quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre Deus e a Razão Metafísica

Este texto foi escrito para a disciplina "Visão Teológica" que cursei no semestre passado. Apesar do tema parecer difícil, nele se esconde uma simplicidade desconcertante. Aprendi e desaprendi muito nesta escrita. Quem se habilitar, leia e depois me conte o sabor das entrelinhas. Posso parecer bobo, eu sei. Posso parecer pretensioso, eu também sei. Mas se repelimos de nós a zona do não-entendimento afastamos com ela o gosto do Infinito.

Eis a pergunta que eu deveria responder:

Explique a razão pela qual a existência de Deus não pode ser considerada uma teoria meramente científica.

René Descartes (1596 - 1650) foi uma das personalidades históricas que mais contribuíram para o desmoronamento do mundo antigo, tanto que na filosofia suas teorias são consideradas fundadoras do pensamento moderno. Se nas ciências naturais tivemos nomes que abalaram sobremaneira a supremacia religiosa da Idade Média, Descartes, além de principiar as bases do método científico, representou ao mesmo tempo uma “ruptura e um ponto de partida” (Ferry, 2007). Ruptura porque examina, critica, duvida e rejeita todas e quaisquer crenças anteriores herdadas da família, da Igreja, da nação ou de qualquer outra autoridade estabelecida. De espírito completamente livre, determina-se “sujeito” autônomo, capaz de decidir por si só o que é verdadeiro ou falso. O ceticismo radical de Descartes o leva a considerar nada mais como certo, salvo que uma certeza resiste a tudo, aquela segundo a qual eu penso, e até duvido, por isso “eu” existo. “Penso, logo existo”, é dele a máxima célebre da filosofia moderna. Ponto de partida porque ao dizer que era “preciso saber fazer tábula rasa do passado” e decretar o “eu” como única instância confiável de existir estabelece um princípio novo nunca antes imaginado: o homem no centro do Universo, plenamente racional, substituindo o cosmos dos gregos e a divindade dos cristãos. Descartes funda a filosofia moderna, a filosofia do sujeito, o humanismo, o antropocentrismo, o homem e sua razão no centro de mundo, como um deus de si mesmo.

Bornheim (2008) assinala que a razão, segundo Descartes a concebera, seria a potência motora que permitiria ao homem subjugar o mundo. “E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser soberanamente livre, deveria considerar a razão como a essência do seu ser, derivando dela as normas de seu comportamento”. E mais, “o homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista”.

Mas como conceber que Descartes, que levava sua vida na França do século XVII, estudioso que certamente sacrificou os melhores anos de sua vida para pensar e escrever suas ideias, ainda que tão geniais quanto controversas, tivesse sido capaz de engendrar, fora dos domínios do poder e da religião, teorias que sozinhas, ao transcenderem o seu tempo histórico, revolucionassem gerações?

É por isso que se torna mais fácil compreender certos movimentos históricos quando os visualizamos como uma espécie de grande onda, não uma tsunami destruidora, mas uma marola lenta e persistente que ao longo de anos, décadas e séculos vai envolvendo tudo o que encontra. Imagino essa onda banhando as consciências da Europa daqueles tempos retirando da tradição o seu sentido e a sua razão. Creio que nessa inquietação foram arrastadas personalidades tão díspares e antagônicas como o próprio René Descartes (1596 - 1650), Blaise Pascal (1623 - 1662), Baruch Spinoza (1632 - 1677), John Locke (1632 - 1794), George Berkeley (1685 - 1753), Immanuel Kant (1724 - 1804), Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778), entre muitos outros, conhecidos e desconhecidos, gente do povo, artistas, políticos, nobres, reis e governantes, que mesmo não participando da mesma cosmovisão e dos mesmos ideais, contribuíram para a formação do mundo que conhecemos hoje, onde as certezas e a aceitação dogmática da verdade deram lugar à dúvida, o mundo fechado deu lugar ao infinito, a ordem e a autoridade deram lugar ao caos que para muitos resultou na absoluta falta de sentido. “Emancipados das crenças do ato da criação, da revelação e da condenação eterna, nós, humanos, nos encontramos sós, por nossa própria conta”, como assinalou Gotthold Lessing (1729 - 1781).

Um dos maiores males do homem moderno consiste exatamente no que decorre da chamada supremacia da razão. Essa função analítica e crítica, o bom senso cartesiano, que os homens desde o século XVII vinham depurando, foi sistematizada e generalizada pelo Iluminismo, que a tudo fez subordinar à crítica, transformando a razão, portanto, em valor supremo. “Não valem mais as coisas, e sim os objetos pensados; o mundo passa a ser o mundo do homem; Deus, o Deus do homem”. O direito, a moral, a arte, assim como a ciência e a filosofia, deveriam ser explicadas a partir da razão (Bornheim, 2008).

Tendo sido as amarras do saber as primeiras a sofrerem a ação libertária do Iluminismo, rapidamente surge no cenário do século XVIII a noção de que os valores da sociedade devessem ser submetidos necessariamente ao conhecimento. Decorre dessa nova maneira de valorizar o mundo o cientismo, que nasce da premissa de que tudo é passível de ser inteiramente desvendado e transformado pelo intelecto humano. Essa nova maneira de ver o mundo, que adota como critério de verdade a demonstração com base em cálculos matemáticos comprovados segundo a realidade empírica, tenta impor os métodos próprios às ciências naturais a todas as demais áreas de investigação, inclusive à filosofia, às ciências sociais e às humanidades. É importante ressaltar aqui que os termos cientismo e o cientificismo podem se confundir, embora ao cientificismo esteja normalmente associada à manipulação política da ciência. Assim, apesar da crise romântica no século XIX, que insurge contra os excessos da razão, ocorre no mundo moderno uma verdadeira sacralização da ciência.

Os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que deixaram marcas profundas no estudo da natureza (com o evolucionismo de Darwin) e da sociedade (com o positivismo de Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria (com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri) e mesmo na religião (com o kardecismo). Tais correntes procuravam romper com as explicações abstratas e metafísicas, buscando desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica. Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade. Idéias como estas encontraram ampla acolhida no Brasil, sobretudo entre os grupos urbanos. Afinal, para diversos setores da elite política e intelectual nativa, nosso jovem país precisava seguir, após a abolição da escravidão e a proclamação da República, os rumos do "progresso" e da "civilização" sinalizados pela Europa (Schmidt, 2001).

Não é preciso muito para demonstrar o quanto esse racionalismo desmedido reduz e empobrece a experiência humana, visto que a realidade é sempre muito mais entrelaçada, difusa e misteriosa. É praticamente impossível marcar com exatidão onde cada coisa começa e termina. A fronteira do certo e do errado. O início do prazer e do desespero. Enfim, insistir em posturas moralistas, racionais e reducionistas é apostar na infelicidade e na incompreensão.

As coisas todas pertencem a mais de uma categoria e podem ser classificadas de mais de um modo. As coisas podem mesmo pertencer a categorias contraditórias. Portanto, nem todas as descrições ou afirmações precisam ser inteiramente falsas ou inteiramente verdadeiras” (Teixeira Coelho, 2001).

Vivemos de sensações imprecisas. Gostamos mais ou menos de um filme, amamos sem saber ao certo o por quê, fruímos uma poesia, um romance, uma música, mas o que neles nos agrada é indeterminado. O que Teixeira Coelho (2001) esclarece é que “as fronteiras entre todas as coisas, ou, de todo modo, entre a maioria das coisas que dizem respeito ao ser humano em sua vida diária, são difusas. E, no entanto, continuamos a sermos treinados para acreditar no contrário”. Ele nos incita a “exercitar o pensamento do tipo prismático”, que é o perceber a vida múltipla, colorida, nevoada... não maniqueísta, não monocromática, não monocórdica.


A realidade que atravessa um prisma revela facetas tão precisas ou imprecisas quanto os feixes de cores em que se decompõe um raio de luz: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul... Onde se inicia o feixe vermelho, onde acaba o feixe laranja? A física poderá, talvez, dizê-lo com precisão - ou acredita que possa fazê-lo, para o que lhe interessa. Mas a precisão da física não me é significativa para a vida diária, para o mundo, para a cultura, para arte... (Teixeira Coelho, 2001).

O exercício do “pensamento prismático” é fundamental porque reflete a própria condição humana. Ver a realidade da vida sob um prisma é aprender a reconhecer não apenas diferenças, mas tonalidades, matizes e nuances dentro da própria diferença. Existem infinitas combinações de cores, infinitos tons de vermelho e, no entanto, cada um deles continua sendo vermelho.

Sócrates, na República de Platão, diz que o homem tem uma “alma que se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”. E é assim que chegamos à metafísica, um modo paradigmático de raciocínio não-científico que dialoga com o coração e, contraditoriamente, com o pensamento prismático, pois ao se dirigir ao Todo da experiência, o pensamento metafísico nunca subtrai a importância de suas partes. Aristóteles assim tratou a Metafísica:


Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma ciência particular, pois nenhuma outra ciência considera o ser enquanto ser em geral, mas, depois de ter delimitado uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas.

Aristóteles ressalta que o objeto da metafísica é o “inteiro do ser”, enquanto as ciências particulares tratam das “partes específicas” do ser. A metafísica, portanto, diz respeito à essência e ao absoluto das coisas. Ainda segundo Aristóteles, “as categorias gerais que valem para o inteiro não coincidem com as que valem para as partes”; e ”as categorias que valem para as partes não podem ser estendidas completamente ao inteiro”. É por isso que Reale (2002) afirma que o grande erro da filosofia moderna e contemporânea foi ter assumido os métodos racionais das ciências particulares para a filosofia e, em especial, para a metafísica. Temos que pensar, portanto, que se há uma razão científica estabelecida, temos também uma razão metafísica, que quando não considerada deforma a ciência, visto que esta fica subtraída da noção do inteiro, perdendo sua consistência ontológica.

Sendo Deus o Absoluto, o Inteiro, o Uno, o que é simples e jamais composto, o Sentido transcendente que encontramos no horizonte de nossa experiência, que vai além das realidades finitas, corpóreas, imanentes, contingentes, passageiras e mutáveis, portanto objeto primeiro da metafísica, é fácil concluir o porquê de Deus não poder ser considerado uma hipótese meramente científica, já que a razão do método científico não é própria para abarcar o infinito, assim como não é própria para abarcar a verdade da beleza, da moral, da justiça, enfim, dessas categorias de coisas que não passam pelo crivo dos sentidos, que não possuem evidências empíricas, que estão além da matéria e, portanto, subjugadas a uma razão metafísica.

Porém, antes mesmo da razão metafísica, consideremos a questão do verdadeiro e da causa em Aristóteles:


Também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, porque o fim da ciência teórica é a verdade, ao passo que o fim da prática é a ação. De fato, os que têm por fim a ação, mesmo se observam o estado das coisas, não tendem ao conhecimento do que é eterno, mas só ao do que é relativo a determinada circunstância e num determinado momento. Ora, nós não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa. Mas qualquer coisa que possui em grau supremo a natureza que lhe é própria constitui a causa em virtude da qual também às outras convém a mesma natureza: por exemplo, o fogo é quente no grau máximo por ser a causa do calor das outras coisas. Portanto, o que é causa do ser verdadeiro das coisas que dele dependem deve ser mais verdadeiro que todas as outras. É pois necessário que as causas e os seres eternos sejam mais verdadeiros que todos os outros, pois eles não são verdadeiros só algumas vezes, e não há uma causa anterior para seu ser, mas são eles as causas do ser das outras coisas. Por conseguinte, cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser.

“Não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa”. Essa máxima aristotélica foi desenvolvida por São Tomás de Aquino (1225 - 1274) em sua Suma Teológica, quando descreve a 2ª via de demonstração da existência de Deus. Nessa obra, Tomás de Aquino ensina que “Deus é o princípio e o fim de todas as coisas” e que é possível provar Sua existência sem recorrer a argumentos religiosos ou dogmáticos, mas à luz da razão metafísica. São Tomás de Aquino propõe cinco vias de demonstração, assim sintetizadas:


1ª via - Primeiro Motor Imóvel: há que ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido, e um tal ser todos entendem que é Deus. O movimento aqui é considerado no sentido metafísico, isto é, passagem daquilo que pode vir a ser (potência) para o que a coisa é no momento (ato). Deus é ato puro e não sofre mudança.

2ª via - Causa Primeira ou Causa Eficiente: não se encontra algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio, o que é impossível. É necessário que haja uma Causa Primeira que por ninguém tenha sido causada. Essa Causa Incausada todos chamam Deus.

3ª via - Ser Necessário e Ser Contingente: existem seres contingentes, ou seja, que existem e depois deixam de existir. Todos os seres que existem no mundo são contingentes (desnecessários), mas há que ter um Ser Necessário (Deus), que sempre existiu, caso contrário algum dia o mundo não existiria. Do Nada Absoluto não surge e nem advém o Ser.

4ª via - Ser Perfeito e Causa da perfeição dos demais: há graus de perfeição nos seres, uns são mais perfeitos que outros. Há seres racionais, animais, vegetais e inanimados. Qualquer graduação pressupõe um parâmetro máximo, logo deve existir um ser que tenha esse padrão máximo de perfeição e é a Causa da perfeição dos demais.

5ª via - Inteligência Ordenadora: existe uma ordem admirável no universo. Toda ordem pressupõe uma inteligência ordenadora. Pelo acaso e pelo caos não se chega à ordem. Logo há um Ser Inteligente pelo qual todas as coisas são ordenadas a um fim e a Isso nós chamamos Deus.

Conclui-se que tudo o que existe está inserido numa série de causa e efeito, já que nada que observamos na natureza é capaz de se autoproduzir. Deus não pode fazer parte dessa série causal, pois, caso contrário, seria Ele também um efeito, o que, por sua vez, implicaria numa causa anterior. Há que se pensar que essa Primeira Causa, a Causa Incausada, é o que chamamos de Deus. Deus, portanto, está fora da série causal, logo não tem a mesma natureza dos seres que da série causal fazem parte. E é por isso que nós, seres contingentes, efeitos de uma série de causas infindáveis, somos privados da experiência sensível de Deus, pois Ele não é efeito, não é matéria da série causal, não é captado pelos nossos sentidos físicos e nem faz parte de nós, visto que se Dele tivéssemos uma ínfima parte, essa parte seria também matéria, o que é inconcebível.

Enfim, Deus não pode ser considerado uma teoria meramente científica porque não é empírico, não é sensível, não é material. É metafísico. Deus é o gosto do Infinito. Sentido e Causa. Eternidade e Vida.


Bibliografia (incompleta):

Ferry, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Fortes, L.R.S. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Guinsburg, J. (org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Todorov, T. O Espírito das Luzes. São Paulo: Editora Barcarolla, 2008.



Site Consultado:

Wikipédia - A Enciclopédia Livre. Existência de Deus: as cinco vias de São Tomás de Aquino. URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAncia_de_Deus.

2 comentários:

  1. Oi, Lic! Finalmente consegui ler o seu texto! Gostei de como vc desenvolveu a ideia, amarrou as diferentes correntes de pensamento, para chegar à sua conclusão e responder à pergunta!

    Beijo,

    Eli

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  2. querido amigo Licurgo, hà quanto não nos falamos?
    Teu texto, magistral, grandioso,iteeeeennnnso. O gosto de qualquer coisa ficará seriamente afetado se o olfato está comprometido. Hoje,li, em algum lugar, que o olfato é o sentido que nos aproxima de Deus, pois ele foi o único que não participou do pecado original. Portanto, neste teu ensaio, SENTI O CHEIRO DE UMA DELICIOSA TORTA DE MAÇÃ, RECÉM-SAÍDA DO FORNO. AInda sou tão ousada que diria: a maçã primeva de nossa existência...portanto, ele (o texto, o sentido)nos leva a Deus.
    Beijo saudoso desde o Recife que te espera, com céu azul e brisa...
    Ventania

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