sobre Elinor, Beatrice, Mary... É que só agora me dei conta de que nada falei sobre as mulheres em “Contraponto”, embora grite o hedonismo niilista de Lucy e incomode a chatice e o tipo de salvação religiosa encontrada por Marjorie. Mas eu simplesmente me esqueci delas, depois me faltou vontade. Enfim, para o bem ou para o mal, hei de enfrentá-las numa releitura!


Notas:

[1] Assim como a Jacqueline, começo com o mesmo trecho de Nélson Rodrigues que ela abriu “Luz no Pântano”, artigo publicado recentemente no blog do Laboratório de Humanidades. Por ele me dei conta de que “existe entre Dostoiévski e Nélson Rodrigues um laço de família”, que são “almas parentas”, cujos personagens invariavelmente estão no limiar, em regiões abissais. Também me aproximei de um Nélson Rodrigues entregue, arrebatado, que faz tal afirmação sobre o fascínio da releitura. Referências: RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54. SAKAMOTO, Jacqueline. Luz no Pântano. Blog do LabHum. URL: http://labhum.blogspot.com/2010/08/luz-no-pantano.html.

[2] No Laboratório de Humanidades, acabamos de discutir Odisseia. Recomendo uma edição portuguesa primorosa. A clareza e a beleza dos versos fazem da leitura um deleite. Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2003. (Tem na Livraria Cultura).

[3] “Construir a própria beleza” é uma referência ao ideal grego de formação do homem (Paideia), segundo o qual o homem alcançaria a excelência humana por meio da areté - virtude - na medida em que se dedicasse ao belo, ao bom e ao justo, contemplando assim a verdade. Bem, como não estou lá muito seguro dessa definição, nada me resta senão escrever sobre isso. Em breve.

[4] Perfectibilidade do homem: conceito filosófico pelo qual se admite que o homem, por sua própria força e natureza racional, é capaz de alcançar à Perfeição por meio do progresso moral, social, científico e tecnológico. Não se trata do impulso natural que temos de aprimorar continuamente as coisas, mas da presunção humana de se sentir no centro do universo e autossuficiente. Trata-se, portanto, de acreditar que pela educação, pela inteligência, pelo raciocínio lógico e matemático, pelo progresso científico e tecnológico, em suma, pela racionalidade humana, o homem possa de fato dominar tanto as forças externas da natureza quanto o que há de interno e incontrolável nele. Para os perfectibilistas de ontem e de hoje, a Perfeição e a Felicidade são produtos de uma equação que pressupõe a supremacia da Razão sobre a Natureza. A perfectibilidade é a própria base das utopias modernas. Negá-la é desacreditar a autossuficiência do homem, assumindo assim uma atitude profundamente religiosa, ainda que desvinculada de qualquer instituição e/ou sistema doutrinário.

[5] Nikolai Stavróguin, personagem central do livro “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Impressionante por sua complexidade. Flutua no vazio, no tédio, no nada. Indecifrável, intrigante. Cruel, patife, demoníaco. Paradoxalmente atraente.

Bibliografia:

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

Huxley, A. Contraponto. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. 6ª Edição. São Paulo: Globo, 2001.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre Deus e a Razão Metafísica

Este texto foi escrito para a disciplina "Visão Teológica" que cursei no semestre passado. Apesar do tema parecer difícil, nele se esconde uma simplicidade desconcertante. Aprendi e desaprendi muito nesta escrita. Quem se habilitar, leia e depois me conte o sabor das entrelinhas. Posso parecer bobo, eu sei. Posso parecer pretensioso, eu também sei. Mas se repelimos de nós a zona do não-entendimento afastamos com ela o gosto do Infinito.

Eis a pergunta que eu deveria responder:

Explique a razão pela qual a existência de Deus não pode ser considerada uma teoria meramente científica.

René Descartes (1596 - 1650) foi uma das personalidades históricas que mais contribuíram para o desmoronamento do mundo antigo, tanto que na filosofia suas teorias são consideradas fundadoras do pensamento moderno. Se nas ciências naturais tivemos nomes que abalaram sobremaneira a supremacia religiosa da Idade Média, Descartes, além de principiar as bases do método científico, representou ao mesmo tempo uma “ruptura e um ponto de partida” (Ferry, 2007). Ruptura porque examina, critica, duvida e rejeita todas e quaisquer crenças anteriores herdadas da família, da Igreja, da nação ou de qualquer outra autoridade estabelecida. De espírito completamente livre, determina-se “sujeito” autônomo, capaz de decidir por si só o que é verdadeiro ou falso. O ceticismo radical de Descartes o leva a considerar nada mais como certo, salvo que uma certeza resiste a tudo, aquela segundo a qual eu penso, e até duvido, por isso “eu” existo. “Penso, logo existo”, é dele a máxima célebre da filosofia moderna. Ponto de partida porque ao dizer que era “preciso saber fazer tábula rasa do passado” e decretar o “eu” como única instância confiável de existir estabelece um princípio novo nunca antes imaginado: o homem no centro do Universo, plenamente racional, substituindo o cosmos dos gregos e a divindade dos cristãos. Descartes funda a filosofia moderna, a filosofia do sujeito, o humanismo, o antropocentrismo, o homem e sua razão no centro de mundo, como um deus de si mesmo.

Bornheim (2008) assinala que a razão, segundo Descartes a concebera, seria a potência motora que permitiria ao homem subjugar o mundo. “E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser soberanamente livre, deveria considerar a razão como a essência do seu ser, derivando dela as normas de seu comportamento”. E mais, “o homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista”.

Mas como conceber que Descartes, que levava sua vida na França do século XVII, estudioso que certamente sacrificou os melhores anos de sua vida para pensar e escrever suas ideias, ainda que tão geniais quanto controversas, tivesse sido capaz de engendrar, fora dos domínios do poder e da religião, teorias que sozinhas, ao transcenderem o seu tempo histórico, revolucionassem gerações?

É por isso que se torna mais fácil compreender certos movimentos históricos quando os visualizamos como uma espécie de grande onda, não uma tsunami destruidora, mas uma marola lenta e persistente que ao longo de anos, décadas e séculos vai envolvendo tudo o que encontra. Imagino essa onda banhando as consciências da Europa daqueles tempos retirando da tradição o seu sentido e a sua razão. Creio que nessa inquietação foram arrastadas personalidades tão díspares e antagônicas como o próprio René Descartes (1596 - 1650), Blaise Pascal (1623 - 1662), Baruch Spinoza (1632 - 1677), John Locke (1632 - 1794), George Berkeley (1685 - 1753), Immanuel Kant (1724 - 1804), Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778), entre muitos outros, conhecidos e desconhecidos, gente do povo, artistas, políticos, nobres, reis e governantes, que mesmo não participando da mesma cosmovisão e dos mesmos ideais, contribuíram para a formação do mundo que conhecemos hoje, onde as certezas e a aceitação dogmática da verdade deram lugar à dúvida, o mundo fechado deu lugar ao infinito, a ordem e a autoridade deram lugar ao caos que para muitos resultou na absoluta falta de sentido. “Emancipados das crenças do ato da criação, da revelação e da condenação eterna, nós, humanos, nos encontramos sós, por nossa própria conta”, como assinalou Gotthold Lessing (1729 - 1781).

Um dos maiores males do homem moderno consiste exatamente no que decorre da chamada supremacia da razão. Essa função analítica e crítica, o bom senso cartesiano, que os homens desde o século XVII vinham depurando, foi sistematizada e generalizada pelo Iluminismo, que a tudo fez subordinar à crítica, transformando a razão, portanto, em valor supremo. “Não valem mais as coisas, e sim os objetos pensados; o mundo passa a ser o mundo do homem; Deus, o Deus do homem”. O direito, a moral, a arte, assim como a ciência e a filosofia, deveriam ser explicadas a partir da razão (Bornheim, 2008).

Tendo sido as amarras do saber as primeiras a sofrerem a ação libertária do Iluminismo, rapidamente surge no cenário do século XVIII a noção de que os valores da sociedade devessem ser submetidos necessariamente ao conhecimento. Decorre dessa nova maneira de valorizar o mundo o cientismo, que nasce da premissa de que tudo é passível de ser inteiramente desvendado e transformado pelo intelecto humano. Essa nova maneira de ver o mundo, que adota como critério de verdade a demonstração com base em cálculos matemáticos comprovados segundo a realidade empírica, tenta impor os métodos próprios às ciências naturais a todas as demais áreas de investigação, inclusive à filosofia, às ciências sociais e às humanidades. É importante ressaltar aqui que os termos cientismo e o cientificismo podem se confundir, embora ao cientificismo esteja normalmente associada à manipulação política da ciência. Assim, apesar da crise romântica no século XIX, que insurge contra os excessos da razão, ocorre no mundo moderno uma verdadeira sacralização da ciência.

Os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que deixaram marcas profundas no estudo da natureza (com o evolucionismo de Darwin) e da sociedade (com o positivismo de Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria (com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri) e mesmo na religião (com o kardecismo). Tais correntes procuravam romper com as explicações abstratas e metafísicas, buscando desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica. Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade. Idéias como estas encontraram ampla acolhida no Brasil, sobretudo entre os grupos urbanos. Afinal, para diversos setores da elite política e intelectual nativa, nosso jovem país precisava seguir, após a abolição da escravidão e a proclamação da República, os rumos do "progresso" e da "civilização" sinalizados pela Europa (Schmidt, 2001).

Não é preciso muito para demonstrar o quanto esse racionalismo desmedido reduz e empobrece a experiência humana, visto que a realidade é sempre muito mais entrelaçada, difusa e misteriosa. É praticamente impossível marcar com exatidão onde cada coisa começa e termina. A fronteira do certo e do errado. O início do prazer e do desespero. Enfim, insistir em posturas moralistas, racionais e reducionistas é apostar na infelicidade e na incompreensão.

As coisas todas pertencem a mais de uma categoria e podem ser classificadas de mais de um modo. As coisas podem mesmo pertencer a categorias contraditórias. Portanto, nem todas as descrições ou afirmações precisam ser inteiramente falsas ou inteiramente verdadeiras” (Teixeira Coelho, 2001).

Vivemos de sensações imprecisas. Gostamos mais ou menos de um filme, amamos sem saber ao certo o por quê, fruímos uma poesia, um romance, uma música, mas o que neles nos agrada é indeterminado. O que Teixeira Coelho (2001) esclarece é que “as fronteiras entre todas as coisas, ou, de todo modo, entre a maioria das coisas que dizem respeito ao ser humano em sua vida diária, são difusas. E, no entanto, continuamos a sermos treinados para acreditar no contrário”. Ele nos incita a “exercitar o pensamento do tipo prismático”, que é o perceber a vida múltipla, colorida, nevoada... não maniqueísta, não monocromática, não monocórdica.


A realidade que atravessa um prisma revela facetas tão precisas ou imprecisas quanto os feixes de cores em que se decompõe um raio de luz: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul... Onde se inicia o feixe vermelho, onde acaba o feixe laranja? A física poderá, talvez, dizê-lo com precisão - ou acredita que possa fazê-lo, para o que lhe interessa. Mas a precisão da física não me é significativa para a vida diária, para o mundo, para a cultura, para arte... (Teixeira Coelho, 2001).

O exercício do “pensamento prismático” é fundamental porque reflete a própria condição humana. Ver a realidade da vida sob um prisma é aprender a reconhecer não apenas diferenças, mas tonalidades, matizes e nuances dentro da própria diferença. Existem infinitas combinações de cores, infinitos tons de vermelho e, no entanto, cada um deles continua sendo vermelho.

Sócrates, na República de Platão, diz que o homem tem uma “alma que se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”. E é assim que chegamos à metafísica, um modo paradigmático de raciocínio não-científico que dialoga com o coração e, contraditoriamente, com o pensamento prismático, pois ao se dirigir ao Todo da experiência, o pensamento metafísico nunca subtrai a importância de suas partes. Aristóteles assim tratou a Metafísica:


Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma ciência particular, pois nenhuma outra ciência considera o ser enquanto ser em geral, mas, depois de ter delimitado uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas.

Aristóteles ressalta que o objeto da metafísica é o “inteiro do ser”, enquanto as ciências particulares tratam das “partes específicas” do ser. A metafísica, portanto, diz respeito à essência e ao absoluto das coisas. Ainda segundo Aristóteles, “as categorias gerais que valem para o inteiro não coincidem com as que valem para as partes”; e ”as categorias que valem para as partes não podem ser estendidas completamente ao inteiro”. É por isso que Reale (2002) afirma que o grande erro da filosofia moderna e contemporânea foi ter assumido os métodos racionais das ciências particulares para a filosofia e, em especial, para a metafísica. Temos que pensar, portanto, que se há uma razão científica estabelecida, temos também uma razão metafísica, que quando não considerada deforma a ciência, visto que esta fica subtraída da noção do inteiro, perdendo sua consistência ontológica.

Sendo Deus o Absoluto, o Inteiro, o Uno, o que é simples e jamais composto, o Sentido transcendente que encontramos no horizonte de nossa experiência, que vai além das realidades finitas, corpóreas, imanentes, contingentes, passageiras e mutáveis, portanto objeto primeiro da metafísica, é fácil concluir o porquê de Deus não poder ser considerado uma hipótese meramente científica, já que a razão do método científico não é própria para abarcar o infinito, assim como não é própria para abarcar a verdade da beleza, da moral, da justiça, enfim, dessas categorias de coisas que não passam pelo crivo dos sentidos, que não possuem evidências empíricas, que estão além da matéria e, portanto, subjugadas a uma razão metafísica.

Porém, antes mesmo da razão metafísica, consideremos a questão do verdadeiro e da causa em Aristóteles:


Também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, porque o fim da ciência teórica é a verdade, ao passo que o fim da prática é a ação. De fato, os que têm por fim a ação, mesmo se observam o estado das coisas, não tendem ao conhecimento do que é eterno, mas só ao do que é relativo a determinada circunstância e num determinado momento. Ora, nós não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa. Mas qualquer coisa que possui em grau supremo a natureza que lhe é própria constitui a causa em virtude da qual também às outras convém a mesma natureza: por exemplo, o fogo é quente no grau máximo por ser a causa do calor das outras coisas. Portanto, o que é causa do ser verdadeiro das coisas que dele dependem deve ser mais verdadeiro que todas as outras. É pois necessário que as causas e os seres eternos sejam mais verdadeiros que todos os outros, pois eles não são verdadeiros só algumas vezes, e não há uma causa anterior para seu ser, mas são eles as causas do ser das outras coisas. Por conseguinte, cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser.

“Não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa”. Essa máxima aristotélica foi desenvolvida por São Tomás de Aquino (1225 - 1274) em sua Suma Teológica, quando descreve a 2ª via de demonstração da existência de Deus. Nessa obra, Tomás de Aquino ensina que “Deus é o princípio e o fim de todas as coisas” e que é possível provar Sua existência sem recorrer a argumentos religiosos ou dogmáticos, mas à luz da razão metafísica. São Tomás de Aquino propõe cinco vias de demonstração, assim sintetizadas:


1ª via - Primeiro Motor Imóvel: há que ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido, e um tal ser todos entendem que é Deus. O movimento aqui é considerado no sentido metafísico, isto é, passagem daquilo que pode vir a ser (potência) para o que a coisa é no momento (ato). Deus é ato puro e não sofre mudança.

2ª via - Causa Primeira ou Causa Eficiente: não se encontra algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio, o que é impossível. É necessário que haja uma Causa Primeira que por ninguém tenha sido causada. Essa Causa Incausada todos chamam Deus.

3ª via - Ser Necessário e Ser Contingente: existem seres contingentes, ou seja, que existem e depois deixam de existir. Todos os seres que existem no mundo são contingentes (desnecessários), mas há que ter um Ser Necessário (Deus), que sempre existiu, caso contrário algum dia o mundo não existiria. Do Nada Absoluto não surge e nem advém o Ser.

4ª via - Ser Perfeito e Causa da perfeição dos demais: há graus de perfeição nos seres, uns são mais perfeitos que outros. Há seres racionais, animais, vegetais e inanimados. Qualquer graduação pressupõe um parâmetro máximo, logo deve existir um ser que tenha esse padrão máximo de perfeição e é a Causa da perfeição dos demais.

5ª via - Inteligência Ordenadora: existe uma ordem admirável no universo. Toda ordem pressupõe uma inteligência ordenadora. Pelo acaso e pelo caos não se chega à ordem. Logo há um Ser Inteligente pelo qual todas as coisas são ordenadas a um fim e a Isso nós chamamos Deus.

Conclui-se que tudo o que existe está inserido numa série de causa e efeito, já que nada que observamos na natureza é capaz de se autoproduzir. Deus não pode fazer parte dessa série causal, pois, caso contrário, seria Ele também um efeito, o que, por sua vez, implicaria numa causa anterior. Há que se pensar que essa Primeira Causa, a Causa Incausada, é o que chamamos de Deus. Deus, portanto, está fora da série causal, logo não tem a mesma natureza dos seres que da série causal fazem parte. E é por isso que nós, seres contingentes, efeitos de uma série de causas infindáveis, somos privados da experiência sensível de Deus, pois Ele não é efeito, não é matéria da série causal, não é captado pelos nossos sentidos físicos e nem faz parte de nós, visto que se Dele tivéssemos uma ínfima parte, essa parte seria também matéria, o que é inconcebível.

Enfim, Deus não pode ser considerado uma teoria meramente científica porque não é empírico, não é sensível, não é material. É metafísico. Deus é o gosto do Infinito. Sentido e Causa. Eternidade e Vida.


Bibliografia (incompleta):

Ferry, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Fortes, L.R.S. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Guinsburg, J. (org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Todorov, T. O Espírito das Luzes. São Paulo: Editora Barcarolla, 2008.



Site Consultado:

Wikipédia - A Enciclopédia Livre. Existência de Deus: as cinco vias de São Tomás de Aquino. URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAncia_de_Deus.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tinta Russa, e o Método de Deus


O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.

Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.

Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.

Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.

Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.

Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.

Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.

Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.

Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.

Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.

Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.

Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.

Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).
Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.

E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:

Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)

E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.

Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.

Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)
“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.

Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.


Bibliografia:

Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.


Notas:

(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.

(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.

(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].

(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).

(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.

(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.

(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Minha Pequena Odisseia



Venci a minha guerra de Troia. No embate fui meu próprio cavalo de pau. Arranquei das entranhas arsenais que eu nunca imaginara. Armaduras de ferro, lanças pontiagudas, venenos. Exército sanguinolento eu fui. Pilhei meus próprios recursos, violentei convicções, vivi na mixórdia. Não me chamo Ulisses, nem de Penélopes eu gosto. Não luto por Helenas, mas tenho nome espartano.

Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas tentações. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invadores, reinarei até o fim.

Cada um de nós vive a sua Odisseia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.

Hei de Ser "Indecente"!

Viver a vida "decente" de Ivan Ilitch é viver uma vida deliberadamente conveniente. Forçosamente leve e agradável. Vida de raros entusiasmos, de envolvimentos recatados, aceitáveis. Vida vazia de si, vazia em si.

É nunca se expor ao ridículo, ainda que se imagine inteiramente racional. É reprimir e minimizar sentimentos, fragilidades, covardias e enganos. É se projetar num patamar plasticamente superior, artificialmente seguro, engessadamente nobre.

É se atirar numa cratera de falsos valores e viver idealmente. É vincular-se a conceitos e não a pessoas. É matar a subjetividade e despir a própria humanidade. É calar vozes interiores, abandonar a busca atávica de sentido, esquecer-se automaticamente de si.

Mas mal sabe ele, o "decente", o sabor da vida humana, sempre tão incerta e apaixonante, tão contraditória e envolvente. Por isso eu, um autêntico "decente", sofro, choro e morro com Ivan Ilitch. E vislumbro me atirar no abismo de uma vida plena, redescobrindo o gosto "indecente" do infinito.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Ivan Ilitch não leu “O Livro dos Prazeres”

“A maior felicidade é quando a pessoa sabe porque é infeliz” (Dostoievski)

“Pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte” (Clarice Lispector)1


Quando li “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” de Clarice Lispector fiquei com o livro a tiracolo por uns seis meses: passava os olhos num trecho qualquer e ainda assim boiava. Pressentia, no entanto, ali uma importância, e a sensação de que uma aprendizagem se insinuava, embora eu não presumisse qual.

Inexperiente, virei “especialista”. Entusiasta, fiz apologia do romance e saí por aí presenteando pessoas, induzindo-as à compra. Dizia que Clarice era isso e aquilo. Que a personagem me comovia. Que sua intensidade. Que sua liberdade. Que sua relação com Ulisses. E que a despeito de tudo, ela aprendera.

Mais de vinte anos depois não me lembro direito da história. Nenhum argumento persistiu, apenas “Ulisses”, porque fiquei sabendo, na época, que esse também era o nome do gato da Clarice. Mas hoje, exatamente quando acabo de ler Tolstói, quando sofro e choro a morte de Ivan Ilitch, soube, enfim, tudo o que aprendera, tudo.

Aprendera a vida. Vida não necessariamente leve, agradável, decente, mas vida humana. Vida vivida não em aparências, em artificialidades, na correção do socialmente aceitável. Tampouco vida chata, deliberada, do tipo intensa. Mas vida errante, rotineira, sofrível, contraditória, para uns até mesmo "indecente", mas plena do sentimento de existência, da certeza que se é assim como uma lamparina acesa, mesmo que rodeada de insetos.


Um mundo fantástico me rodeia e me é. Ouço o canto doido de um passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roída por um verme. E espero a apocalipse orgásmica. Uma chusma dissonante de insetos me rodeia, luz de lamparina acesa que sou (Clarice Lispector).2

Agora sei que Clarice me ensinou a viver a vida, vida que se aproxima da morte. E que Tolstói, me aproximando da morte, me ligou implacavelmente à vida.

Ivan Ilitch não teve a chance de ler Clarice Lispector. Mas todos nós temos a chance de ler “A morte de Ivan Ilitch”: viva!


1. Lóri, personagem de Clarice Lispector em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.


2. Encontrei a citação no livro “Romanceiro de Dona Virgo” de Cláudio Daniel. Não há registro de onde ela foi retirada. Mas com certeza não foi do “Livro dos Prazeres”.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

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O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A Festa da Poesia

“Experimento, logo existo”: ouvi a paráfrase no “Café Filosófico” da TV Cultura. Estavam lá Viviane Mosé, psicanalista e filósofa, e o terapeuta corporal Nelson Lucero, que juntos discutiam o poder dos afetos. Meus domingos à noite têm sido assim: o finzinho do Fantástico e alguma filosofia.

Embora estivesse sonolento, não me esqueço quando eles disseram que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”. E mais, “eu só tenho acesso à experiência do outro por meio de sua expressão”. E que “o pensamento puramente racional impede os afetos, impedindo de criar”. Nossa! Eu poderia me perder por aqui...

Mas o que eu queria mesmo dizer era que hoje estive mexendo em papéis velhos. E achei algumas poesias antigas, minhas, de uma época em que eu vivia seguindo Adélia Prado. É verdade: eu e o Marcelo íamos juntos onde ela estivesse em São Paulo. Tenho fotos em preto e branco e tudo. Na época eu havia comprado aquele livro verde e roxo, “Poesia Reunida”, que ela me autografou, enquanto conversávamos sobre trem de ferro, Divinópolis, Minas Gerais... “Só faltou tirar o terço e rezar”, ironizou o Marcelo morto de inveja, porque ele é o maior adorador da Adélia. Sabe seus poemas de cor.

No meu livro ela escreveu:

“Para o Licurgo desejando-lhe a festa da Poesia.
Com Carinho, Adélia Prado”.

Voltando aos papéis velhos, li os poemas e senti aquela natural pontinha de vergonha. E notei que escrevo poesia em primeira pessoa. “Bem que eu podia deixar de ser tão confessional”, reclamei. Mas agora, lembrando do Nelson Lucero, que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”, senti orgulho da minha pequena criação. Se elas são boas ou não, que importa, mas sei que são criações explosivas de “afetos” verdadeiros.

Enfim, tímido, publico duas:



TÊNUE ESTAMPA

Gostava tanto daquela saia de lã...
O pai, de tão magro, parece um gato...
Disse ela mirando as fotos nos binóculos da juventude,
como de quem escapava um pensamento.

Eis minha mãe.
Eis o tempo.
Pude percebê-los em gema de cristal.
Ele passara e da saia de lã restava apenas a tênue estampa.

Que saudades dessa mulher que não me lembro.
Se pudesse lhe devolveria as cores vivas
de quando eu nem havia nascido,
a presenteá-la com o tempo,
essa variável sem acordos,
que desbota os tecidos,
amarela os papéis,
mas não lhes tira a marca d'água.


O tempo apaga o retrato,
vinca a memória,
resseca os intestinos,
mas não desfaz o encantamento:
somos todos “cada um”.

Só então pude perceber:
há um pedaço da minha mãe que não se curva.
Invulnerável, alheio, nascido.
Morrerá com ela,
Indestrutível em minha memória.

BEATICE

Qualquer suavidade é sempre rogada
- suplico a calmaria, a expressão exata, o gesto preciso -
Que sou dos secos.

Mas hoje não vou sem um arroubo,
sem a prática que me alivia:
- uma cega alimentava o filho às escuras!

Quis trazê-la ao colo,
a soprar seus os olhos no ímpeto de avivá-los.
Por ela fiquei santo,
- Santo Deus nas alturas! -
a ponto de arrebatar as pessoas inteiras.

Quem então enxergava os grãos de bico?

A cega, de grão em grão, separava-os cismada.
Mas quando a vida não basta, não basta.
No metrô, os “entendidos” entreolhavam-se com ousadia!
A avó de um amigo está no morre não morre.
“Nesse estabelecimento não se fuma”, anunciava o cartaz.

Nas ruas, uma gente e suas estampas
cinzas a tempestear a calmaria dos dias.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.