sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Abecê

A) "O mais profundo é a pele" [Paul Valéry, 1871 - 1945].


B) Demorei a pregar o olho. Minha vida está perdida, eu pensava. Se pudesse pegar uma esponja e apagar tudo que estudei, tudo que vi e ouvi, entrar na escola de Zorbás e começar o grande, o verdadeiro abecê! Como seria diferente o rumo que eu tomaria! Exercitaria, com perfeição, meus cinco sentidos e minha pele inteira para sentir prazer e compreender. Eu aprenderia a correr, a lutar, a nadar, a andar a cavalo, a praticar remo, a dirigir automóvel, a atirar com fuzil. Encheria de carne a minha alma, encheria de alma a minha carne; conciliaria dentro de mim, finalmente, esses dois inimigos eternos... [O narrador de "Vida e Proezas de Aléxis Zorbás", romance de Nikos Kazantzákis].


C) "Que Deus me perdoe, mas acho que estou feliz".

Confúcio diz: "Muitos buscam a felicidade mais alto do que o homem e, outros, mais baixo, mas a felicidade é da estatura do homem". Exatamente. Então existem tantas felicidades quantas são as estaturas humanas [O narrador].

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Na Expectativa de Atravessar o Oceano

Poeticamente, a minha ausência na abertura do ciclo "Zorbás" no Laboratório de Humanidades foi a melhor história de leitura que eu poderia ter contado a todos, justamente porque fui com Fábio [e o Zorbás] atravessar o oceano.



Pois, ao contrário do que muitos possam imaginar, sempre me impus navegar pelos mares do bom senso, embalado por medos, inseguranças, e hábitos inconfessáveis de um bom-mocismo hesitante. Como o escrevinhador do romance, eu nunca havia antes cedido aos encantos de uma “belíssima pedra verde”. E assim como ele, sempre fui um fiel seguidor da “comedida, fria e humana voz da razão”.

Por coincidência, ou não, li Kazantzákis exatamente no momento em que a tomada de certas decisões práticas tornava inevitável essa minha viagem. Ao mesmo tempo, em meio à tirada de passaporte e preocupações com hospedagem, temor de atravessar o oceano, compras de moeda estrangeira, ansiedade, eu me comprometia com o meu projeto de Mestrado, que pretende exatamente analisar o impacto das leituras de Huxley e Kazantzákis no LabHum. O fato é que para o bem ou para o mal, Zorbás venceu essa batalha: estou hoje numa viagem de sonhos e de amor.


Mas não estou indo para Creta, cenário árido e belo, tão propício à reflexão. Estou indo para Paris e Londres, onde certamente serão paisagens, iguarias, roupas, perfumes e cosméticos que alimentarão minha alma. Tampouco pressinto que nessa viagem eu vá descobrir algum sentido oculto. Nada disso. Naturalmente há o antigo desejo de conhecer outros países, outras culturas. Mas, de maneira um tanto mais prosaica, estou mesmo é me permitindo viver solto, ou seja, alimentando minhas vaidades, zerando minhas invejas, gastando meu dinheiro, sendo um tanto quanto inconsequente...

Entretanto, inspirado por Zorbás, esse que tanto fez para me “ensinar a amar a vida e a não temer a morte”, irei à procura de resgatar meu olhar primitivo, que me conceda a “virgindade aos eternos elementos cotidianos”. Espero que em cada jardim, em cada prédio, em cada homem, o frescor do coração de Zorbás se apodere de mim. E que com o coração renovado eu possa superar velhos medos. E me escapar do “inferno dos escrevinhadores”. E tentar ouvir, finalmente, essa voz que me chama e me pede para viver com mais “sangue, carne e ossos” essa minha vida banal de “papel e tinta”.



PARA ENTENDER MELHOR:

Entusiasmado pela leitura do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”de Nikos Kazantzákis, talvez o maior escritor grego do século XX, copio abaixo dois trechos do prólogo para que vocês se deliciem:


"Se hoje, em todo o mundo, eu fosse escolher um guia espiritual, um "Guru" como dizem os hindus, um "Mentor" como dizem os monges do Monte Athos, certamente eu escolheria Zorbás, porque ele tinha tudo aquilo que um escrevinhador necessita para subsistir: o olhar primitivo que capta das alturas, como uma flecha, o seu alimento; a simplicidade criativa, renovada a cada manhã, a perceber incessantemente todas as coisas como se fosse pela primeira vez e a conceder virgindade aos eternos elementos cotidianos - ar, mar, fogo, mulher, pão; a firmeza da mão, o frescor do coração, a coragem de caçoar de sua própria alma, como se ele tivesse internamente uma força superior à alma e, por fim, a áspera risada gorgolejante, vinda de uma fonte profunda, mais profunda do que as entranhas do homem e que, nos momentos críticos, irrompia libertadora do velho peito do Zorbás, irrompia e podia demolir (e demolia) todas a barreiras - moral, religião, pátria - que o homem, infeliz e medroso, ergueu em torno de si para mal e mal tocar com segurança sua vidinha".

[...]

"Se eu tivesse ouvido a voz dele - não a voz, o brado - minha vida teria adquirido valor: eu viveria com sangue, carne e ossos tudo aquilo que agora, como um narcotizado, considero e realizo com papel e tinteiro. Mas não ousei. Eu via Zorbás em plena noite a dançar relinchando, a gritar para que eu também me arrojasse da confortável concha do bom senso e do hábito e com ele partisse para grandes viagens: e eu ficava imóvel, tiritando. Muitas vezes em minha vida senti vergonha por conter minha alma para que ela não ousasse fazer tudo aquilo que a suprema loucura - a essência da vida - conclamava-me a fazer, mas nunca me envergonhei tanto por minha alma como diante de Zorbás".

E isso é só o começo. Na orelha do livro está escrito: "Zorbás consegue ser ao mesmo tempo um romance de aventura, que se lê com febre, e um romance de formação, que transforma". Há uma edição recente traduzida diretamente do Grego. Nas edições antigas, o título em português era “Zorbás, o Grego”, por causa do filme, grande sucesso de bilheteria nos anos 60. Mas eu gosto mais do romance, embora haja quem prefira o Zorbás do cinema. É que a interpretação de Anthony Quinn no papel está impecável. No filme, porém, as inquietações do outro personagem, o escrevinhador, ficam por demais apagadas.

Referência do livro:

Nikos Kazantzákis. Vida e Proezas de Aléxis Zorbás. Editora Grua, 2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cinco Lições de Poesia: Akira Kurosawa e o sentido último do amor


Quando li MacBeth no Laboratório de Humanidades, fiquei sabendo do filme “Trono Manchado de Sangue” do Akira Kurosawa, uma recriação cinematográfica para a peça do Shakespeare. Na época eu já ouvira falar do diretor japonês, mas nunca tinha assistido a um filme dele até que, de repente, ou melhor, porque participei do Laboratório de Cinema nesse semestre, em menos de um mês assisti a cinco filmes do Kurosawa: “Duelo Silencioso”, “Cão Danado”, “Viver”, “O Barba Ruiva” e “Dersu Uzala”. E posso dizer que redescobri o mundo pelo viés japonês, um mundo em preto e branco tão denso e vertical quanto aquele bergniano, mas poeticamente diferente.

Os filmes do Kurosawa são profundamente japoneses, eu acho, embora o Japão o tenha acusado de ocidentalizar demais a cultura nipônica. Sinceramente não sei opinar sobre isso, mas posso dizer que, em comparação com os filmes do Bergman, por exemplo, os argumentos do Kurosawa são muito mais cotidianos, suas narrativas mais simples e lineares. Em Kurosawa tudo parece ser o que é, sem muita abstração: chão é chão, tempestade é tempestade.

Dizem até que Kurosawa levava dias para gravar uma única cena de chuva à espera de uma que fosse verdadeira. Mas mesmo com poucos recursos, e quase nenhum efeito especial, sua paixão pelo cinema o levou a narrar grandes histórias, a criar personagens heróicos e inesquecíveis, a trabalhar com atores magníficos que o ajudaram a transformar essa dedicação em grande arte. Apesar do seu didatismo, porque em seus filmes os valores morais vão sendo não apenas manifestos, mas clara e dignamente defendidos por seus “mocinhos”, suas criações são como um extraordinário transbordamento da alma humana em rara poesia.

E assim como em toda rara poesia, novas palavras e outras imagens serão sempre insuficientes para recriar o clima dos filmes do Kurosawa, cuja experiência singela de assisti-los é certamente indescritível. Mas creio que posso contar ao menos como a grandeza desses filmes modificaram o meu egoísmo, já que todos eles falam do amor, do amor em seu sentido mais último.

Duelo Silencioso (1949):


Em “Duelo Silencioso” assistimos ao conflito interno entre os desejos de um homem e seu dever como cidadão e médico. A consciência moral do jovem Kyoji é tão profunda que fiquei abalado questionando o meu próprio agir. Num tempo em que reina a satisfação imediata dos desejos, em que não sabemos mais lidar com mínimas frustrações, a hipótese de eu me sacrificar daquele jeito por alguém me pareceu quase absurda. O comportamento extremamente ético do Dr. Kyoji e sua resignação ao sofrimento são lições ao egoísmo que todos nós resistimos tanto em abrandar.

Cão Danado (1949):


Nessa mesma linha da consciência moral, em “Cão Danado” é o limite da responsabilidade que determina a descida aos infernos do personagem principal, Murukami, um jovem detetive que se abala ao ver sua pistola roubada ferindo pessoas inocentes. É na contradição de se sentir culpado por crimes que de fato ele nunca cometeu que o atormentado personagem nos faz refletir sobre a real responsabilidade que temos pelo mal que nos ronda. Numa aparente absoluta bobagem, a obsessão de Murukami em se martirizar por uma simples distração me fez tomar consciência de pequenas leviandades que pratico quase “sem querer” no meu dia a dia, mas que na verdade não passam de variações de egoísmo e falta de consideração pelo outro.

Viver (1952):



“Viver” trata dos efeitos devastadores que uma vida burocrática pode provocar num homem. Assim como na novela “A Morte de Ivan Ilitch” de Tostói e em “Morangos Silvestres” do Bergman, Kurosawa nos alerta sobre a teima de nos distrairmos da vida e só nos atentarmos a ela quando a morte já é certa. Mas diferentemente do que acontece nas narrativas de Tolstói e Bergman, em que Ivan Ilitch parece encontrar na agonia um significado transcendente, e o Prof. Borg um sentido no amor ao abrir-se para o novo e para o outro, a vida do Sr. Watanabe se completa no trabalho doado à comunidade. Outra vez é pelo sair de si mesmo, ou talvez pelo abrandamento do egoísmo, que o filme nos propõe “viver”.

O Barba Ruiva (1965):


Em “O Barba Ruiva”, Kurosawa nos coloca diante de um verdadeiro mestre, cuja sabedoria e senso de justiça transcendem sua própria condição de médico. No século XIX, O Dr. Kyojio Niide (apelidado carinhosamente de “O Barba Ruiva”) dirige um hospital numa pobre e remota aldeia japonesa, sendo respeitado, querido e temido por todos. Já o jovem médico Dr. Yasumoto, que contra a própria vontade se vê obrigado a viver e trabalhar com o Dr. Niide, o contrapõe com sua arrogância. Formado cientificamente na melhor escola de medicina da região, ele havia se preparado para se tornar um profissional importante, que cuidasse de pessoas importantes.

O Dr. Barba Ruiva, porém, não nega a ciência, embora não acredite piamente nela. Sem priorizar a comprovação científica e a perícia técnica, ele de fato olha e enxerga as pessoas. Por isso seus métodos de tratamento vão muito além dos protocolos. Assim, diante de uma realidade miserável, lidando com pacientes terminais e desamparados, o Dr. Barba Ruiva, ao tratar todos com consideração e humanidade, aos poucos cativa o jovem Yasumoto, que passa não somente a respeitá-lo, mas a verdadeiramente “humanizar-se” com ele, reconsiderando suas posições como homem e médico.

Esse é mais um filme grandioso de Akira Kurosawa, que nos interpõe o homem para além de nossas idealizações. O Dr. Niide, por exemplo, não é um médico “bonzinho”, tampouco faz questão de se mostrar agradável. Ao contrário, muitas vezes ele é implacável, violento. Sua cara amarrada é uma lição para todos nós que costumamos confundir o riso fácil com boa índole, a perfeição hipócrita com bondade. O homem, para o Dr. Niide, é “um animal”, como diria Zorba, o Grego*: “você lhe fez o mal? Ele o respeita e teme. Você lhe fez o bem? Ele arranca seus olhos”. Humanizar-se, então, nessa perspectiva, é uma questão de reconhecer-se justamente imperfeito. E imperfeito, embora justo, é o Dr. Barba Ruiva, que não vacila em quebrar literalmente os ossos dos malfeitores, ainda que depois cuide de consertá-los amorosamente.
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*Nikos Kizantizákis. Vida e Proezas e Alexis Zorbás. 3ª Edição. São Paulo: Grua, 2011.



Curiosidade: Thoshiro Mifune, ator principal de "Duelo Silencioso", "Cão Danado", "O Barba Ruiva", entre muitos outros filmes do diretor japonês, rompeu com Kurosawa durante a atuação em "O Barba Ruiva" por ter sido obrigado por ele a manter uma barba natural por dois longos anos, tempo que duraram as filmagens. Durante esse período, o grande ator japonês não conseguiu outros papéis.

Dersu Uzala (1975):


Frustrado e desapontado com a incompreensão que a cultura japonesa dispensava a seus filmes, Akira Kurosawa tentou o suicídio em 1971. Uma vez auto-exilado na União Soviética, entregou-se às filmagens dessa produção russa para ganhar, em 1975, o Oscar de melhor filme estrangeiro. “Dersu Uzala” é um filme sobre o encontro de mundos opostos, sobre a amizade, o envelhecimento, e, sobretudo, é um ensaio sobre a insuficiência humana. De belíssima fotografia colorida nos campos da Sibéria, Kurosawa dirigiu essa película como um tratado poético sobre as dificuldades de sobrevivência numa civilização que cada vez mais se encaminha para a padronização, a fragmentação e a artificialização da vida.

Como em Dostoiévski, que no romance “O Idiota” encarna o Bem na figura de um nobre que mais se parece com um “iuródiv”, misto de bobo, mendigo, louco e vidente na tradição russa, Kurosawa encarna o Bem na pele de Dersu Uzala, um velho caçador mongol que, por amizade, decidi guiar a expedição topográfica do capitão Vladimir Arseniev, um explorador czarista no início do século XX.

Sim, amizade, esse é o grande tema do filme, ou pelo menos aquele que primeiro nos impressiona: Dersu e Arseniev, dois estranhos que se elegem amigos num encontro improvável na Sibéria. Então Dersu, íntimo da floresta, salva inúmeras vezes a vida do capitão. E o capitão, por sua vez, o apóia e o acolhe quando a velhice por fim se impõe ameaçando a sobrevivência do experiente caçador na selva.

Dersu é um homem simples, confundido com a natureza, que conversa com os animais, com o fogo, com a água, com o vento. Já Arseniev, embora ele seja um pesquisador científico, é de uma espécie rara, que nunca se mostra arrogante. O encontro dos dois não é de tolerância, pois, ainda que de mundos distintos, não há oposição entre eles. Há, sim, empatia, amizade, e recíproca sabedoria, pois nenhum dos dois se reconhece melhor do que o outro, apenas diferente. E, nessa diferença, esses dois mundos se tocam numa relação fraterna que podemos chamar de amor.

Dersu Uzala é, definitivamente, um filme transformador. Por ele somos mobilizados a olhar terna e amorosamente para o outro, sem que isso implique no desejo de assumir a vida desse outro, muito menos na vontade de modificá-lo de acordo com as nossas conveniências. É o que acontece, por exemplo, quando enfraquecido pela velhice, Dersu deixa de ser quem ele é para se proteger na cidade, na casa do amigo Arseniev. Forçado, então, a afastar-se essencialmente de si, nosso herói se desumaniza tomado por uma aterradora infantilização. Contraditoriamente, porém, só o veremos renascer no enfrentamento da própria sorte.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

Arte que Espelha a Vulnerável Condição Humana

O Sonho (Pablo Picasso, 1932).

“A arte é perigosa; sim, ela nunca pode ser casta; se casta, não é arte” (Schama, 2010). Assim falou Pablo Picasso sobre essa indecifrável, misteriosa coisa, que para além de representar o belo em nossas vidas, nunca se cansa de destruir o que há em nós de mais banal. Tal qual Minós, figura dantesca que na Divina Comédia enrola os pecadores em sua cauda para lançá-los aos círculos do Inferno, é próprio da arte nos atirar nesses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo” (Leiris, 2001), num toque de graça e reconciliação, é verdade, embora a entrega genuína à arte possa de fato ser perigosamente transformadora.

Bentinho, no romance Dom Casmurro de Machado de Assis, procurando atinar o espírito curioso, inquieto, enigmático, provocador e sedutor da menina Capitu, afirma que ela tinha “olhos de ressaca”, que traziam em si um “fluido misterioso e energético” numa força irresistível que o atraía. A arte literária, assim como os olhos de Capitu, parece possuir essa mesma dinâmica de uma onda que se retira da praia em dias de mau tempo e que na volta nos arrasta por domínios internos tão desconhecidos e ameaçadores quanto gozosos são os olhos da amada. Nisso parece residir o mistério de um bom livro, na capacidade de nos tragar para dentro de nós mesmos e nos devolver inteiros para a vida.

Há muito se discute que arte não é apenas prazer e fruição, mas uma forma segura de se adquirir conhecimento. “A literatura instrui deleitando”, afirma Compagnon (2009), que se remete a Émile Zola para dizer que “um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos”. Teria, portanto, a literatura o poder de nos tornar seres humanos melhores? Seria uma ferramenta de melhor compreensão do mundo? Um método de educação dos sentimentos e dos afetos? A literatura, enfim, funcionaria assim como um remédio para os males da alma dotada de poderosa força humanizadora?

De Marcel Proust a Roland Barthes, de Charles Baudelaire a Paul Valéry, de Michel Blanchot a Antoine Compagnon, as publicações pertinentes estão repletas de artigos que se dedicaram a responder como a arte e literatura operam na vida de todos nós. Ítalo Calvino, por exemplo, revela que as coisas que a literatura pode ensinar são “pouco numerosas, mas insubstituíveis”, como “a maneira de ver o próximo e a si mesmo”, de “atribuir valor às coisas pequenas ou grandes”, de “encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela,” e “o lugar da morte”, além de outras coisas “necessárias e difíceis” como “a rudeza, a piedade, a tristeza, a ironia e o humor” (Calvino, 2006).

Leiris (2001), ao sintetizar o conceito estético que norteava a obra do poeta moderno Charles Baudelaire (1821 - 1867), segundo o qual “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”, nos aproxima de uma zona de inquietação e desconforto proporcionado pela arte, onde o homem, tocado pelo Belo, confronta-se consigo mesmo (zona de tangência). Segundo Baudelaire, a arte se dá pela conjunção de duas metades, uma eterna e imutável, outra transitória e fugidia, onde um elemento reto (o eterno) se coloca lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e fluídos. É, então, nessa zona delicada de tangência onde grandes e pequenas epifanias podem acontecer numa voragem capaz de nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

Por isso acredito que tanto na poesia de Baudelaire, quanto nas mais tocantes obras de arte, haverá sempre uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada do belo haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente atraente. “O erotismo genital, as touradas, as tragédias, a grande arte são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários” como motor da estética artística: reto e torto, luz e sombra, virtude e vício, união e separação, contração e relaxamento (Leiris, 2001). São nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste encontram-se dispostos sob efeito de tensão e perigo, que mais facilmente vemos irromper da crosta que somos o que temos de mais inesperado, oculto e perturbador. É nessa zona de tensão que o poder da arte espelha nossa vulnerável condição humana.


Referências Bibliográficas:

Baudelaire, C. O Pintor da Vida Moderna. In: A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Calvino, I. Assunto Encerrado. Discurso sobre Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Compagnon, A. Literatura Para Quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

Schama, S. O Poder da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Bergman, Bergman, Bergman: Amavio!

Tive o privilégio de assistir “Sonata de Outono” na telona. Não, não foi em 1978, época em que Ingmar Bergman lançou o filme. Foi no começo desse ano quando, por indicação de uma amiga, fui me despedir do “Cine Belas Artes”. Sai da sala tal qual a Sônia me disse que saíra, literalmente doído. Já na rua me persistia um vazio, um nada, difícil de entender, pois afinal tratava-se de um Bergman. Era como se durante a sessão uma substância estranha tivesse sido injetada em mim, um amavio, um encanto, talvez, cujo efeito naturalmente demorasse a acontecer. Mas aconteceu.

No outro dia à tarde, quase 24 horas após, ainda sob o efeito de um nada, devagarzinho, tive o impulso de procurar na internet a cena em que Eva (a filha) impõe a Charlotte (sua mãe) a morte do pequeno Erik (seu filho), e cuja fala longa e intensa, ali na fluidez das legendas, me fez lembrar algo de Dostoiévski: Deus, demônio, santos, profetas, artistas, iconoclastas, palavras que então lidas por mim rapidamente na tela iam se misturando à rudeza do idioma sueco, ao mesmo tempo em que a voz suave e melancólica de Liv Ullmann (Eva), sob o olhar pequeno e angustiado de Ingrid Bergman (Charlotte), que na minha frente parecia se contorcer de reprovação e dor, me faziam perceber o quanto “Sonata de Outono” era mesmo um filme grandioso, ainda que no final eu tivesse sido tomado por certa anestesia.

O fato é que inicialmente eu não consegui encontrar a tal cena no Google, mas revi no Youtube a inesquecível aula de piano em que Charlotte, uma pianista célebre e tecnicamente perfeita que, sem humilhar propriamente a filha, não consegue deixar de derramar sobre ela seu olhar compassivo e arrogante, exteriorizando assim a superioridade e o distanciamento que essa mulher sempre fez questão de estabelecer na sua relação com a família e com a própria vida. Foi então que atingi o paroxismo da substância: passei a me sentir estranho, incomodado, impactado, embevecido pelo magnífico texto do Bergman, pela grandeza das atrizes, e por tudo que eu não fui capaz de compreender no filme.

Dias depois, baixando e assistindo novamente o filme, agora porque iria discuti-lo com o grupo do Laboratório de Cinema, finalmente transcrevi a fala que no “Belas Artes” tanto me impressionou:




[...] Não há linha divisória, nem muralha intransponível. Eu queria saber como é a vida onde meu filho vive. Eu sei que não dá para descrever. É um mundo de sentimentos livres. Sabe o que eu quero dizer? Para mim, o homem é uma criação incrível, uma ideia inconcebível. No homem, existe tudo, do começo ao fim. O homem é a imagem de Deus e, em Deus, existe tudo. E o ser humano foi criado, mas também os demônios, os santos, os profetas, os artistas e os iconoclastas. Tudo existe paralelamente. São como padrões grandiosos mudando o tempo todo. Da mesma forma, deve haver inúmeras realidades, não só esta que percebemos com nossos sentimentos embotados, mas um amontoado de realidades se sobrepondo umas às outras. É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos nem para os sentimentos. Ao tocar a parte lenta da sonata de Hammerklavier você deve sentir que o mundo não tem limites em uma atividade que você nunca entenderá nem explorará.



Soube que essa foi a última interpretação de Ingrid Bergman para o cinema. E que nas filmagens ela já estava consciente da gravidade do câncer que a mataria quatro anos depois. Em matéria de cinema, eu me considero um ignorante. Sou daqueles que não sabe dos diretores, que nunca guarda como se pronuncia o nome complicado dos atores estrangeiros, e que se esquece rapidamente dos argumentos. Dos mais de sessenta filmes do Bergman, “Sonata” foi o quarto que assisti. De Ingrid Bergman eu sabia apenas de “Casablanca”. Liv Ullmann era para mim uma referência distante, pensava que fosse talvez uma atriz americana, e não norueguesa.

Bem, não vou ficar aqui destilando meu desconhecimento cinematográfico, mesmo porque nada disso importa. O que importa é que com esse filme o cinema de Bergman se apossou de mim. Tanto que jamais me esquecerei da conturbada vida afetiva daquelas duas criaturas hipersensíveis, mãe e filha, numa relação de afeto e desafeto, amor e desamor, compreensão e incompreensão, alto apreço e pequenez, sentimentos tão comuns a todos nós seres humanos, especialmente quando nos é dado viver nos extremos, tanto nas alturas de uma vida profissional bem-sucedida pretensamente destinada à perfeição, como quando vivemos à sombra de tudo isso, jogados à insignificância de nós mesmos. Do embate entre essas duas mulheres vi jorrar da tela solidão, angústia, dor e sofrimento. E na minha pele senti os efeitos destrutivos de uma vida obsessiva, incapaz de tolerar as imperfeições de ser gente, quanto mais amar e acolher as imperfeições do outro. Mesmo assim não considero Charlotte uma mulher desumana. Charlotte é mais uma sofredora, numa espécie de “analfabetismo afetivo”, expressão que o próprio Bergman explorou em “Cenas de um Casamento”, outro de seus grandes filmes.

Impossível exprimir aqui tudo o que tenho sentido nessa minha fase cinéfila. Se eu fosse pegar Lars Von Trier, por exemplo, para tentar explicar porque quase desmaiei duas vezes assistindo “Anticristo”, soaria até ridículo. Quem acreditaria que aquela mulher maligna pudesse mexer comigo a ponto de me escurecerem as vistas? E que eu precisei pausar o filme duas vezes para molhar a nuca e os pulsos? Já em “Dogville” uma surpresa, um entusiasmo, e eu indignado pela capacidade que o homem tem de humilhar, abusar, maltratar alguém daquele jeito. E depois ainda experimentar a contradição de vibrar contente na cena do extermínio final.

É verdade que em 2010 eu já participara do Laboratório de Cinema. E que por causa disso eu assisti “O Sétimo Selo”. Mas em 2011 a sétima arte passou a me espreitar diferente. Ela agora flerta comigo, e me seduz. Talvez porque o mergulho no Laboratório de Cinema tenha sido mais intenso. Nesse ciclo resolvemos estudar o cinema de autor para nos aprofundar na arte de dois grandes cineastas: Ingmar Bergman e Akira Kurosawa. Também tenho me deslocado semanalmente para frequentar na PUC um curso teórico do Prof. Luiz Felipe Pondé: “Cinema e Religião - Lars Von Trier, Kieslowski e Bergman”. Com um pouco de exagero, acho que se eu continuar nesse ritmo assistirei mais filmes nesse ano do que já vi em toda minha vida. E olha que eu sou do tempo em que se via Mazzaropi e Derci Gonçalves na Sessão da Tarde.

Mas a minha obsessão atual é mesmo bergniana. Vou relacionar na ordem os filmes que assisti dele nos últimos tempos: “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno”, "Sonata de Outono", “Morangos Silvestres”, “Persona”, “Gritos e Sussurros”, “Fanny e Alexander” e “Através de um Espelho”. Com exceção de “Gritos e Sussurros”, que eu pouco entendi e quase não me identifiquei, todos os outros foram uma explosão. Explosão de beleza. Explosão de sentimentos. De perplexidades. Se eu disser que gostei mais de “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno” certamente gritará. Se eu eleger “Sonata de Outono”, “Persona” calará fundo em mim. E como eu não quero, não posso, e não saberia agora me colocar crítica e afetivamente diante desses filmes, assumo o risco e escolho “Morangos Silvestres” para continuar um pouco mais com Bergman antes de finalizar.

Aliás, já citei aqui “Morangos Silvestres” quando publiquei o post anterior: “Eu, Antonius Block”, que começa assim:



Fui à Praça Roosevelt com a Neusa, no antigo Cineclube Bijou, assistir Bergman. Meados da década de 90, “Morangos Silvestres”. Do filme só me lembro que era em preto e branco e que contava a história de um velho viajante. Mais nada.

Mais de vinte anos depois, no entanto, descubro que tenho muito de mim naquele homem de 78 anos. Que a trajetória existencial dele poderia (e poderá) muito bem ser a minha. E que eu, aos 45 anos, talvez ainda continue sendo o mesmo garotinho tímido que um dia se deparou com esse velho no Cineclube Bijou, soube de suas angústias, lamentações, sofreu com o seu isolamento, mas não compreendeu nada, não se modificou em nada, porque na sua imaturidade não conseguia sair de si mesmo. Tem uma hora no filme em que a vida do Prof. Borg é avaliada num sonho. E ele é acusado de culpa. E sem compreender o veredito, o avaliador lhe explica que ele cometeu pequenos delitos, porém graves, como a indiferença, o egoísmo e a falta de consideração. “E qual será a pena?”, pergunta o velho médico. “Pena? A de sempre, creio. A solidão”, responde o juiz.

Mas eu tenho confiança, quem sabe ingênua, de não continuar sendo eternamente aquele garotinho. E de que eu consiga sair um pouco de mim mesmo. No fim da vida, o Prof. Borg ousou olhar corajosamente para a vida: abriu-se para o outro. Descobriu sobre o amor. Fiquei sinceramente feliz porque no final do filme um olhar risonho invade toda a tela. É um olhar para o infinito.

SINOPSES:
Sonata de Outono:


Uma pianista de concerto acaba de perder o homem com quem vivia há muitos anos. A filha, que está casada há alguns anos com um pastor e vive numa pequena cidade da Noruega, pede à mãe que a visite. Durante alguns dias, as duas mulheres confrontam-se. Umas vezes sentem repulsa pela outra, outras vezes procuram a sua companhia. Mas o encontro será crucial para o futuro de ambas. O que está em causa nessa relação é obrigatoriamente o amor: a presença e a ausência do amor, o desejo do amor, as mentiras do amor, o amor deformado, e o amor como a nossa única esperança para sobreviver.

Morangos Silvestres:

Um professor aposentado viaja de automóvel de Estocolmo até a universidade em que lecionou, a fim de receber um título honorífico. Durante a viagem, um pesadelo desencadeia uma série de associações mentais que o fazem recordar episódios de sua longa vida. O filme não vale para quem quer só diversão: é esplêndido, mas sério e difícil. Destaca-se pelo excelente uso do flashback, ótima fotografia em preto-e-branco, direção muito criativa de Bergman e interpretação brilhante do antigo diretor Sjöstrom como o velho professor. Vencedor do Urso de Ouro em Berlim.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

EU, ANTONIUS BLOCK





Fui à Praça Roosevelt com a Neusa, no antigo Cineclube Bijou, assistir Bergman. Meados da década de 90, “Morangos Silvestres”. Do filme só me lembro que era em preto e branco e que contava a história de um velho viajante. Mais nada.

Em setembro do ano passado vi “O Sétimo Selo” na minha casa, numa noite morna, todo a postos, porque o filme seria discutido no Laboratório de Cinema (*). Fiquei especialmente tocado pela interpretação do ator principal, Max Von Sydow, e pelo tom dos diálogos densos. Poucas vezes um filme me disse tanto à existência. Outros me emocionaram muito mais, me encantaram, mexeram com meus ânimos, me deixaram enternecido, intrigado. Mas “O Sétimo Selo” reverberou diferente: Bergman nos faz dialogar com a própria morte. E com o sentido da nossa vida.

Engana-se, porém, quem supõe que a experiência do filme é negra. Que lidar com a morte é ser tomado pela face rubra da existência. Não. O pensar sobre a finitude inevitavelmente nos remete ao agora, um agora lenitivo, que com graça e certa disposição de espírito pode nos oferecer refúgio no amor, na alegria e, sobretudo, na Arte. Sim, a vida é trágica, nunca venceremos a partida de xadrez, mas viver nem sempre é trágico. Incrivelmente essa mensagem redentora encontrei em “O Sétimo Selo”, pois embora nada, ou pouca coisa pareça fazer sentido, embora Deus insista em esconder seu rosto, como brada no filme Antonius Block, ainda assim a vida pode ser leve e suave como o olhar verdadeiro e puro de um artista.

Tamanho foi meu entusiasmo pelo filme que copiei duas cenas. E mandei para os meus amigos mais íntimos. Então agora, quando acabo de assistir meu ainda terceiro filme do Bergman, “Luz de Inverno”, e porque pretendo rever “Morangos Silvestres”, resolvi compartilhar com vocês o “Gosto do Infinito” daquela madrugada quente de setembro.




Abaixo dois diálogos com a morte que transcrevi:



O SÉTIMO SELO
Ingmar Bergman - Suécia, 1956.


Sinopse do Filme:

Suécia, Idade Média. Um cavaleiro, após as cruzadas, embora tenha lutado pela cristandade, tem dúvidas sobre a existência de Deus. A peste devasta o país, e, em meio ao ambiente de pessoas condenada à fogueira, acusadas de bruxaria, ao invés de se encontrar com Deus, se depara com a morte em carne e osso. O cavaleiro, para ganhar tempo, desafia a morte para uma partida de xadrez, com quem mantém profundos diálogos sobre o sentido da vida.




1ª Cena - Encontro com a morte.

[Cavaleiro] Quem é você?

[A morte] Sou a morte.

[Cavaleiro] Veio me buscar?

[A morte] Ando com você há muito tempo.

[Cavaleiro] Eu sei.

[A morte] Está preparado?

[Cavaleiro] Meu corpo está, mas eu, não.

[A MORTE AVANÇA]

[Cavaleiro] Espere!

[A morte] Está bem, mas não posso adiar.

[Cavaleiro] Você joga xadrez?

[A morte] Como sabe?

[Cavaleiro] Eu já vi nas pinturas.

[A morte] Posso dizer que jogo muito bem.

[Cavaleiro] Não é mais esperto do que eu.

[A morte] Por que quer jogar comigo?

[Cavaleiro] Isto é problema meu

[A morte] Está bem.

[Cavaleiro] Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me deixará em paz.

[Sorteando a cor das peças diz]: Jogue com as pretas.

[A morte] Bem apropriado, não acha?


3ª Cena - Confissão. Encontro com a morte em uma capela.

[Cavaleiro] Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.

[A morte] [DISFARÇADA] Agora quer morrer?

[Cavaleiro] Sim, eu quero.

[A morte] E pelo que espera?

[Cavaleiro] Pelo conhecimento.

[A morte] Quer garantias?

[Cavaleiro] Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa promessa eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?

[A morte] Sim, ouvi. (A morte se vira, para não ser reconhecida).

[Cavaleiro] Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.

[A morte] Talvez não haja ninguém.

[Cavaleiro] A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na ignorância de tudo.

[A morte] As pessoas quase nunca pensam na morte.

[Cavaleiro] Mas um dia na vida terão de olhar para a escuridão.

[A morte] Sim, um dia.

[Cavaleiro] Eu entendo. Temos de imaginar como é o medo e chamar esta imagem de Deus.

[A morte] Está nervoso.

[Cavaleiro] A morte me visitou esta manhã. Jogamos xadrez. Ganhei tempo para resolver uma questão urgente.

[A morte] Que questão?

[Cavaleiro] Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou reprovação como fazem as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco tempo que tenho para fazer algo bom.

[A morte] Por isso jogou xadrez com a morte?

[Cavaleiro] Ela tem táticas inteligentes, mas até hoje não perdi para ninguém.

[A morte] Como vencerá a morte no seu jogo?

[Cavaleiro] Tenho uma jogada com o bispo e o cavalo que ela não conhece. Quebrarei sua defesa.

[A morte] [MOSTRANDO SUA VERDADEIRA FACE] Lembrarei disto.

[Cavaleiro] Você é um traidor e me enganou. Mas nos encontraremos de novo, e eu acharei uma saída.

[A morte] Nos encontraremos e continuaremos nosso jogo.

[A MORTE SAI]

[Cavaleiro] Esta é a minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no céu e eu, e eu, Antonius Block, jogo xadrez com a morte.


________________________
(*) O Laboratório de Cinema é uma iniciativa dos alunos da Escola Paulista de Medicina que criaram o Projeto Nassal - Núcleo de Artes e Saúde Saltimbancos, que diretamente influenciados pelo Laboratório de Humanidades propõe “a discussão / reflexão de questões essencialmente humanas através das grandes obras do cinema universal”.
http://projetonassal.wordpress.com/laboratorio-de-cinema/


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

AO FOGO NEGRO

Laboratório de Humanidades,
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray:
um poema em prosa.

Às amigas Rozélia e Jacqueline.


Esvaneço de mim o que é cinzento, porque é do branco mais branco ao negro mais negro que a vida rutila. E o impacto se dá. Dorian Gray me atirou ao fogo negro. Estou ardendo. Quase cedendo à corrupção de algum livro amarelo. Você sabe como posso encontrá-lo? Me iniciaria em seus prazeres devassos? Exerceria sobre mim sua má influência? Ora, não se inquiete, que eu prescindo de você. Tenho o meu próprio veneno e salvação: as palavras que em mim fervilham [e contrastam minha alma sem vida].

Dorian Gray e eu passamos pela mesma sensação de fronteira ao conhecer Lorde Henry Wotton no ateliê do pobre, bom e apaixonado Basílio. Sentimos receio, e frenesi. Não ria! Sei que não sofro da beleza perfeita de Dorian Gray, mas as cínicas provocações, as verdades e meias verdades sedutoras e paradoxais de Harry me soaram como quando as bruxas de Shakespeare proferiram as tais palavras insidiosas que despertaram a ambição desmedida em Macbeth. Em Dorian Gray, as cordas da vaidade e do orgulho é que foram tocadas. Em mim, outra vez, é a voragem que ressoa.

O infinito e o abismo, abstrações concretas que suspendem o tempo e que resgatam em mim o sentimento oceânico. O que mais me fascina na literatura, e na arte, e no ser, é a experiência infinita do abismo. É o afã de quem beira crateras nos confins da existência. E reconhece no mal a dinâmica do belo, porque atrai.

Mas o que me atrai? Não é o capricho perverso que aniquila, mas a vida que se quer inteira, na audácia de vivê-la até as últimas consequências. "Cada um de nós carrega em si o céu e o inferno", disse Dorian Gray ao inocente Basílio. E é por isso que me sinto tomado, pela escatologia do bem e do mal ao alcance da boca, já que é no vão negro, no mais profundo escuro de mim, que a beleza faísca.

E o que é a beleza senão faísca?

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tudo é Vacilação: Afetos em Contraponto

“[...] Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” [Nélson Rodrigues] [1]


Eu, porém, eternamente iludido com o volume das coisas, invejoso de ainda não ter lido esta ou aquela obra, quase nunca releio, quase nunca revejo, quase sempre fico ansioso pelo próximo da lista, o que é lamentável, eu sei. É que existe no mundo uma pressa difícil de resistir, embora eu esteja devagarzinho me desacelerando para reler dois clássicos da literatura, “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, e “Contraponto”, de Aldous Huxley. Pretendo um dia enfrentá-los num grande embate, na minha suposta, futura, imprevista dissertação de mestrado, que por enquanto não se realizou nem como projeto. Quem sabe então eu consiga vencer, assim como Ulisses na Odisseia [2], o “mar nunca antes vindimado”, o “mar piscoso” das minhas hesitações e incertezas.

O poeta Baudelaire me contou certa vez que devemos sempre escrever poesia, mesmo quando em prosa. Ouvi dizer que Gilles Deleuze, o filósofo francês, dissera que “a partir do momento que você sabe, é inútil escrever”. E é isso mesmo, eu escrevo porque não sei, eu escrevo para tentar entender. Pois é assim que vou “construindo a minha própria beleza” [3], que vou me humanizando, pelo o que há em mim de mais atávico, a linguagem poética. Sinto que é pela escrita, pela palavra que medra, que sou. Antes da palavra nada em mim é e promete. Tudo é vacilação. Minha vida só borbulha mesmo na frase posta.

Já poetizei “Os Demônios” quando escrevi aqui “Tinta Russa”. Agora quero versar sobre “Contraponto” de Aldous Huxley, romance que vivi no semestre passado para o curso “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades”, ministrado pelos professores Dante Gallian e Luis Felipe Pondé. Apenas para localizar, “Contraponto”, publicado em 1928, antecipou o caráter visionário de Aldous Huxley, que em 1932 lançaria “Admirável Mundo Novo”, uma das mais ferozes denuncias contra os aspectos desumanizadores do progresso científico e material. Sinto, no entanto, que “Admirável Mundo Novo”, por ser uma distopia ambientada num tempo muito além do nosso, não traduz com a mesma veracidade que “Contraponto” o mal-estar de nossos dias.

Como o meu objetivo não é fazer crítica literária, mas expor o que em mim provoca a leitura de um livro, de chofre confesso meu afeto, minha paixão, pelo personagem Everard Webley. E essa predileção mexeu especialmente comigo, pois embora eu abomine o autoritarismo fascista de Webley, é justamente ele o cara que se mostra o mais convincente. Mas deixando por enquanto de lado a lógica do amor-bandido, também Mark Rampion e Maurice Spandrell indignaram e exaltaram os meus sentimentos.

“Toda vez que o homem quer ser mais do que simplesmente homem, não se torna melhor, mas um ser inumano”. Sinto que é esse o refrão do livro, repetido inúmeras vezes por Mark Rampion, que dominaria - eu tinha certeza -, as discussões no curso. Mas que nada! Só eu toquei e insisti no nome dele. Só eu o idealizei. Justamente ele que encabeça o discurso contra os ideais utópicos que nos afastam da “vida integral” com a promessa de nos tornarmos perfeitos. Rampion não crê em nada disso, não crê no que possa transcender a existência. Não acredita em Deus, tampouco na perfectibilidade do homem [4]. Não acredita que as ideias de progresso, que a moral, a ciência ou a ideologia política possam nos tirar da condição humana e animal para nos fazer retornar ao Jardim do Éden.

Mas o que mais me intriga em Rampion não é a sua lucidez ácida e prolixa, sua descrença, nem seu romantismo raivoso. É sua determinação em afirmar no homem a sua integralidade. Em não aceitar que a verdade esteja sempre no cérebro e nunca no coração, e vice-versa. O verdadeiro homem civilizado para Rampion é aquele que consegue englobar tudo, harmonizar a razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo. “A barbárie consiste em pender mais para um lado do que para outro. Os civilizados sabem viver com todo o ser”. Rampion considera William Blake, poeta e pintor inglês, o verdadeiro homem civilizado. E acusa Shelley, o grande poeta romântico, de não ter sido humano, mas “um misto de fada e lesma branca”, que “espiritualizava demais o amor”. Rampion admira a “carnalidade”, embora flutue no mundo das ideias numa ânsia pedagógica que ele mesmo sabe inumana. “É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”, brada. “O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam”.

Foi, porém, uma indagação do Pondé que virou a chave da minha leitura. E tantas outras portas se abriram. “Não seria insuportável conviver com Rampion? Ele não é um purista, um chato?”. De fato, o discurso de Rampion é extenso e repetitivo. Sua vida uma grande aula, onde ele é um professor empedernido. Mas se Rampion está humanamente distante de alcançar a perfeição - para a sua alegria e satisfação - ele é coerente e autêntico. Sua acidez não é corrosiva. Sua raiva é quase abstrata na esperança que sutilmente nutre pela humanidade. Seu ateísmo não lhe tira o sentido e o prazer da vida concreta, que apesar de sofrida, é o que lhe resta. “Spandrell se recusa a ser homem”, aponta Rampion. “Não é um homem, mas sim um demônio ou um anjo morto”. Mark Rampion sabe que a humanidade do homem se pulveriza tanto no bem quanto no mal absolutos. E que se não existe a possibilidade da transcendência, que sejamos ao menos éticos e felizes.

E é exatamente na ética que Rampion se distancia de um outro grande personagem, Maurice Spandrell, o “Peter Pan à Dostoiévski”, o “pequeno Nikolai” [5], o cínico dos cínicos, que vacila entre o bem e o mal absolutos e se entrega a uma existência que beira o inumano. A não superação do seu pequeno drama pessoal, a relação mal resolvida com a mãe, a nostalgia de uma vida feliz na infância, o atira definitivamente no abismo. O vazio e a violência em Spandrell se perdem em qualquer entendimento. Ele hesita se acredita ou não acredita em Deus. Hesita se a vida como ela é vale ou não vale a pena. E entrega-se à barbárie. Spandrell é o contraponto do homem integral “rampioniano”, porque ora é demônio, ora é anjo contemplando Deus numa sinfonia de Beethoven. Vivendo nos extremos, Spandrell esvazia sua humanidade e se perde e se mata na falta de ética.

Já Philip Quarles, personagem injustamente declarado frio e calculista, paradoxalmente passa pelo romance sofrendo pela consciência que tem de sua inabilidade emocional. Ele apenas não aprendeu a lidar com seus sentimentos, uma defesa, talvez, pelo fato de ser fisicamente aleijado. Huxley tentou obstinadamente torná-lo “o insensível”, “o racional” do romance, mas parece que essa foi uma criação que se rebelou. Terminamos o romance sensibilizados por ele, comovidos por sua integridade e, sobretudo, solidários com sua falta de jeito em lidar com as coisas do coração.

Numa determinada passagem, Philip Quarles faz uma reflexão sobre as pessoas que são notáveis em determinada esfera da vida, mas desprezíveis em outra. Cita o escritor Liev Tolstói, que em sua visão foi um excepcional romancista, mas detestável nas ideias sobre moral e religião. Uso esse exemplo um tanto tendencioso somente como ponte para me fazer voltar ao tema do amor-bandido, pois assim é Everard Webley, o amável repugnante, o líder dos “Ingleses Livres”, partido político fascista que na trama anseia chegar ao poder. Porque Webley, a despeito de suas posições políticas desprezíveis, é um homem admirável por sua determinação e disciplina. Seguro de si, sempre sabe a direção a tomar. E ele usa todo o seu poder de decisão não somente na política, mas também no seu amor por Elinor, a frágil mulher carente que vive um casamento gelado com o intelectual Philip Quarles. Webley é o homem viril que seduz montado literalmente num cavalo branco, e conquista a mulher. Infelizmente, ou felizmente, dependendo do ponto de vista, se político ou pessoal, a potência de Webley é anulada pelo vazio existencial de Spandrell.

A potência que se aniquila diante do vazio e do tédio. É o que me vem à cabeça quando penso no desfecho da história. Embora Webley seja evidentemente mais um contraponto ao homem ideal imaginado por Rampion - porque aposta todas as fichas no aperfeiçoamento da sociedade pelo viés social e político -, mesmo assim acredito nele como sendo o personagem que mais se aproxima do homem “rampioniano”: Webley está preso à materialidade da terra; a potência e a determinação de sua virilidade parecem indicar harmonia entre razão e instintos; por último, Webley ama e sofre sinceramente por amor.

Mas por que tal potência foi covardemente extirpada? Por que Huxley teria dado a Webley uma alma fascista? Talvez para nos mostrar que não existe o homem perfeito. E que somos vulneráveis na luta entre o bem e o mal. Afinal, isso é o que nos faz humanos.


E não dá para esquecer outro importante desfecho do livro: quem herda o paraíso na terra é a hipocrisia. Pelo menos é isso o que acontece em “Contraponto”. Embora a ambição e a sensualidade em si não sejam reprováveis, é o fingimento e as más intenções que as tornam desprezíveis. Para o personagem herdeiro huxleyano do “reino dos céus”, dinheiro e carnalidade são o que verdadeiramente interessa. Sua bondade é puro fingimento. Burlap é o seu nome, personagem representante de um dos produtos mais bem acabados da tal perfectibilidade, que criou esse homem moderno, o “homem extraordinário”, o “homem de ação”, prático, eficiente, técnico, que sabe ser “espiritual” quando conveniente e usa as emoções para mascarar sua ânsia de conquista e poder. O que importa é cumprir metas. O que importa é vencer. E Burlap venceu.

Em contraponto, e para finalizar, retomo a questão inicial de Nélson Rodrigues. Encontrei outro dia a Sonia, uma querida amiga e companheira de cursos da Casa das Rosas, e lhe mostrei com afã o trecho sobre a experiência fascinante da releitura. Qual foi minha surpresa quando ela me retrucou com um enfático “Não concordo!”. Depois me contou de um palestrante que se dirigiu a alguém na plateia e perguntou: “Você já leu a Odisseia?”. “Não, respondeu o rapaz”. Então o palestrante soltou uma estrondosa e intrigante resposta: “Que inveja eu tenho de você! Porque eu nunca mais vou poder sentir o mesmo entusiasmo, a mesma perplexidade que um dia eu senti quando li pela primeira vez a Odisseia. Parabéns!”.

Mínima culpa: Nada comentei sobre Marjorie e Lucy. Nem sobre Elinor, Beatrice, Mary... É que só agora me dei conta de que nada falei sobre as mulheres em “Contraponto”, embora grite o hedonismo niilista de Lucy e incomode a chatice e o tipo de salvação religiosa encontrada por Marjorie. Mas eu simplesmente me esqueci delas, depois me faltou vontade. Enfim, para o bem ou para o mal, hei de enfrentá-las numa releitura!


Notas:

[1] Assim como a Jacqueline, começo com o mesmo trecho de Nélson Rodrigues que ela abriu “Luz no Pântano”, artigo publicado recentemente no blog do Laboratório de Humanidades. Por ele me dei conta de que “existe entre Dostoiévski e Nélson Rodrigues um laço de família”, que são “almas parentas”, cujos personagens invariavelmente estão no limiar, em regiões abissais. Também me aproximei de um Nélson Rodrigues entregue, arrebatado, que faz tal afirmação sobre o fascínio da releitura. Referências: RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54. SAKAMOTO, Jacqueline. Luz no Pântano. Blog do LabHum. URL: http://labhum.blogspot.com/2010/08/luz-no-pantano.html.

[2] No Laboratório de Humanidades, acabamos de discutir Odisseia. Recomendo uma edição portuguesa primorosa. A clareza e a beleza dos versos fazem da leitura um deleite. Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2003. (Tem na Livraria Cultura).

[3] “Construir a própria beleza” é uma referência ao ideal grego de formação do homem (Paideia), segundo o qual o homem alcançaria a excelência humana por meio da areté - virtude - na medida em que se dedicasse ao belo, ao bom e ao justo, contemplando assim a verdade. Bem, como não estou lá muito seguro dessa definição, nada me resta senão escrever sobre isso. Em breve.

[4] Perfectibilidade do homem: conceito filosófico pelo qual se admite que o homem, por sua própria força e natureza racional, é capaz de alcançar à Perfeição por meio do progresso moral, social, científico e tecnológico. Não se trata do impulso natural que temos de aprimorar continuamente as coisas, mas da presunção humana de se sentir no centro do universo e autossuficiente. Trata-se, portanto, de acreditar que pela educação, pela inteligência, pelo raciocínio lógico e matemático, pelo progresso científico e tecnológico, em suma, pela racionalidade humana, o homem possa de fato dominar tanto as forças externas da natureza quanto o que há de interno e incontrolável nele. Para os perfectibilistas de ontem e de hoje, a Perfeição e a Felicidade são produtos de uma equação que pressupõe a supremacia da Razão sobre a Natureza. A perfectibilidade é a própria base das utopias modernas. Negá-la é desacreditar a autossuficiência do homem, assumindo assim uma atitude profundamente religiosa, ainda que desvinculada de qualquer instituição e/ou sistema doutrinário.

[5] Nikolai Stavróguin, personagem central do livro “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Impressionante por sua complexidade. Flutua no vazio, no tédio, no nada. Indecifrável, intrigante. Cruel, patife, demoníaco. Paradoxalmente atraente.

Bibliografia:

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

Huxley, A. Contraponto. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. 6ª Edição. São Paulo: Globo, 2001.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre Deus e a Razão Metafísica

Este texto foi escrito para a disciplina "Visão Teológica" que cursei no semestre passado. Apesar do tema parecer difícil, nele se esconde uma simplicidade desconcertante. Aprendi e desaprendi muito nesta escrita. Quem se habilitar, leia e depois me conte o sabor das entrelinhas. Posso parecer bobo, eu sei. Posso parecer pretensioso, eu também sei. Mas se repelimos de nós a zona do não-entendimento afastamos com ela o gosto do Infinito.

Eis a pergunta que eu deveria responder:

Explique a razão pela qual a existência de Deus não pode ser considerada uma teoria meramente científica.

René Descartes (1596 - 1650) foi uma das personalidades históricas que mais contribuíram para o desmoronamento do mundo antigo, tanto que na filosofia suas teorias são consideradas fundadoras do pensamento moderno. Se nas ciências naturais tivemos nomes que abalaram sobremaneira a supremacia religiosa da Idade Média, Descartes, além de principiar as bases do método científico, representou ao mesmo tempo uma “ruptura e um ponto de partida” (Ferry, 2007). Ruptura porque examina, critica, duvida e rejeita todas e quaisquer crenças anteriores herdadas da família, da Igreja, da nação ou de qualquer outra autoridade estabelecida. De espírito completamente livre, determina-se “sujeito” autônomo, capaz de decidir por si só o que é verdadeiro ou falso. O ceticismo radical de Descartes o leva a considerar nada mais como certo, salvo que uma certeza resiste a tudo, aquela segundo a qual eu penso, e até duvido, por isso “eu” existo. “Penso, logo existo”, é dele a máxima célebre da filosofia moderna. Ponto de partida porque ao dizer que era “preciso saber fazer tábula rasa do passado” e decretar o “eu” como única instância confiável de existir estabelece um princípio novo nunca antes imaginado: o homem no centro do Universo, plenamente racional, substituindo o cosmos dos gregos e a divindade dos cristãos. Descartes funda a filosofia moderna, a filosofia do sujeito, o humanismo, o antropocentrismo, o homem e sua razão no centro de mundo, como um deus de si mesmo.

Bornheim (2008) assinala que a razão, segundo Descartes a concebera, seria a potência motora que permitiria ao homem subjugar o mundo. “E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser soberanamente livre, deveria considerar a razão como a essência do seu ser, derivando dela as normas de seu comportamento”. E mais, “o homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista”.

Mas como conceber que Descartes, que levava sua vida na França do século XVII, estudioso que certamente sacrificou os melhores anos de sua vida para pensar e escrever suas ideias, ainda que tão geniais quanto controversas, tivesse sido capaz de engendrar, fora dos domínios do poder e da religião, teorias que sozinhas, ao transcenderem o seu tempo histórico, revolucionassem gerações?

É por isso que se torna mais fácil compreender certos movimentos históricos quando os visualizamos como uma espécie de grande onda, não uma tsunami destruidora, mas uma marola lenta e persistente que ao longo de anos, décadas e séculos vai envolvendo tudo o que encontra. Imagino essa onda banhando as consciências da Europa daqueles tempos retirando da tradição o seu sentido e a sua razão. Creio que nessa inquietação foram arrastadas personalidades tão díspares e antagônicas como o próprio René Descartes (1596 - 1650), Blaise Pascal (1623 - 1662), Baruch Spinoza (1632 - 1677), John Locke (1632 - 1794), George Berkeley (1685 - 1753), Immanuel Kant (1724 - 1804), Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778), entre muitos outros, conhecidos e desconhecidos, gente do povo, artistas, políticos, nobres, reis e governantes, que mesmo não participando da mesma cosmovisão e dos mesmos ideais, contribuíram para a formação do mundo que conhecemos hoje, onde as certezas e a aceitação dogmática da verdade deram lugar à dúvida, o mundo fechado deu lugar ao infinito, a ordem e a autoridade deram lugar ao caos que para muitos resultou na absoluta falta de sentido. “Emancipados das crenças do ato da criação, da revelação e da condenação eterna, nós, humanos, nos encontramos sós, por nossa própria conta”, como assinalou Gotthold Lessing (1729 - 1781).

Um dos maiores males do homem moderno consiste exatamente no que decorre da chamada supremacia da razão. Essa função analítica e crítica, o bom senso cartesiano, que os homens desde o século XVII vinham depurando, foi sistematizada e generalizada pelo Iluminismo, que a tudo fez subordinar à crítica, transformando a razão, portanto, em valor supremo. “Não valem mais as coisas, e sim os objetos pensados; o mundo passa a ser o mundo do homem; Deus, o Deus do homem”. O direito, a moral, a arte, assim como a ciência e a filosofia, deveriam ser explicadas a partir da razão (Bornheim, 2008).

Tendo sido as amarras do saber as primeiras a sofrerem a ação libertária do Iluminismo, rapidamente surge no cenário do século XVIII a noção de que os valores da sociedade devessem ser submetidos necessariamente ao conhecimento. Decorre dessa nova maneira de valorizar o mundo o cientismo, que nasce da premissa de que tudo é passível de ser inteiramente desvendado e transformado pelo intelecto humano. Essa nova maneira de ver o mundo, que adota como critério de verdade a demonstração com base em cálculos matemáticos comprovados segundo a realidade empírica, tenta impor os métodos próprios às ciências naturais a todas as demais áreas de investigação, inclusive à filosofia, às ciências sociais e às humanidades. É importante ressaltar aqui que os termos cientismo e o cientificismo podem se confundir, embora ao cientificismo esteja normalmente associada à manipulação política da ciência. Assim, apesar da crise romântica no século XIX, que insurge contra os excessos da razão, ocorre no mundo moderno uma verdadeira sacralização da ciência.

Os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que deixaram marcas profundas no estudo da natureza (com o evolucionismo de Darwin) e da sociedade (com o positivismo de Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria (com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri) e mesmo na religião (com o kardecismo). Tais correntes procuravam romper com as explicações abstratas e metafísicas, buscando desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica. Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade. Idéias como estas encontraram ampla acolhida no Brasil, sobretudo entre os grupos urbanos. Afinal, para diversos setores da elite política e intelectual nativa, nosso jovem país precisava seguir, após a abolição da escravidão e a proclamação da República, os rumos do "progresso" e da "civilização" sinalizados pela Europa (Schmidt, 2001).

Não é preciso muito para demonstrar o quanto esse racionalismo desmedido reduz e empobrece a experiência humana, visto que a realidade é sempre muito mais entrelaçada, difusa e misteriosa. É praticamente impossível marcar com exatidão onde cada coisa começa e termina. A fronteira do certo e do errado. O início do prazer e do desespero. Enfim, insistir em posturas moralistas, racionais e reducionistas é apostar na infelicidade e na incompreensão.

As coisas todas pertencem a mais de uma categoria e podem ser classificadas de mais de um modo. As coisas podem mesmo pertencer a categorias contraditórias. Portanto, nem todas as descrições ou afirmações precisam ser inteiramente falsas ou inteiramente verdadeiras” (Teixeira Coelho, 2001).

Vivemos de sensações imprecisas. Gostamos mais ou menos de um filme, amamos sem saber ao certo o por quê, fruímos uma poesia, um romance, uma música, mas o que neles nos agrada é indeterminado. O que Teixeira Coelho (2001) esclarece é que “as fronteiras entre todas as coisas, ou, de todo modo, entre a maioria das coisas que dizem respeito ao ser humano em sua vida diária, são difusas. E, no entanto, continuamos a sermos treinados para acreditar no contrário”. Ele nos incita a “exercitar o pensamento do tipo prismático”, que é o perceber a vida múltipla, colorida, nevoada... não maniqueísta, não monocromática, não monocórdica.


A realidade que atravessa um prisma revela facetas tão precisas ou imprecisas quanto os feixes de cores em que se decompõe um raio de luz: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul... Onde se inicia o feixe vermelho, onde acaba o feixe laranja? A física poderá, talvez, dizê-lo com precisão - ou acredita que possa fazê-lo, para o que lhe interessa. Mas a precisão da física não me é significativa para a vida diária, para o mundo, para a cultura, para arte... (Teixeira Coelho, 2001).

O exercício do “pensamento prismático” é fundamental porque reflete a própria condição humana. Ver a realidade da vida sob um prisma é aprender a reconhecer não apenas diferenças, mas tonalidades, matizes e nuances dentro da própria diferença. Existem infinitas combinações de cores, infinitos tons de vermelho e, no entanto, cada um deles continua sendo vermelho.

Sócrates, na República de Platão, diz que o homem tem uma “alma que se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”. E é assim que chegamos à metafísica, um modo paradigmático de raciocínio não-científico que dialoga com o coração e, contraditoriamente, com o pensamento prismático, pois ao se dirigir ao Todo da experiência, o pensamento metafísico nunca subtrai a importância de suas partes. Aristóteles assim tratou a Metafísica:


Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma ciência particular, pois nenhuma outra ciência considera o ser enquanto ser em geral, mas, depois de ter delimitado uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas.

Aristóteles ressalta que o objeto da metafísica é o “inteiro do ser”, enquanto as ciências particulares tratam das “partes específicas” do ser. A metafísica, portanto, diz respeito à essência e ao absoluto das coisas. Ainda segundo Aristóteles, “as categorias gerais que valem para o inteiro não coincidem com as que valem para as partes”; e ”as categorias que valem para as partes não podem ser estendidas completamente ao inteiro”. É por isso que Reale (2002) afirma que o grande erro da filosofia moderna e contemporânea foi ter assumido os métodos racionais das ciências particulares para a filosofia e, em especial, para a metafísica. Temos que pensar, portanto, que se há uma razão científica estabelecida, temos também uma razão metafísica, que quando não considerada deforma a ciência, visto que esta fica subtraída da noção do inteiro, perdendo sua consistência ontológica.

Sendo Deus o Absoluto, o Inteiro, o Uno, o que é simples e jamais composto, o Sentido transcendente que encontramos no horizonte de nossa experiência, que vai além das realidades finitas, corpóreas, imanentes, contingentes, passageiras e mutáveis, portanto objeto primeiro da metafísica, é fácil concluir o porquê de Deus não poder ser considerado uma hipótese meramente científica, já que a razão do método científico não é própria para abarcar o infinito, assim como não é própria para abarcar a verdade da beleza, da moral, da justiça, enfim, dessas categorias de coisas que não passam pelo crivo dos sentidos, que não possuem evidências empíricas, que estão além da matéria e, portanto, subjugadas a uma razão metafísica.

Porém, antes mesmo da razão metafísica, consideremos a questão do verdadeiro e da causa em Aristóteles:


Também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, porque o fim da ciência teórica é a verdade, ao passo que o fim da prática é a ação. De fato, os que têm por fim a ação, mesmo se observam o estado das coisas, não tendem ao conhecimento do que é eterno, mas só ao do que é relativo a determinada circunstância e num determinado momento. Ora, nós não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa. Mas qualquer coisa que possui em grau supremo a natureza que lhe é própria constitui a causa em virtude da qual também às outras convém a mesma natureza: por exemplo, o fogo é quente no grau máximo por ser a causa do calor das outras coisas. Portanto, o que é causa do ser verdadeiro das coisas que dele dependem deve ser mais verdadeiro que todas as outras. É pois necessário que as causas e os seres eternos sejam mais verdadeiros que todos os outros, pois eles não são verdadeiros só algumas vezes, e não há uma causa anterior para seu ser, mas são eles as causas do ser das outras coisas. Por conseguinte, cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser.

“Não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa”. Essa máxima aristotélica foi desenvolvida por São Tomás de Aquino (1225 - 1274) em sua Suma Teológica, quando descreve a 2ª via de demonstração da existência de Deus. Nessa obra, Tomás de Aquino ensina que “Deus é o princípio e o fim de todas as coisas” e que é possível provar Sua existência sem recorrer a argumentos religiosos ou dogmáticos, mas à luz da razão metafísica. São Tomás de Aquino propõe cinco vias de demonstração, assim sintetizadas:


1ª via - Primeiro Motor Imóvel: há que ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido, e um tal ser todos entendem que é Deus. O movimento aqui é considerado no sentido metafísico, isto é, passagem daquilo que pode vir a ser (potência) para o que a coisa é no momento (ato). Deus é ato puro e não sofre mudança.

2ª via - Causa Primeira ou Causa Eficiente: não se encontra algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio, o que é impossível. É necessário que haja uma Causa Primeira que por ninguém tenha sido causada. Essa Causa Incausada todos chamam Deus.

3ª via - Ser Necessário e Ser Contingente: existem seres contingentes, ou seja, que existem e depois deixam de existir. Todos os seres que existem no mundo são contingentes (desnecessários), mas há que ter um Ser Necessário (Deus), que sempre existiu, caso contrário algum dia o mundo não existiria. Do Nada Absoluto não surge e nem advém o Ser.

4ª via - Ser Perfeito e Causa da perfeição dos demais: há graus de perfeição nos seres, uns são mais perfeitos que outros. Há seres racionais, animais, vegetais e inanimados. Qualquer graduação pressupõe um parâmetro máximo, logo deve existir um ser que tenha esse padrão máximo de perfeição e é a Causa da perfeição dos demais.

5ª via - Inteligência Ordenadora: existe uma ordem admirável no universo. Toda ordem pressupõe uma inteligência ordenadora. Pelo acaso e pelo caos não se chega à ordem. Logo há um Ser Inteligente pelo qual todas as coisas são ordenadas a um fim e a Isso nós chamamos Deus.

Conclui-se que tudo o que existe está inserido numa série de causa e efeito, já que nada que observamos na natureza é capaz de se autoproduzir. Deus não pode fazer parte dessa série causal, pois, caso contrário, seria Ele também um efeito, o que, por sua vez, implicaria numa causa anterior. Há que se pensar que essa Primeira Causa, a Causa Incausada, é o que chamamos de Deus. Deus, portanto, está fora da série causal, logo não tem a mesma natureza dos seres que da série causal fazem parte. E é por isso que nós, seres contingentes, efeitos de uma série de causas infindáveis, somos privados da experiência sensível de Deus, pois Ele não é efeito, não é matéria da série causal, não é captado pelos nossos sentidos físicos e nem faz parte de nós, visto que se Dele tivéssemos uma ínfima parte, essa parte seria também matéria, o que é inconcebível.

Enfim, Deus não pode ser considerado uma teoria meramente científica porque não é empírico, não é sensível, não é material. É metafísico. Deus é o gosto do Infinito. Sentido e Causa. Eternidade e Vida.


Bibliografia (incompleta):

Ferry, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Fortes, L.R.S. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Guinsburg, J. (org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Todorov, T. O Espírito das Luzes. São Paulo: Editora Barcarolla, 2008.



Site Consultado:

Wikipédia - A Enciclopédia Livre. Existência de Deus: as cinco vias de São Tomás de Aquino. URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAncia_de_Deus.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tinta Russa, e o Método de Deus


O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.

Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.

Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.

Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.

Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.

Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.

Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.

Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.

Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.

Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.

Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.

Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.

Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).
Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.

E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:

Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)

E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.

Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.

Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)
“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.

Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.


Bibliografia:

Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.


Notas:

(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.

(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.

(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].

(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).

(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.

(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.

(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).