segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Em Zona de Tangência

O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério - Face a face...
(O Mistério do Mundo - Fernando Pessoa)


Mestres, poetas, filósofos, bruxos! Alguém que se apresente. Todos vocês, feiticeiros em geral, me arrastem que eu quero estar como Empédocles (1) à beira da cratera. Tenho em mim o imenso desejo de cair: anseio a epifania, o sagrado, o gosto do infinito.

Ah, o mistério! “Ele é a vida e a morte”. “Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo” (2). Foi o Rafael (3) que me insinuou esse Fernando Pessoa abissal. E que também me disse que as “verdades são epifânicas”. Juro, se eu não fosse tão afeito às agudezas da vida, teria sido arrebatado. Mas como posso decifrar esse mistério? Vou apenas desenhar aqui uma fina brecha por onde penetre ao menos um filete de luz.

Epifania é o afeto condensado ao limite da explosão: arrebatamento de amor, de piedade. É aparição ou manifestação divina. Revelação súbita da verdade que aplaca a razão e traz à tona a inteireza das coisas do coração.

Sabe quando você se depara com uma pessoa na rua, olha para ela, talvez em farrapos, e uma beleza injustificada salta daquele ser, seu coração soa mais alto, uma ternura invade a cena? Então você compreende tudo e enxerga naquela figura sua real nobreza, ao mesmo tempo em que o entorno desaparece, o momento se faz distinto, o peito infla de presença divina. Acontece em segundos, mas pode revelar o eterno. Isso é epifania.

Normalmente acontece em situações banais e pelos objetos mais prosaicos. Ou quando se está sensibilizado pela arte, pela literatura, pela música, na contemplação da natureza. De repente, um desarranjo na crosta que somos faz irromper o inesperado: o precipício que se abre e de onde emerge o que temos de mais oculto. Tudo o que é desvio, obscuro e sinistro desaparece. Tudo o que é perfeito, iluminado e belo desvanece. Não existe o bem, não existe o mal. Ali, na cratera de nós, não há divisão. Nasce a porção maior do prazer, o gosto do infinito.

E como já disse no texto inaugural desse blog, uma vez experimentado o infinito, por ele perseguimos a vida. Instaura-se, então, a grande busca, ainda que nem sempre encontremos um fim. A “busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar” (4). Seja como for, o que se busca são esses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”, nas palavras de Michel Leiris (5), poeta e ensaísta francês.

“Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem à obscuridade lodacenta donde haviam emergido”.

“Lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Michel Leiris, no ensaio “O Espelho da Tauromaquia”, explora essa tangência, associando-a primeiro às touradas, depois à arte, à poesia moderna, ao erotismo. O conceito é complexo, a prosa é poética. Roberto Alves, mestre que na Casa das Rosas me apresentou ao ensaio, colheu uma frase do texto escrevendo-a no quadro, em forma de pista:

“... a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”.

Oh Deus imanente, clareia. Oh Deus transcendente, dai-me as palavras dessa compreensão. Oh poeta moderno, Baudelaire, que na grande arte proclama uma metade transitória, fugidia, e na outra metade o eterno, o imutável, salvai-me dessa aflição tangente!

Michel Leiris foi genial no refinamento dessa concepção do poeta, quando determina uma região de experiência privilegiada onde o homem confronta - tangencia - o mundo e a si mesmo. Essa zona de tangência se dá quando um elemento reto (o eterno) está lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e de fluídos. Creio que é nessa zona de tangência que se dá a criação artística. É nela que grandes e pequenas epifania podem acontecer, e a verdade ser revelada, e uma voragem nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

As touradas, as tragédias, o erotismo genital, a grande arte, são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários como motor da estética moderna: uma metade reta e outra torta, uma bela e outra feia. Um lado sol e um lado sombra. Gotas de virtude e vício, união e separação, acumulação e dissipação, contração e relaxamento. Enfim, são nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste, dispostos sob efeito de tensão e perigo, nos colocam em condições de extrair mais facilmente o “eterno do transitório” de Baudelaire, ou as “verdades epifânicas” do Rafael.

No exemplo epifânico, quando o maltrapilho desperta o acontecimento pungente, certamente foi o conflito entre algum elemento reto e virtuoso, em contraste com sua condição torta e miserável, o estopim e o combustível da própria epifania. Na poesia de Baudelaire e nas mais tocantes obras de arte há sempre de haver uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada de virtude haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente encantador.

Embora epifania e arte sejam coisas distintas e não exista entre elas uma relação necessária de causa e efeito - a arte nem sempre provoca a epifania e essa acontece a despeito de qualquer manifestação artística - não se pode negar o poder sensibilizador da arte, tampouco deixar de reconhecer a superioridade das obras que nascem nessa zona de tensão, onde mais facilmente podemos ver espelhada nossa vulnerável condição humana.

Dentre os autores da nossa literatura, Clarice Lispector é certamente a escritora que mais construiu narrativas epifânicas. Tanto sua escrita é provocadora em nós, leitores, de tais experiências, quanto seus personagens são constantemente arrebatados por elas. A epifania, em Clarice, é o corte abrupto, o ritual de passagem que transvalora uma existência engessada na rotina e na trivialidade da vida.

Em “Perto do Coração Selvagem” (6), seu romance de estreia, Clarice descreve inúmeros momentos epifânicos de sua personagem Joana. Em um deles, estando ela sentada numa Catedral, são os “sons cheios, trêmulos e puros de um órgão” que subitamente detonam a sensação:

“As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-me dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu não temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”.

E na continuação, Joana / Clarice, plenamente consciente da verdade epifânica, é tomada pelo desejo de cair em si mesma, de transpor o abismo, de desaparecer na cratera.

“Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda”.

Haveria, assim, um atalho epifânico, uma tal situação ou lugar em que eu pudesse ali me colocar para viver e reviver a experiência vital? Como me pôr em zona de tangência?

Antes de tudo é preciso ter a determinação da cratera. E o afã de se deixar afetar pela vida. Depois é preciso se contaminar de um viver poético: afinar a pele, comover o olhar, a escuta, o paladar. Por fim, não deixar de se expor à grande arte, pois são os artistas os verdadeiros construtores de tangências: suas criações estão impregnadas de perigo e tensão. Por isso tenha coragem. Não tenha medo de se perder na trama ardente de acontecimentos, sentimentos e desejos próprios da arte, ainda que tudo pareça irreal, enevoado, talvez triste, fantasioso, fútil, cruel demais. Enfim, deixe-se possuir pelo entusiasmo do que é humano.

Creio que o “Laboratório de Humanidades” funcione como um desses construtores de tensão: facilitador de “acontecimentos interpelativos”, como diz o Prof. Dante, coordenador do Laboratório, cuja dinâmica de nos colocar em contato íntimo com a literatura clássica nos atira sem dó em zona privilegiada. Basta notar que agora estamos tentando entender a estranha vida de Joana. Ela é mesmo uma víbora? É chata? Amarga? Ou é uma mulher intensa e corajosa, determinada a estar sempre presente à vida que pulsa? Vejam que foi Joana e seu coração selvagem que despertou em mim toda a epifania desse texto. Preciso dizer mais alguma coisa: virei Clarice Lispector!

Antes de encerrar, uma questão derradeira: o simples colocar-se em tangência é garantia de revelações epifânicas? Frequentar tal zona de tensão é dar como certo o milagre epifânico da criação? É saber dos mistérios? Creio que não, já que tudo o que é humano é incerto. E citando Joana, indago: “Depois de ser feliz o que acontece?”. “Ser feliz é para conseguir o quê?”. Coisas de Clarice... Mas volto para tentar responder. Por enquanto voltemos como Empédocles à beira da cratera e do mistério.

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
(Fernando Pessoa)



NOTAS:

1. EMPÉDOCLES (495/490 - 435/430 aC) foi filósofo grego, médico, legislador, professor, místico e profeta. Sustentava a ideia de que o mundo seria constituído por quatro princípios: água, ar, fogo e terra. Tudo seria uma determinada mistura desses quatro elementos, em maior ou menor grau. Para Empédocles, duas forças fundamentais eram responsáveis pela manutenção do universo: O AMOR que unia os elementos (raízes) e o ÓDIO que os separava. Cedo virou figura legendária: ele mesmo se atribuía poderes mágicos. Conta a lenda que Empédocles teria se atirado na cratera do Etna, para provar que era um deus.

2. Fernando Pessoa e seu poema “O Mistério do Mundo”.

3. Rafael Ruiz é um dos dois coordenadores do Laboratório de Humanidades.

4. Palavras de Jorge Luis Borges.

5. Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

6. Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


POEMAS EPIFÂNICOS

O MISTÉRIO DO MUNDO
(Fernando Pessoa)

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
[...]
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
[...]
O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério – Face a face...


EPIFANIA
(Adélia Prado)


Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
‘Assim também, Deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
‘O café está pronto’.
Ai, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.


ALÉM-DEUS
(Fernando Pessoa)


I. Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.






terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Mal-Estar da Minha Pós-Modernidade

Seu nome reverbera em mim sensações primevas. Som que ecoa em chiados de memória, microfonia, e o tom de protesto nos anos 60: E Viva Cacilda Becker!, gritou Caetano Veloso no Tuca. Mas Cacilda, surpreendida, nada entendeu.

Bem mais tarde, já nos 90, das paredes em preto e branco do Centro Cultura São Paulo, vejo em exposição a figura enigmática dessa mulher de aura mítica, cuja imagem ainda flutua nebulosa em nosso imaginário: afinal quem foi Cacilda Becker?

Em 2002 li “Fúria Santa”, uma biografia da atriz que morreu há exatamente 40 anos após sofrer derrame cerebral, no palco, enquanto encenava “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Da infância miserável em São Paulo ao estrelato: foram mais de 80 peças, dezenas de teleteatros ao vivo, alguns poucos filmes e novelas, e a grandeza de uma mulher de voz pequena e anasalada, magra, muito magra, mas que mesmo assim dominava a platéia de forma irresistível. “O que é preciso deixar claro para a geração de hoje é que Cacilda não ficou grande depois que morreu, como acontece com a maioria dos mitos. Já era um mito em vida”, ouvi de Boris Casoy, nas páginas do livro.

Por isso recomendo “Fúria Santa” aos amigos. E por que não recomendaria? Sim, recomendo, ainda que confesse meu grande mal-estar: numa espécie de esgotamento disfarçado, eu seguia encantado e sofria escondido. Sofri, juro que sofri bem devagarzinho. Abandonei a leitura antes do capítulo final porque tudo aquilo era demais para mim. Ler a morte de Cacilda era como ver morrer em mim toda esperança de uma vida significativa. Cacilda era fascinante. Insuportável.

Tanta certeza. Tanto significado. Cacilda sabia e sempre soube. Cacilda era. Não havia dúvida naquela mulher, de pura vocação. Sem meias palavras, fiquei com INVEJA de Cacilda Becker. E passei a viver em crise, uma crise de sentido: eu haveria de alcançar a existência dos não-medíocres, dos bem-sucedidos, essa tal inclinação que a tudo torna significativo e transbordante.

De início fiquei paralisado no sentimento, que eu ainda não reconhecia como tal. Era uma ânsia, uma mera insatisfação, uma vontade. Sobrevieram questões típicas como “o que fazer”, “por que eu, afinal”, “ah, a felicidade...”. Depois o aforismo de Nietzsche, “Quem tem por que viver aguenta quase todo como”. E, então, uma sedutora determinação de procura, e as tangências do encontro.

Não foi, portanto, a INVEJA que me salvou?

A religião já se me tornara nostálgica demais. A metafísica e a transcendência, por não se deitarem nesse mundo, de pouco me serviriam. E o que seria afinal o mal-estar da pós-modernidade? Pressenti aí a salvação: eu precisava compreender o contemporâneo para nele me incluir.

Fui didático. Puxei e prendi a corda do tempo na Antiguidade. De comentador em comentador, um pouco de Sócrates, Epicuro, Sêneca. Afrouxando, Montaigne, Schopenhauer, Nietzsche. O iluminismo, o progresso, a perfectibilidade. Por fim, Zygmunt Bauman e a “Modernidade Líquida”. Seria “tomar o paraíso de um só golpe” percorrer agora toda essa aventura, e ainda por cima me detalhar nos males da contemporaneidade. Além do que, sendo exatamente esse é o sabor do blog: “o gosto do infinito”, certamente muito desses pratos serão servidos aqui.

Mas além de Cacilda, o fermento do meu bolo de chocolate, outras especiarias realçaram o sabor: Alice, o gato, e Osho.

Foi o gato de “Alice no País das Maravilhas” que me alertou para o óbvio: “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”. Serviu de ajuste de foco. Também é do livro de Lewis Carroll a passagem redentora:

“Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso”.

Vejo tanta correria, tanta competição, tanto estresse. E o perigo que ronda: estar ultrapassado; ser descartado. O que resta senão correr desesperadamente em busca do sucesso? No entanto, apesar do esforço sobre-humano para vencer, poucos são os que de fato saem do lugar. Foi assim que deixei de me sentir o perdedor, aquele que está sempre girando em torno da roda, mas que de fato nunca se vê inserido nela. Fui absolvido. A ciranda que girasse sozinha. Eu teria agora uma vida absolutamente comum.

Naturalmente muitos devem dizer que esse meu aparente desprezo pelo sucesso é sintomático do meu fracasso, das minhas covardias, e, principalmente, da minha falta de talento em geral. Sob um certo olhar, sim, já que sou humano. Mas sob um olhar mais generoso, não significa desprezo, nem fuga, mas senso de realidade e inteligência para perceber outras possibilidades de felicidade e realização que necessariamente não passem pela visibilidade e mensurabilidade da vida.

E aqui necessariamente chego às palavras de Osho:

A sociedade dá às pessoas, de muitas maneiras, a sensação de que elas são “extraordinárias”. Por isso é muito difícil não encontrar uma pessoa que, lá no fundo, não acredite que é especial, o filho único de Deus.

A pessoa comum é a pessoa natural. A natureza não produz pessoas especiais. Ela produz pessoas únicas, mas não especiais. Todo mundo é único à sua própria maneira.

Ser comum é a coisa mais extraordinária deste mundo. Basta olhar para você. Dói muito, é doloroso aceitar que você não é extraordinário. Então observe o que acontece quando você aceita a ideia de que é comum. Um grande peso sai dos seus ombros. De repente, você está num espaço aberto, natural, simplesmente do jeito que você é.

As pessoas são únicas, incomparáveis. Elas não podem ser comparadas, então como você pode dizer quem é inferior e quem é superior? A margarida é inferior à rosa? Como você vai decidir? Elas são únicas em sua individualidade. Toda a existência só produz pessoas únicas; ela não acredita em cópias.

Eu defendo a unicidade do ser humano. Sim, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser ela mesma. Em outras palavras, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser desigual, de ser única.

E foi assim, na crise da minha pós-modernidade, justamente quando me compreendi singular e pessoa comum, que o infinito em mim estremeceu e o horizonte gritou: viva a rotina, vida Adélia Prado. Mas essa é uma outra longa história.


E Viva Cacilda Becker: sobre o grito de Caetano Veloso

Em setembro de 1968, em tempos de ditadura militar, justamente quando Cacilda Becker era excluída da TV Bandeirantes por pressão da Censura Federal, ocorria a fase nacional do III FIC - Festival Internacional da Canção, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo.

Nos festivais de música, a arma de combate era a “festivaia”, uma vaia ensurdecedora acompanhada de tomates, ovos e qualquer outro objeto à mão. No dia 28 de setembro, o alvo era Caetano Veloso, que se apresentava na fase semifinal com a marchinha pop “É Proibido Proibir”. O uso de guitarra, símbolo do imperialismo ianque e a letra de sabor anarquista soaram acintosos para a plateia estudantil presente. Caetano estava consciente da provocação que fazia ao entrar no palco. Não conseguiu ultrapassar os primeiros versos: o público, em delírio, vaiou furiosamente. Caetano revidou: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada... Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais a quem? Àqueles que foram ao “Roda-Viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles; vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse viva aqui; não tem nada a ver com vocês”.

Caetano não tinha qualquer relação – pessoal ou profissional – com Cacilda. Seu brado em favor da atriz, por conta das perseguições que ela vinha sofrendo da Censura, surgiu de maneira que nem mesmo ele explica exatamente por quê: “Só vi Cacilda atuando uma vez. Foi em “Quem tem Medo de Virgínia Woolf?”, em 1965 ou 1966. [...] Eu sei que dizer aquilo era uma homenagem. Eu não achava que fosse ter maiores repercussões. Talvez dizer aquilo desnorteasse as pessoas que estavam lá”, afirma Caetano.



Livros citados:
Prado, Luis André. Cacilda Becker: Fúria Santa. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

Osho. O Livro da Sua Vida: crie seu próprio caminho para a liberdade. São Paulo: Cultrix, 2007.

Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.