sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Abecê

A) "O mais profundo é a pele" [Paul Valéry, 1871 - 1945].


B) Demorei a pregar o olho. Minha vida está perdida, eu pensava. Se pudesse pegar uma esponja e apagar tudo que estudei, tudo que vi e ouvi, entrar na escola de Zorbás e começar o grande, o verdadeiro abecê! Como seria diferente o rumo que eu tomaria! Exercitaria, com perfeição, meus cinco sentidos e minha pele inteira para sentir prazer e compreender. Eu aprenderia a correr, a lutar, a nadar, a andar a cavalo, a praticar remo, a dirigir automóvel, a atirar com fuzil. Encheria de carne a minha alma, encheria de alma a minha carne; conciliaria dentro de mim, finalmente, esses dois inimigos eternos... [O narrador de "Vida e Proezas de Aléxis Zorbás", romance de Nikos Kazantzákis].


C) "Que Deus me perdoe, mas acho que estou feliz".

Confúcio diz: "Muitos buscam a felicidade mais alto do que o homem e, outros, mais baixo, mas a felicidade é da estatura do homem". Exatamente. Então existem tantas felicidades quantas são as estaturas humanas [O narrador].

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Na Expectativa de Atravessar o Oceano

Poeticamente, a minha ausência na abertura do ciclo "Zorbás" no Laboratório de Humanidades foi a melhor história de leitura que eu poderia ter contado a todos, justamente porque fui com Fábio [e o Zorbás] atravessar o oceano.



Pois, ao contrário do que muitos possam imaginar, sempre me impus navegar pelos mares do bom senso, embalado por medos, inseguranças, e hábitos inconfessáveis de um bom-mocismo hesitante. Como o escrevinhador do romance, eu nunca havia antes cedido aos encantos de uma “belíssima pedra verde”. E assim como ele, sempre fui um fiel seguidor da “comedida, fria e humana voz da razão”.

Por coincidência, ou não, li Kazantzákis exatamente no momento em que a tomada de certas decisões práticas tornava inevitável essa minha viagem. Ao mesmo tempo, em meio à tirada de passaporte e preocupações com hospedagem, temor de atravessar o oceano, compras de moeda estrangeira, ansiedade, eu me comprometia com o meu projeto de Mestrado, que pretende exatamente analisar o impacto das leituras de Huxley e Kazantzákis no LabHum. O fato é que para o bem ou para o mal, Zorbás venceu essa batalha: estou hoje numa viagem de sonhos e de amor.


Mas não estou indo para Creta, cenário árido e belo, tão propício à reflexão. Estou indo para Paris e Londres, onde certamente serão paisagens, iguarias, roupas, perfumes e cosméticos que alimentarão minha alma. Tampouco pressinto que nessa viagem eu vá descobrir algum sentido oculto. Nada disso. Naturalmente há o antigo desejo de conhecer outros países, outras culturas. Mas, de maneira um tanto mais prosaica, estou mesmo é me permitindo viver solto, ou seja, alimentando minhas vaidades, zerando minhas invejas, gastando meu dinheiro, sendo um tanto quanto inconsequente...

Entretanto, inspirado por Zorbás, esse que tanto fez para me “ensinar a amar a vida e a não temer a morte”, irei à procura de resgatar meu olhar primitivo, que me conceda a “virgindade aos eternos elementos cotidianos”. Espero que em cada jardim, em cada prédio, em cada homem, o frescor do coração de Zorbás se apodere de mim. E que com o coração renovado eu possa superar velhos medos. E me escapar do “inferno dos escrevinhadores”. E tentar ouvir, finalmente, essa voz que me chama e me pede para viver com mais “sangue, carne e ossos” essa minha vida banal de “papel e tinta”.



PARA ENTENDER MELHOR:

Entusiasmado pela leitura do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”de Nikos Kazantzákis, talvez o maior escritor grego do século XX, copio abaixo dois trechos do prólogo para que vocês se deliciem:


"Se hoje, em todo o mundo, eu fosse escolher um guia espiritual, um "Guru" como dizem os hindus, um "Mentor" como dizem os monges do Monte Athos, certamente eu escolheria Zorbás, porque ele tinha tudo aquilo que um escrevinhador necessita para subsistir: o olhar primitivo que capta das alturas, como uma flecha, o seu alimento; a simplicidade criativa, renovada a cada manhã, a perceber incessantemente todas as coisas como se fosse pela primeira vez e a conceder virgindade aos eternos elementos cotidianos - ar, mar, fogo, mulher, pão; a firmeza da mão, o frescor do coração, a coragem de caçoar de sua própria alma, como se ele tivesse internamente uma força superior à alma e, por fim, a áspera risada gorgolejante, vinda de uma fonte profunda, mais profunda do que as entranhas do homem e que, nos momentos críticos, irrompia libertadora do velho peito do Zorbás, irrompia e podia demolir (e demolia) todas a barreiras - moral, religião, pátria - que o homem, infeliz e medroso, ergueu em torno de si para mal e mal tocar com segurança sua vidinha".

[...]

"Se eu tivesse ouvido a voz dele - não a voz, o brado - minha vida teria adquirido valor: eu viveria com sangue, carne e ossos tudo aquilo que agora, como um narcotizado, considero e realizo com papel e tinteiro. Mas não ousei. Eu via Zorbás em plena noite a dançar relinchando, a gritar para que eu também me arrojasse da confortável concha do bom senso e do hábito e com ele partisse para grandes viagens: e eu ficava imóvel, tiritando. Muitas vezes em minha vida senti vergonha por conter minha alma para que ela não ousasse fazer tudo aquilo que a suprema loucura - a essência da vida - conclamava-me a fazer, mas nunca me envergonhei tanto por minha alma como diante de Zorbás".

E isso é só o começo. Na orelha do livro está escrito: "Zorbás consegue ser ao mesmo tempo um romance de aventura, que se lê com febre, e um romance de formação, que transforma". Há uma edição recente traduzida diretamente do Grego. Nas edições antigas, o título em português era “Zorbás, o Grego”, por causa do filme, grande sucesso de bilheteria nos anos 60. Mas eu gosto mais do romance, embora haja quem prefira o Zorbás do cinema. É que a interpretação de Anthony Quinn no papel está impecável. No filme, porém, as inquietações do outro personagem, o escrevinhador, ficam por demais apagadas.

Referência do livro:

Nikos Kazantzákis. Vida e Proezas de Aléxis Zorbás. Editora Grua, 2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cinco Lições de Poesia: Akira Kurosawa e o sentido último do amor


Quando li MacBeth no Laboratório de Humanidades, fiquei sabendo do filme “Trono Manchado de Sangue” do Akira Kurosawa, uma recriação cinematográfica para a peça do Shakespeare. Na época eu já ouvira falar do diretor japonês, mas nunca tinha assistido a um filme dele até que, de repente, ou melhor, porque participei do Laboratório de Cinema nesse semestre, em menos de um mês assisti a cinco filmes do Kurosawa: “Duelo Silencioso”, “Cão Danado”, “Viver”, “O Barba Ruiva” e “Dersu Uzala”. E posso dizer que redescobri o mundo pelo viés japonês, um mundo em preto e branco tão denso e vertical quanto aquele bergniano, mas poeticamente diferente.

Os filmes do Kurosawa são profundamente japoneses, eu acho, embora o Japão o tenha acusado de ocidentalizar demais a cultura nipônica. Sinceramente não sei opinar sobre isso, mas posso dizer que, em comparação com os filmes do Bergman, por exemplo, os argumentos do Kurosawa são muito mais cotidianos, suas narrativas mais simples e lineares. Em Kurosawa tudo parece ser o que é, sem muita abstração: chão é chão, tempestade é tempestade.

Dizem até que Kurosawa levava dias para gravar uma única cena de chuva à espera de uma que fosse verdadeira. Mas mesmo com poucos recursos, e quase nenhum efeito especial, sua paixão pelo cinema o levou a narrar grandes histórias, a criar personagens heróicos e inesquecíveis, a trabalhar com atores magníficos que o ajudaram a transformar essa dedicação em grande arte. Apesar do seu didatismo, porque em seus filmes os valores morais vão sendo não apenas manifestos, mas clara e dignamente defendidos por seus “mocinhos”, suas criações são como um extraordinário transbordamento da alma humana em rara poesia.

E assim como em toda rara poesia, novas palavras e outras imagens serão sempre insuficientes para recriar o clima dos filmes do Kurosawa, cuja experiência singela de assisti-los é certamente indescritível. Mas creio que posso contar ao menos como a grandeza desses filmes modificaram o meu egoísmo, já que todos eles falam do amor, do amor em seu sentido mais último.

Duelo Silencioso (1949):


Em “Duelo Silencioso” assistimos ao conflito interno entre os desejos de um homem e seu dever como cidadão e médico. A consciência moral do jovem Kyoji é tão profunda que fiquei abalado questionando o meu próprio agir. Num tempo em que reina a satisfação imediata dos desejos, em que não sabemos mais lidar com mínimas frustrações, a hipótese de eu me sacrificar daquele jeito por alguém me pareceu quase absurda. O comportamento extremamente ético do Dr. Kyoji e sua resignação ao sofrimento são lições ao egoísmo que todos nós resistimos tanto em abrandar.

Cão Danado (1949):


Nessa mesma linha da consciência moral, em “Cão Danado” é o limite da responsabilidade que determina a descida aos infernos do personagem principal, Murukami, um jovem detetive que se abala ao ver sua pistola roubada ferindo pessoas inocentes. É na contradição de se sentir culpado por crimes que de fato ele nunca cometeu que o atormentado personagem nos faz refletir sobre a real responsabilidade que temos pelo mal que nos ronda. Numa aparente absoluta bobagem, a obsessão de Murukami em se martirizar por uma simples distração me fez tomar consciência de pequenas leviandades que pratico quase “sem querer” no meu dia a dia, mas que na verdade não passam de variações de egoísmo e falta de consideração pelo outro.

Viver (1952):



“Viver” trata dos efeitos devastadores que uma vida burocrática pode provocar num homem. Assim como na novela “A Morte de Ivan Ilitch” de Tostói e em “Morangos Silvestres” do Bergman, Kurosawa nos alerta sobre a teima de nos distrairmos da vida e só nos atentarmos a ela quando a morte já é certa. Mas diferentemente do que acontece nas narrativas de Tolstói e Bergman, em que Ivan Ilitch parece encontrar na agonia um significado transcendente, e o Prof. Borg um sentido no amor ao abrir-se para o novo e para o outro, a vida do Sr. Watanabe se completa no trabalho doado à comunidade. Outra vez é pelo sair de si mesmo, ou talvez pelo abrandamento do egoísmo, que o filme nos propõe “viver”.

O Barba Ruiva (1965):


Em “O Barba Ruiva”, Kurosawa nos coloca diante de um verdadeiro mestre, cuja sabedoria e senso de justiça transcendem sua própria condição de médico. No século XIX, O Dr. Kyojio Niide (apelidado carinhosamente de “O Barba Ruiva”) dirige um hospital numa pobre e remota aldeia japonesa, sendo respeitado, querido e temido por todos. Já o jovem médico Dr. Yasumoto, que contra a própria vontade se vê obrigado a viver e trabalhar com o Dr. Niide, o contrapõe com sua arrogância. Formado cientificamente na melhor escola de medicina da região, ele havia se preparado para se tornar um profissional importante, que cuidasse de pessoas importantes.

O Dr. Barba Ruiva, porém, não nega a ciência, embora não acredite piamente nela. Sem priorizar a comprovação científica e a perícia técnica, ele de fato olha e enxerga as pessoas. Por isso seus métodos de tratamento vão muito além dos protocolos. Assim, diante de uma realidade miserável, lidando com pacientes terminais e desamparados, o Dr. Barba Ruiva, ao tratar todos com consideração e humanidade, aos poucos cativa o jovem Yasumoto, que passa não somente a respeitá-lo, mas a verdadeiramente “humanizar-se” com ele, reconsiderando suas posições como homem e médico.

Esse é mais um filme grandioso de Akira Kurosawa, que nos interpõe o homem para além de nossas idealizações. O Dr. Niide, por exemplo, não é um médico “bonzinho”, tampouco faz questão de se mostrar agradável. Ao contrário, muitas vezes ele é implacável, violento. Sua cara amarrada é uma lição para todos nós que costumamos confundir o riso fácil com boa índole, a perfeição hipócrita com bondade. O homem, para o Dr. Niide, é “um animal”, como diria Zorba, o Grego*: “você lhe fez o mal? Ele o respeita e teme. Você lhe fez o bem? Ele arranca seus olhos”. Humanizar-se, então, nessa perspectiva, é uma questão de reconhecer-se justamente imperfeito. E imperfeito, embora justo, é o Dr. Barba Ruiva, que não vacila em quebrar literalmente os ossos dos malfeitores, ainda que depois cuide de consertá-los amorosamente.
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*Nikos Kizantizákis. Vida e Proezas e Alexis Zorbás. 3ª Edição. São Paulo: Grua, 2011.



Curiosidade: Thoshiro Mifune, ator principal de "Duelo Silencioso", "Cão Danado", "O Barba Ruiva", entre muitos outros filmes do diretor japonês, rompeu com Kurosawa durante a atuação em "O Barba Ruiva" por ter sido obrigado por ele a manter uma barba natural por dois longos anos, tempo que duraram as filmagens. Durante esse período, o grande ator japonês não conseguiu outros papéis.

Dersu Uzala (1975):


Frustrado e desapontado com a incompreensão que a cultura japonesa dispensava a seus filmes, Akira Kurosawa tentou o suicídio em 1971. Uma vez auto-exilado na União Soviética, entregou-se às filmagens dessa produção russa para ganhar, em 1975, o Oscar de melhor filme estrangeiro. “Dersu Uzala” é um filme sobre o encontro de mundos opostos, sobre a amizade, o envelhecimento, e, sobretudo, é um ensaio sobre a insuficiência humana. De belíssima fotografia colorida nos campos da Sibéria, Kurosawa dirigiu essa película como um tratado poético sobre as dificuldades de sobrevivência numa civilização que cada vez mais se encaminha para a padronização, a fragmentação e a artificialização da vida.

Como em Dostoiévski, que no romance “O Idiota” encarna o Bem na figura de um nobre que mais se parece com um “iuródiv”, misto de bobo, mendigo, louco e vidente na tradição russa, Kurosawa encarna o Bem na pele de Dersu Uzala, um velho caçador mongol que, por amizade, decidi guiar a expedição topográfica do capitão Vladimir Arseniev, um explorador czarista no início do século XX.

Sim, amizade, esse é o grande tema do filme, ou pelo menos aquele que primeiro nos impressiona: Dersu e Arseniev, dois estranhos que se elegem amigos num encontro improvável na Sibéria. Então Dersu, íntimo da floresta, salva inúmeras vezes a vida do capitão. E o capitão, por sua vez, o apóia e o acolhe quando a velhice por fim se impõe ameaçando a sobrevivência do experiente caçador na selva.

Dersu é um homem simples, confundido com a natureza, que conversa com os animais, com o fogo, com a água, com o vento. Já Arseniev, embora ele seja um pesquisador científico, é de uma espécie rara, que nunca se mostra arrogante. O encontro dos dois não é de tolerância, pois, ainda que de mundos distintos, não há oposição entre eles. Há, sim, empatia, amizade, e recíproca sabedoria, pois nenhum dos dois se reconhece melhor do que o outro, apenas diferente. E, nessa diferença, esses dois mundos se tocam numa relação fraterna que podemos chamar de amor.

Dersu Uzala é, definitivamente, um filme transformador. Por ele somos mobilizados a olhar terna e amorosamente para o outro, sem que isso implique no desejo de assumir a vida desse outro, muito menos na vontade de modificá-lo de acordo com as nossas conveniências. É o que acontece, por exemplo, quando enfraquecido pela velhice, Dersu deixa de ser quem ele é para se proteger na cidade, na casa do amigo Arseniev. Forçado, então, a afastar-se essencialmente de si, nosso herói se desumaniza tomado por uma aterradora infantilização. Contraditoriamente, porém, só o veremos renascer no enfrentamento da própria sorte.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

Arte que Espelha a Vulnerável Condição Humana

O Sonho (Pablo Picasso, 1932).

“A arte é perigosa; sim, ela nunca pode ser casta; se casta, não é arte” (Schama, 2010). Assim falou Pablo Picasso sobre essa indecifrável, misteriosa coisa, que para além de representar o belo em nossas vidas, nunca se cansa de destruir o que há em nós de mais banal. Tal qual Minós, figura dantesca que na Divina Comédia enrola os pecadores em sua cauda para lançá-los aos círculos do Inferno, é próprio da arte nos atirar nesses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo” (Leiris, 2001), num toque de graça e reconciliação, é verdade, embora a entrega genuína à arte possa de fato ser perigosamente transformadora.

Bentinho, no romance Dom Casmurro de Machado de Assis, procurando atinar o espírito curioso, inquieto, enigmático, provocador e sedutor da menina Capitu, afirma que ela tinha “olhos de ressaca”, que traziam em si um “fluido misterioso e energético” numa força irresistível que o atraía. A arte literária, assim como os olhos de Capitu, parece possuir essa mesma dinâmica de uma onda que se retira da praia em dias de mau tempo e que na volta nos arrasta por domínios internos tão desconhecidos e ameaçadores quanto gozosos são os olhos da amada. Nisso parece residir o mistério de um bom livro, na capacidade de nos tragar para dentro de nós mesmos e nos devolver inteiros para a vida.

Há muito se discute que arte não é apenas prazer e fruição, mas uma forma segura de se adquirir conhecimento. “A literatura instrui deleitando”, afirma Compagnon (2009), que se remete a Émile Zola para dizer que “um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos”. Teria, portanto, a literatura o poder de nos tornar seres humanos melhores? Seria uma ferramenta de melhor compreensão do mundo? Um método de educação dos sentimentos e dos afetos? A literatura, enfim, funcionaria assim como um remédio para os males da alma dotada de poderosa força humanizadora?

De Marcel Proust a Roland Barthes, de Charles Baudelaire a Paul Valéry, de Michel Blanchot a Antoine Compagnon, as publicações pertinentes estão repletas de artigos que se dedicaram a responder como a arte e literatura operam na vida de todos nós. Ítalo Calvino, por exemplo, revela que as coisas que a literatura pode ensinar são “pouco numerosas, mas insubstituíveis”, como “a maneira de ver o próximo e a si mesmo”, de “atribuir valor às coisas pequenas ou grandes”, de “encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela,” e “o lugar da morte”, além de outras coisas “necessárias e difíceis” como “a rudeza, a piedade, a tristeza, a ironia e o humor” (Calvino, 2006).

Leiris (2001), ao sintetizar o conceito estético que norteava a obra do poeta moderno Charles Baudelaire (1821 - 1867), segundo o qual “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”, nos aproxima de uma zona de inquietação e desconforto proporcionado pela arte, onde o homem, tocado pelo Belo, confronta-se consigo mesmo (zona de tangência). Segundo Baudelaire, a arte se dá pela conjunção de duas metades, uma eterna e imutável, outra transitória e fugidia, onde um elemento reto (o eterno) se coloca lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e fluídos. É, então, nessa zona delicada de tangência onde grandes e pequenas epifanias podem acontecer numa voragem capaz de nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

Por isso acredito que tanto na poesia de Baudelaire, quanto nas mais tocantes obras de arte, haverá sempre uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada do belo haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente atraente. “O erotismo genital, as touradas, as tragédias, a grande arte são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários” como motor da estética artística: reto e torto, luz e sombra, virtude e vício, união e separação, contração e relaxamento (Leiris, 2001). São nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste encontram-se dispostos sob efeito de tensão e perigo, que mais facilmente vemos irromper da crosta que somos o que temos de mais inesperado, oculto e perturbador. É nessa zona de tensão que o poder da arte espelha nossa vulnerável condição humana.


Referências Bibliográficas:

Baudelaire, C. O Pintor da Vida Moderna. In: A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Calvino, I. Assunto Encerrado. Discurso sobre Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Compagnon, A. Literatura Para Quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

Schama, S. O Poder da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Bergman, Bergman, Bergman: Amavio!

Tive o privilégio de assistir “Sonata de Outono” na telona. Não, não foi em 1978, época em que Ingmar Bergman lançou o filme. Foi no começo desse ano quando, por indicação de uma amiga, fui me despedir do “Cine Belas Artes”. Sai da sala tal qual a Sônia me disse que saíra, literalmente doído. Já na rua me persistia um vazio, um nada, difícil de entender, pois afinal tratava-se de um Bergman. Era como se durante a sessão uma substância estranha tivesse sido injetada em mim, um amavio, um encanto, talvez, cujo efeito naturalmente demorasse a acontecer. Mas aconteceu.

No outro dia à tarde, quase 24 horas após, ainda sob o efeito de um nada, devagarzinho, tive o impulso de procurar na internet a cena em que Eva (a filha) impõe a Charlotte (sua mãe) a morte do pequeno Erik (seu filho), e cuja fala longa e intensa, ali na fluidez das legendas, me fez lembrar algo de Dostoiévski: Deus, demônio, santos, profetas, artistas, iconoclastas, palavras que então lidas por mim rapidamente na tela iam se misturando à rudeza do idioma sueco, ao mesmo tempo em que a voz suave e melancólica de Liv Ullmann (Eva), sob o olhar pequeno e angustiado de Ingrid Bergman (Charlotte), que na minha frente parecia se contorcer de reprovação e dor, me faziam perceber o quanto “Sonata de Outono” era mesmo um filme grandioso, ainda que no final eu tivesse sido tomado por certa anestesia.

O fato é que inicialmente eu não consegui encontrar a tal cena no Google, mas revi no Youtube a inesquecível aula de piano em que Charlotte, uma pianista célebre e tecnicamente perfeita que, sem humilhar propriamente a filha, não consegue deixar de derramar sobre ela seu olhar compassivo e arrogante, exteriorizando assim a superioridade e o distanciamento que essa mulher sempre fez questão de estabelecer na sua relação com a família e com a própria vida. Foi então que atingi o paroxismo da substância: passei a me sentir estranho, incomodado, impactado, embevecido pelo magnífico texto do Bergman, pela grandeza das atrizes, e por tudo que eu não fui capaz de compreender no filme.

Dias depois, baixando e assistindo novamente o filme, agora porque iria discuti-lo com o grupo do Laboratório de Cinema, finalmente transcrevi a fala que no “Belas Artes” tanto me impressionou:




[...] Não há linha divisória, nem muralha intransponível. Eu queria saber como é a vida onde meu filho vive. Eu sei que não dá para descrever. É um mundo de sentimentos livres. Sabe o que eu quero dizer? Para mim, o homem é uma criação incrível, uma ideia inconcebível. No homem, existe tudo, do começo ao fim. O homem é a imagem de Deus e, em Deus, existe tudo. E o ser humano foi criado, mas também os demônios, os santos, os profetas, os artistas e os iconoclastas. Tudo existe paralelamente. São como padrões grandiosos mudando o tempo todo. Da mesma forma, deve haver inúmeras realidades, não só esta que percebemos com nossos sentimentos embotados, mas um amontoado de realidades se sobrepondo umas às outras. É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos nem para os sentimentos. Ao tocar a parte lenta da sonata de Hammerklavier você deve sentir que o mundo não tem limites em uma atividade que você nunca entenderá nem explorará.



Soube que essa foi a última interpretação de Ingrid Bergman para o cinema. E que nas filmagens ela já estava consciente da gravidade do câncer que a mataria quatro anos depois. Em matéria de cinema, eu me considero um ignorante. Sou daqueles que não sabe dos diretores, que nunca guarda como se pronuncia o nome complicado dos atores estrangeiros, e que se esquece rapidamente dos argumentos. Dos mais de sessenta filmes do Bergman, “Sonata” foi o quarto que assisti. De Ingrid Bergman eu sabia apenas de “Casablanca”. Liv Ullmann era para mim uma referência distante, pensava que fosse talvez uma atriz americana, e não norueguesa.

Bem, não vou ficar aqui destilando meu desconhecimento cinematográfico, mesmo porque nada disso importa. O que importa é que com esse filme o cinema de Bergman se apossou de mim. Tanto que jamais me esquecerei da conturbada vida afetiva daquelas duas criaturas hipersensíveis, mãe e filha, numa relação de afeto e desafeto, amor e desamor, compreensão e incompreensão, alto apreço e pequenez, sentimentos tão comuns a todos nós seres humanos, especialmente quando nos é dado viver nos extremos, tanto nas alturas de uma vida profissional bem-sucedida pretensamente destinada à perfeição, como quando vivemos à sombra de tudo isso, jogados à insignificância de nós mesmos. Do embate entre essas duas mulheres vi jorrar da tela solidão, angústia, dor e sofrimento. E na minha pele senti os efeitos destrutivos de uma vida obsessiva, incapaz de tolerar as imperfeições de ser gente, quanto mais amar e acolher as imperfeições do outro. Mesmo assim não considero Charlotte uma mulher desumana. Charlotte é mais uma sofredora, numa espécie de “analfabetismo afetivo”, expressão que o próprio Bergman explorou em “Cenas de um Casamento”, outro de seus grandes filmes.

Impossível exprimir aqui tudo o que tenho sentido nessa minha fase cinéfila. Se eu fosse pegar Lars Von Trier, por exemplo, para tentar explicar porque quase desmaiei duas vezes assistindo “Anticristo”, soaria até ridículo. Quem acreditaria que aquela mulher maligna pudesse mexer comigo a ponto de me escurecerem as vistas? E que eu precisei pausar o filme duas vezes para molhar a nuca e os pulsos? Já em “Dogville” uma surpresa, um entusiasmo, e eu indignado pela capacidade que o homem tem de humilhar, abusar, maltratar alguém daquele jeito. E depois ainda experimentar a contradição de vibrar contente na cena do extermínio final.

É verdade que em 2010 eu já participara do Laboratório de Cinema. E que por causa disso eu assisti “O Sétimo Selo”. Mas em 2011 a sétima arte passou a me espreitar diferente. Ela agora flerta comigo, e me seduz. Talvez porque o mergulho no Laboratório de Cinema tenha sido mais intenso. Nesse ciclo resolvemos estudar o cinema de autor para nos aprofundar na arte de dois grandes cineastas: Ingmar Bergman e Akira Kurosawa. Também tenho me deslocado semanalmente para frequentar na PUC um curso teórico do Prof. Luiz Felipe Pondé: “Cinema e Religião - Lars Von Trier, Kieslowski e Bergman”. Com um pouco de exagero, acho que se eu continuar nesse ritmo assistirei mais filmes nesse ano do que já vi em toda minha vida. E olha que eu sou do tempo em que se via Mazzaropi e Derci Gonçalves na Sessão da Tarde.

Mas a minha obsessão atual é mesmo bergniana. Vou relacionar na ordem os filmes que assisti dele nos últimos tempos: “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno”, "Sonata de Outono", “Morangos Silvestres”, “Persona”, “Gritos e Sussurros”, “Fanny e Alexander” e “Através de um Espelho”. Com exceção de “Gritos e Sussurros”, que eu pouco entendi e quase não me identifiquei, todos os outros foram uma explosão. Explosão de beleza. Explosão de sentimentos. De perplexidades. Se eu disser que gostei mais de “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno” certamente gritará. Se eu eleger “Sonata de Outono”, “Persona” calará fundo em mim. E como eu não quero, não posso, e não saberia agora me colocar crítica e afetivamente diante desses filmes, assumo o risco e escolho “Morangos Silvestres” para continuar um pouco mais com Bergman antes de finalizar.

Aliás, já citei aqui “Morangos Silvestres” quando publiquei o post anterior: “Eu, Antonius Block”, que começa assim:



Fui à Praça Roosevelt com a Neusa, no antigo Cineclube Bijou, assistir Bergman. Meados da década de 90, “Morangos Silvestres”. Do filme só me lembro que era em preto e branco e que contava a história de um velho viajante. Mais nada.

Mais de vinte anos depois, no entanto, descubro que tenho muito de mim naquele homem de 78 anos. Que a trajetória existencial dele poderia (e poderá) muito bem ser a minha. E que eu, aos 45 anos, talvez ainda continue sendo o mesmo garotinho tímido que um dia se deparou com esse velho no Cineclube Bijou, soube de suas angústias, lamentações, sofreu com o seu isolamento, mas não compreendeu nada, não se modificou em nada, porque na sua imaturidade não conseguia sair de si mesmo. Tem uma hora no filme em que a vida do Prof. Borg é avaliada num sonho. E ele é acusado de culpa. E sem compreender o veredito, o avaliador lhe explica que ele cometeu pequenos delitos, porém graves, como a indiferença, o egoísmo e a falta de consideração. “E qual será a pena?”, pergunta o velho médico. “Pena? A de sempre, creio. A solidão”, responde o juiz.

Mas eu tenho confiança, quem sabe ingênua, de não continuar sendo eternamente aquele garotinho. E de que eu consiga sair um pouco de mim mesmo. No fim da vida, o Prof. Borg ousou olhar corajosamente para a vida: abriu-se para o outro. Descobriu sobre o amor. Fiquei sinceramente feliz porque no final do filme um olhar risonho invade toda a tela. É um olhar para o infinito.

SINOPSES:
Sonata de Outono:


Uma pianista de concerto acaba de perder o homem com quem vivia há muitos anos. A filha, que está casada há alguns anos com um pastor e vive numa pequena cidade da Noruega, pede à mãe que a visite. Durante alguns dias, as duas mulheres confrontam-se. Umas vezes sentem repulsa pela outra, outras vezes procuram a sua companhia. Mas o encontro será crucial para o futuro de ambas. O que está em causa nessa relação é obrigatoriamente o amor: a presença e a ausência do amor, o desejo do amor, as mentiras do amor, o amor deformado, e o amor como a nossa única esperança para sobreviver.

Morangos Silvestres:

Um professor aposentado viaja de automóvel de Estocolmo até a universidade em que lecionou, a fim de receber um título honorífico. Durante a viagem, um pesadelo desencadeia uma série de associações mentais que o fazem recordar episódios de sua longa vida. O filme não vale para quem quer só diversão: é esplêndido, mas sério e difícil. Destaca-se pelo excelente uso do flashback, ótima fotografia em preto-e-branco, direção muito criativa de Bergman e interpretação brilhante do antigo diretor Sjöstrom como o velho professor. Vencedor do Urso de Ouro em Berlim.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

EU, ANTONIUS BLOCK





Fui à Praça Roosevelt com a Neusa, no antigo Cineclube Bijou, assistir Bergman. Meados da década de 90, “Morangos Silvestres”. Do filme só me lembro que era em preto e branco e que contava a história de um velho viajante. Mais nada.

Em setembro do ano passado vi “O Sétimo Selo” na minha casa, numa noite morna, todo a postos, porque o filme seria discutido no Laboratório de Cinema (*). Fiquei especialmente tocado pela interpretação do ator principal, Max Von Sydow, e pelo tom dos diálogos densos. Poucas vezes um filme me disse tanto à existência. Outros me emocionaram muito mais, me encantaram, mexeram com meus ânimos, me deixaram enternecido, intrigado. Mas “O Sétimo Selo” reverberou diferente: Bergman nos faz dialogar com a própria morte. E com o sentido da nossa vida.

Engana-se, porém, quem supõe que a experiência do filme é negra. Que lidar com a morte é ser tomado pela face rubra da existência. Não. O pensar sobre a finitude inevitavelmente nos remete ao agora, um agora lenitivo, que com graça e certa disposição de espírito pode nos oferecer refúgio no amor, na alegria e, sobretudo, na Arte. Sim, a vida é trágica, nunca venceremos a partida de xadrez, mas viver nem sempre é trágico. Incrivelmente essa mensagem redentora encontrei em “O Sétimo Selo”, pois embora nada, ou pouca coisa pareça fazer sentido, embora Deus insista em esconder seu rosto, como brada no filme Antonius Block, ainda assim a vida pode ser leve e suave como o olhar verdadeiro e puro de um artista.

Tamanho foi meu entusiasmo pelo filme que copiei duas cenas. E mandei para os meus amigos mais íntimos. Então agora, quando acabo de assistir meu ainda terceiro filme do Bergman, “Luz de Inverno”, e porque pretendo rever “Morangos Silvestres”, resolvi compartilhar com vocês o “Gosto do Infinito” daquela madrugada quente de setembro.




Abaixo dois diálogos com a morte que transcrevi:



O SÉTIMO SELO
Ingmar Bergman - Suécia, 1956.


Sinopse do Filme:

Suécia, Idade Média. Um cavaleiro, após as cruzadas, embora tenha lutado pela cristandade, tem dúvidas sobre a existência de Deus. A peste devasta o país, e, em meio ao ambiente de pessoas condenada à fogueira, acusadas de bruxaria, ao invés de se encontrar com Deus, se depara com a morte em carne e osso. O cavaleiro, para ganhar tempo, desafia a morte para uma partida de xadrez, com quem mantém profundos diálogos sobre o sentido da vida.




1ª Cena - Encontro com a morte.

[Cavaleiro] Quem é você?

[A morte] Sou a morte.

[Cavaleiro] Veio me buscar?

[A morte] Ando com você há muito tempo.

[Cavaleiro] Eu sei.

[A morte] Está preparado?

[Cavaleiro] Meu corpo está, mas eu, não.

[A MORTE AVANÇA]

[Cavaleiro] Espere!

[A morte] Está bem, mas não posso adiar.

[Cavaleiro] Você joga xadrez?

[A morte] Como sabe?

[Cavaleiro] Eu já vi nas pinturas.

[A morte] Posso dizer que jogo muito bem.

[Cavaleiro] Não é mais esperto do que eu.

[A morte] Por que quer jogar comigo?

[Cavaleiro] Isto é problema meu

[A morte] Está bem.

[Cavaleiro] Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me deixará em paz.

[Sorteando a cor das peças diz]: Jogue com as pretas.

[A morte] Bem apropriado, não acha?


3ª Cena - Confissão. Encontro com a morte em uma capela.

[Cavaleiro] Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.

[A morte] [DISFARÇADA] Agora quer morrer?

[Cavaleiro] Sim, eu quero.

[A morte] E pelo que espera?

[Cavaleiro] Pelo conhecimento.

[A morte] Quer garantias?

[Cavaleiro] Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa promessa eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?

[A morte] Sim, ouvi. (A morte se vira, para não ser reconhecida).

[Cavaleiro] Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.

[A morte] Talvez não haja ninguém.

[Cavaleiro] A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na ignorância de tudo.

[A morte] As pessoas quase nunca pensam na morte.

[Cavaleiro] Mas um dia na vida terão de olhar para a escuridão.

[A morte] Sim, um dia.

[Cavaleiro] Eu entendo. Temos de imaginar como é o medo e chamar esta imagem de Deus.

[A morte] Está nervoso.

[Cavaleiro] A morte me visitou esta manhã. Jogamos xadrez. Ganhei tempo para resolver uma questão urgente.

[A morte] Que questão?

[Cavaleiro] Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou reprovação como fazem as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco tempo que tenho para fazer algo bom.

[A morte] Por isso jogou xadrez com a morte?

[Cavaleiro] Ela tem táticas inteligentes, mas até hoje não perdi para ninguém.

[A morte] Como vencerá a morte no seu jogo?

[Cavaleiro] Tenho uma jogada com o bispo e o cavalo que ela não conhece. Quebrarei sua defesa.

[A morte] [MOSTRANDO SUA VERDADEIRA FACE] Lembrarei disto.

[Cavaleiro] Você é um traidor e me enganou. Mas nos encontraremos de novo, e eu acharei uma saída.

[A morte] Nos encontraremos e continuaremos nosso jogo.

[A MORTE SAI]

[Cavaleiro] Esta é a minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no céu e eu, e eu, Antonius Block, jogo xadrez com a morte.


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(*) O Laboratório de Cinema é uma iniciativa dos alunos da Escola Paulista de Medicina que criaram o Projeto Nassal - Núcleo de Artes e Saúde Saltimbancos, que diretamente influenciados pelo Laboratório de Humanidades propõe “a discussão / reflexão de questões essencialmente humanas através das grandes obras do cinema universal”.
http://projetonassal.wordpress.com/laboratorio-de-cinema/


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

AO FOGO NEGRO

Laboratório de Humanidades,
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray:
um poema em prosa.

Às amigas Rozélia e Jacqueline.


Esvaneço de mim o que é cinzento, porque é do branco mais branco ao negro mais negro que a vida rutila. E o impacto se dá. Dorian Gray me atirou ao fogo negro. Estou ardendo. Quase cedendo à corrupção de algum livro amarelo. Você sabe como posso encontrá-lo? Me iniciaria em seus prazeres devassos? Exerceria sobre mim sua má influência? Ora, não se inquiete, que eu prescindo de você. Tenho o meu próprio veneno e salvação: as palavras que em mim fervilham [e contrastam minha alma sem vida].

Dorian Gray e eu passamos pela mesma sensação de fronteira ao conhecer Lorde Henry Wotton no ateliê do pobre, bom e apaixonado Basílio. Sentimos receio, e frenesi. Não ria! Sei que não sofro da beleza perfeita de Dorian Gray, mas as cínicas provocações, as verdades e meias verdades sedutoras e paradoxais de Harry me soaram como quando as bruxas de Shakespeare proferiram as tais palavras insidiosas que despertaram a ambição desmedida em Macbeth. Em Dorian Gray, as cordas da vaidade e do orgulho é que foram tocadas. Em mim, outra vez, é a voragem que ressoa.

O infinito e o abismo, abstrações concretas que suspendem o tempo e que resgatam em mim o sentimento oceânico. O que mais me fascina na literatura, e na arte, e no ser, é a experiência infinita do abismo. É o afã de quem beira crateras nos confins da existência. E reconhece no mal a dinâmica do belo, porque atrai.

Mas o que me atrai? Não é o capricho perverso que aniquila, mas a vida que se quer inteira, na audácia de vivê-la até as últimas consequências. "Cada um de nós carrega em si o céu e o inferno", disse Dorian Gray ao inocente Basílio. E é por isso que me sinto tomado, pela escatologia do bem e do mal ao alcance da boca, já que é no vão negro, no mais profundo escuro de mim, que a beleza faísca.

E o que é a beleza senão faísca?