terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Mal-Estar da Minha Pós-Modernidade

Seu nome reverbera em mim sensações primevas. Som que ecoa em chiados de memória, microfonia, e o tom de protesto nos anos 60: E Viva Cacilda Becker!, gritou Caetano Veloso no Tuca. Mas Cacilda, surpreendida, nada entendeu.

Bem mais tarde, já nos 90, das paredes em preto e branco do Centro Cultura São Paulo, vejo em exposição a figura enigmática dessa mulher de aura mítica, cuja imagem ainda flutua nebulosa em nosso imaginário: afinal quem foi Cacilda Becker?

Em 2002 li “Fúria Santa”, uma biografia da atriz que morreu há exatamente 40 anos após sofrer derrame cerebral, no palco, enquanto encenava “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Da infância miserável em São Paulo ao estrelato: foram mais de 80 peças, dezenas de teleteatros ao vivo, alguns poucos filmes e novelas, e a grandeza de uma mulher de voz pequena e anasalada, magra, muito magra, mas que mesmo assim dominava a platéia de forma irresistível. “O que é preciso deixar claro para a geração de hoje é que Cacilda não ficou grande depois que morreu, como acontece com a maioria dos mitos. Já era um mito em vida”, ouvi de Boris Casoy, nas páginas do livro.

Por isso recomendo “Fúria Santa” aos amigos. E por que não recomendaria? Sim, recomendo, ainda que confesse meu grande mal-estar: numa espécie de esgotamento disfarçado, eu seguia encantado e sofria escondido. Sofri, juro que sofri bem devagarzinho. Abandonei a leitura antes do capítulo final porque tudo aquilo era demais para mim. Ler a morte de Cacilda era como ver morrer em mim toda esperança de uma vida significativa. Cacilda era fascinante. Insuportável.

Tanta certeza. Tanto significado. Cacilda sabia e sempre soube. Cacilda era. Não havia dúvida naquela mulher, de pura vocação. Sem meias palavras, fiquei com INVEJA de Cacilda Becker. E passei a viver em crise, uma crise de sentido: eu haveria de alcançar a existência dos não-medíocres, dos bem-sucedidos, essa tal inclinação que a tudo torna significativo e transbordante.

De início fiquei paralisado no sentimento, que eu ainda não reconhecia como tal. Era uma ânsia, uma mera insatisfação, uma vontade. Sobrevieram questões típicas como “o que fazer”, “por que eu, afinal”, “ah, a felicidade...”. Depois o aforismo de Nietzsche, “Quem tem por que viver aguenta quase todo como”. E, então, uma sedutora determinação de procura, e as tangências do encontro.

Não foi, portanto, a INVEJA que me salvou?

A religião já se me tornara nostálgica demais. A metafísica e a transcendência, por não se deitarem nesse mundo, de pouco me serviriam. E o que seria afinal o mal-estar da pós-modernidade? Pressenti aí a salvação: eu precisava compreender o contemporâneo para nele me incluir.

Fui didático. Puxei e prendi a corda do tempo na Antiguidade. De comentador em comentador, um pouco de Sócrates, Epicuro, Sêneca. Afrouxando, Montaigne, Schopenhauer, Nietzsche. O iluminismo, o progresso, a perfectibilidade. Por fim, Zygmunt Bauman e a “Modernidade Líquida”. Seria “tomar o paraíso de um só golpe” percorrer agora toda essa aventura, e ainda por cima me detalhar nos males da contemporaneidade. Além do que, sendo exatamente esse é o sabor do blog: “o gosto do infinito”, certamente muito desses pratos serão servidos aqui.

Mas além de Cacilda, o fermento do meu bolo de chocolate, outras especiarias realçaram o sabor: Alice, o gato, e Osho.

Foi o gato de “Alice no País das Maravilhas” que me alertou para o óbvio: “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”. Serviu de ajuste de foco. Também é do livro de Lewis Carroll a passagem redentora:

“Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso”.

Vejo tanta correria, tanta competição, tanto estresse. E o perigo que ronda: estar ultrapassado; ser descartado. O que resta senão correr desesperadamente em busca do sucesso? No entanto, apesar do esforço sobre-humano para vencer, poucos são os que de fato saem do lugar. Foi assim que deixei de me sentir o perdedor, aquele que está sempre girando em torno da roda, mas que de fato nunca se vê inserido nela. Fui absolvido. A ciranda que girasse sozinha. Eu teria agora uma vida absolutamente comum.

Naturalmente muitos devem dizer que esse meu aparente desprezo pelo sucesso é sintomático do meu fracasso, das minhas covardias, e, principalmente, da minha falta de talento em geral. Sob um certo olhar, sim, já que sou humano. Mas sob um olhar mais generoso, não significa desprezo, nem fuga, mas senso de realidade e inteligência para perceber outras possibilidades de felicidade e realização que necessariamente não passem pela visibilidade e mensurabilidade da vida.

E aqui necessariamente chego às palavras de Osho:

A sociedade dá às pessoas, de muitas maneiras, a sensação de que elas são “extraordinárias”. Por isso é muito difícil não encontrar uma pessoa que, lá no fundo, não acredite que é especial, o filho único de Deus.

A pessoa comum é a pessoa natural. A natureza não produz pessoas especiais. Ela produz pessoas únicas, mas não especiais. Todo mundo é único à sua própria maneira.

Ser comum é a coisa mais extraordinária deste mundo. Basta olhar para você. Dói muito, é doloroso aceitar que você não é extraordinário. Então observe o que acontece quando você aceita a ideia de que é comum. Um grande peso sai dos seus ombros. De repente, você está num espaço aberto, natural, simplesmente do jeito que você é.

As pessoas são únicas, incomparáveis. Elas não podem ser comparadas, então como você pode dizer quem é inferior e quem é superior? A margarida é inferior à rosa? Como você vai decidir? Elas são únicas em sua individualidade. Toda a existência só produz pessoas únicas; ela não acredita em cópias.

Eu defendo a unicidade do ser humano. Sim, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser ela mesma. Em outras palavras, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser desigual, de ser única.

E foi assim, na crise da minha pós-modernidade, justamente quando me compreendi singular e pessoa comum, que o infinito em mim estremeceu e o horizonte gritou: viva a rotina, vida Adélia Prado. Mas essa é uma outra longa história.


E Viva Cacilda Becker: sobre o grito de Caetano Veloso

Em setembro de 1968, em tempos de ditadura militar, justamente quando Cacilda Becker era excluída da TV Bandeirantes por pressão da Censura Federal, ocorria a fase nacional do III FIC - Festival Internacional da Canção, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo.

Nos festivais de música, a arma de combate era a “festivaia”, uma vaia ensurdecedora acompanhada de tomates, ovos e qualquer outro objeto à mão. No dia 28 de setembro, o alvo era Caetano Veloso, que se apresentava na fase semifinal com a marchinha pop “É Proibido Proibir”. O uso de guitarra, símbolo do imperialismo ianque e a letra de sabor anarquista soaram acintosos para a plateia estudantil presente. Caetano estava consciente da provocação que fazia ao entrar no palco. Não conseguiu ultrapassar os primeiros versos: o público, em delírio, vaiou furiosamente. Caetano revidou: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada... Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais a quem? Àqueles que foram ao “Roda-Viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles; vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse viva aqui; não tem nada a ver com vocês”.

Caetano não tinha qualquer relação – pessoal ou profissional – com Cacilda. Seu brado em favor da atriz, por conta das perseguições que ela vinha sofrendo da Censura, surgiu de maneira que nem mesmo ele explica exatamente por quê: “Só vi Cacilda atuando uma vez. Foi em “Quem tem Medo de Virgínia Woolf?”, em 1965 ou 1966. [...] Eu sei que dizer aquilo era uma homenagem. Eu não achava que fosse ter maiores repercussões. Talvez dizer aquilo desnorteasse as pessoas que estavam lá”, afirma Caetano.



Livros citados:
Prado, Luis André. Cacilda Becker: Fúria Santa. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

Osho. O Livro da Sua Vida: crie seu próprio caminho para a liberdade. São Paulo: Cultrix, 2007.

Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.

2 comentários:

  1. Licurgo, o que é isso cara! O que fazes fora de um belíssimo livros de ensaios?!
    Amo-te cada vez mais. Como bem o dizes "Amo-te por pura inveja de ti".
    Ventania

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  2. Li, aquela nossa conversa gerou este texto tão bem escrito. Agora já não me sinto comum e sim extraordinária. (risos)
    Aquela nossa conversa me deu animo para continuar me buscando sem a preocupação de me tornar quem eu não sou.
    Obrigada, Licurgo. Vc é muito especial.
    beijo,
    Binha

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