quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo infinito DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.


O Laboratório de Humanidades (LabHum) é uma atividade extra-curricular e também uma disciplina na pós-graduação, oferecida pelo Centro de Historia e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (CeHFi - UNIFESP - EPM).

Site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/labhum.htm
Blog: http://www.labhum.blogspot.com/

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Canto da Sereia


Um dia, ainda na faculdade, uma amiga me emprestou “A Paixão Segundo GH” citando, segundo ela, a própria Clarice Lispector: “este é um livro para pessoas de alma formada”. “E é tão, tão difícil”, acrescentou. Minha alma já mirrada ficou apreensiva. Peguei o livro hesitante, com a frouxa determinação de chegar até o final, e não cheguei.

Resignado, fui obrigado a devolvê-lo confessando minha total inexperiência e, sobretudo, minha alma malformada, meu raquitismo existencial. Fui então aconselhado a comprar o livro e deixá-lo no meu quarto sempre à vista, na expectativa de um dia, por milagre, engolir a barata até a última substância, conquistando, assim, um lugar aos céus no paraíso das pessoas que “entendiam”.

Depois, já passando bem dos 30, numa nova tentativa, mas com a mesma vaidade, amarguei novamente o fracassado.
Engano total. Hoje sei que a questão é exatamente não entender. Não entender nada, pelo menos no sentido convencional, ou seja: analisar, esquematizar, classificar, explicar, reduzir a uma moral, a um sentido lógico qualquer. Tem sido uma libertação.

Nesta semana li na Revista da Cultura uma entrevista com o biográfo da Clarice, Benjamim Moser, que concluiu, depois de analisar os sofrimentos da escritora e suas “brigas” com Deus, o seguinte:

“Em ‘A Paixão segundo G.H.’, por exemplo, [Clarice] está querendo se reunir a esse Deus que acha horroroso. O símbolo de Deus é a matéria da barata”.

Tudo bem, eu sei que a biografia da Clarice é primorosa e eu não menosprezo nem questiono tal conclusão, muito pelo contrário, mesmo porque, na maioria das vezes, tudo o que se quer é alguém que nos ajude a desatar os pensamentos. Mas não posso deixar de manifestar aqui minha alegria quando prescindo de tais facilidades, já que o grande impacto do livro, e de tantas outras obras semelhantes, é exatamente fazer o leitor entregar-se ao mistério, ao abismo que se abre.

Como as mitológicas sereias, mulheres-peixe cujo canto doce atrairiam os tripulantes dos navios para colidirem com os rochedos e afundarem em regiões abissais, a palavra em Clarice é voragem, é o próprio abismo, a tormenta que nos arrasta às profundezas, à perplexidade diante de si, diante da vida.

Ler Clarice é entrar numa espécie de devaneio, é colocar-se numa outra ordenação que não a da vida prática, mas no domínio do informe, do não conhecido, da suspensão de significado, de um território que se aproxima da morte. Por isso, para enfrentar a sereia e sucumbir ao seu canto sedutor, é preciso coragem, sem a qual a cratera onde mora o verdadeiro entendimento jamais se abrirá.

E quem, em sã consciência, se lançaria ao abismo? Não sei, só sei que a palavra, em Clarice, é o canto da sereia.


O que Clarice de verdade escreveu sobre a “alma formada”:
A Possíveis Leitores
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C.L.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Apelo da Alma: Epiteto

Filosofia virou exemplo de reflexões abstratas e textos herméticos. No livro “Novas Vitaminas Filosófica”, Theo Roos a descreve, não a Filosofia em si, mas esta tal qual a compreendemos hoje, como “disciplina aparentemente analítica, conceitual, acadêmica, geralmente abstrata e autoreferente, com pouco ou nada a dizer sobre o mundo real, prático, cotidiano”. “Especular em vez de existir”, esse é o comentário do filósofo dinamarquês Soren Kiekegaar (1813 - 1856) sobre tal concepção da Filosofia.

No entanto, na antiguidade clássica, filosofia e prática eram indissociáveis, pois o conhecimento estava necessariamente ligado à ascese, ou seja, ao exercitar-se. Entendia-se, portanto, que a “arte de viver bem” é uma prática ou um “cuidado de si mesmo”. Mas o que seria esse “cuidar” de “si mesmo”? Na concepção de Sócrates seria o “conhece-te a ti mesmo”, o ocupar-se da própria alma.

Para Epíteto, ex-escravo romano e filósofo estóico que nasceu por volta de 55 d.C, “a principal tarefa da filosofia é responder ao apelo da alma. É procurar compreender o sentido de nossas dores e medos e, assim, nos libertar da sua influência”. Epíteto acreditava que a meta principal da filosofia era ajudar as pessoas comuns a enfrentar positivamente os desafios do cotidiano e a lidar com as inevitáveis perdas, decepções e mágoas da vida.

“Quando a alma grita seu apelo”, disse Epíteto, “é sinal de que chegamos a um estágio necessário e maduro de reflexão sobre nós mesmos. O segredo é não ficar bloqueado nesse ponto, perturbado, torcendo as mãos, mas ir em frente decidido a curar a própria vida. O que a filosofia nos pede é uma opção pela coragem. Seu remédio é expor, sem hesitar, inflexível e obstinadamente, as premissas falsas e enganadoras nas quais baseamos nossas vidas e nossa identidade”.

Então, seria a Filosofia uma espécie refinada de autoajuda?

Se for, pouco importa. Mas na tentativa de elucidar a questão, não vou falar por mim mesmo, vou continuar citando o mestre estóico com um recorte do seu texto intitulado “O verdadeiro propósito da Filosofia”. Viva Epiteto!

O propósito da filosofia é iluminar os caminhos da alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignas de nós. O principal antídoto a tudo isso é um autoexame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria também pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.

A habilidade no uso da lógica e do debate e o desenvolvimento da capacidade de definir as coisas com seus nomes certos são alguns instrumentos que a filosofia nos oferece para alcançar a clareza de visão e a tranquilidade interior que constituem a felicidade verdadeira.

Essa felicidade, que é nossa meta, deve ser corretamente entendida. A felicidade costuma ser confundida com prazer ou lazer experimentados passivamente. Este conceito de felicidade só é bom até certo ponto. O único e precioso objetivo de todos os nossos esforços é uma vida em expansão no caminho da plenitude.

A verdadeira felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. A vida em expansão, cuja base é a intenção de buscar a virtude, é algo que improvisamos continuamente, que construímos a cada momento. Ao fazê-lo, nossa alma amadurece. Nossa vida tem utilidade para nós mesmos e para as pessoas que tocamos.


Citei aqui dois livros que li recentemente e que foram muito importantes pra mim no entendimento que tenho hoje sobre Filosofia. São eles:

Ross, Theo. Novas Vitaminas Filosóficas: receitas para uma boa vida. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

Epíteto. A arte de viver: uma nova interpretação de Sharon Lebell. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Concepção Ensaística da Vida

Depois de uma aula morna, durante o blecaute, na cama, à luz de uma lanterna, reli as primeiras estrofes de ”O Corvo” de Edgar Allan Poe. Sem nenhuma intenção tétrica, já que por uma infernal coincidência a aula fora exatamente sobre o poema, ao contrário do que se possa deduzir dos contos de horror, nada aconteceu. E acabei por me entregar à escuridão depois de sorver a elegante prosa poética de Baudelaire.

Mas hoje, à luz do dia, espremido no metrô, e com os versos insistentes à mão, respirei fundo, procurei me abandonar, ativando os olhos e os ouvidos de dentro, declamei em silêncio:

Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.
Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus umbrais -
É só isto, e nada mais”.


Atentando ao ritmo, à cadência, segui pela segunda, terceira, quarta estrofe. E meu coração ACELEROU. ACELEROU. Na quinta estrofe precisei voltar do INFINITO, das zonas ancestrais, do hiato entre o pensamento e a palavra, do lugar sem nome onde o homem “tangencia o mundo e a si mesmo”. Não tive coragem de continuar, ali, a declamação surda. Apenas disse: “O instante poético é solitário, é íntimo. E isto é tudo, e nada mais”.

Bem, eu só queria entender por que uma exposição muitas vezes correta, planejada, cujo professor é profundo conhecedor do tema e tem todos os requisitos básicos e necessários, não consegue transmitir “essencialidades”, sobretudo as poéticas?

A resposta talvez esteja na “concepção ensaística da vida”, ou seja, o problema não é de conteúdo e competência, mas de uma abordagem ao tema que tente sensibilizar e transmitir o “intransmitível”: o conhecimento que não se ensina, a sensação que não se pode fazer sentir, a experiência singular que não se pode reproduzir no outro.

“Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”. É um curso na Casa das Rosas. Até três quartos da aula eu estava irritado. Nada de fato acontecia, o poeta passava longe, voltas e mais voltas, somente. No final uma pequena redenção. Na segunda aula fomos recebidos a todo volume, uma música dissonante, alta, e o barulho da Paulista tornava sofrível acompanhar o que o professor, Roberto Alves, balbuciava. No terceiro encontro, intencionalmente ou não, a iluminação principal da sala se apagava e, na semiescuridão, o professor tentava prosseguir na leitura. A luz ia e vinha, e assim ficou até o final. Enfim, percebi que tudo tinha um porquê, mesmo o não deliberadamente planejado: o intento do Mestre era esclarecer a questão da aproximação ao tema, tão essencial quando se trata do gênero estudado,

Também percebemos que no Ensaio há, por natureza, camadas de significação, que as leituras do texto podem privilegiar uma ou outra camada, que a função poética e abordagens não convencionais constituem formas de construção e transmissão de conhecimento.

Com tudo isso, e nada mais, retomando o Corvo, e imediatamente saltando a Baudelaire, que por sua vez encontrou em Poe uma grande influência, estou apaixonado pelo gênero de escritura que é o Ensaio, sobretudo os que estou lendo agora, os do Poeta francês. Mas, na verdade, tudo o que disse até aqui foi para anunciar: “mudei minha concepção de vida, serei ENSAÍSTICO”. Que Dramático, diriam!

Por que ser tão certinho? Por que ser tão sistemático, recheado de começo, meio e fim? Por que não começar pelas beiradas, girar em torno dela, apenas? Por que essa necessidade de a tudo reduzir, concluir, significar?

Agora me permito ler poemas, romances, assistir a filmes, contemplar objetos de arte, conversar, e não entender absolutamente nada. Confio que algum sentido penetrou em mim, que a arte e a poesia fizeram o seu papel, que pelo menos um sentimento daquilo tudo sobreviverá! É uma lição que trago para vida: suspender os significados, abandonar a intencionalidade, e fruir.

Não ensaísticamente, conclui.

Me contradigo?
Tudo bem, então.... me contradigo;
Sou vasto.... contenho multidões.
(Walt Whitman)


Paul Valéry, Michel Leiris, Maurice Blanchot: os três ensaístas franceses. Roberto Alves, o Mestre da Casas das Rosas. Baudelaire e Poe, os Poetas. A todos, obrigado!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Tragédia, o Bode, e Macbeth


No “Laboratório de Humanidades” estamos terminando o ciclo Macbeth. Depois da trilogia “O Senhor dos Anéis” veio Shakespeare a me reconciliar com a concepção trágica da vida. Tragédia vem do grego “tragos” e significa bode, ou seja, viver a tragédia é estar no lugar do bode a caminho do sacrifício: o homem sem autonomia e que luta eternamente contra o destino, consciente de sua derrocada final.

Fatalista, pessimista, concepção trágica demais? Talvez. Mas, embora na vida diária seja importante acreditar que de algum modo venceremos no final, é também humanamente necessário que aceitemos nossas limitações, que encaremos o fato de que pouco na vida realmente está sob nosso controle, que viver é mesmo estar em contato permanente com essa fragilidade que somos. Então, ao contrário de cair no desencanto, encarar a tragédia na vida real ou por meio dos heróis das obras da literatura clássica, traz a ideia de que vale a pena continuar lutando contra o destino, de que essa luta por si só é a vida, e de que é pelos vitoriosos embates cotidianos que nos percebemos corajosos e aptos a enfrentar a vida com dignidade. A morte virá, é certo, mas até lá muito som e muita fúria agitará nossa sombra ambulante.

Agora falando de Macbeth, foi uma catarse. Li de uma tacada só. Ao terminar, após longa caminhada, tive anseios de escrever e teclei com toda lucidez. Veja o que escrevi, exatamente, no momento catártico:

Como o mago Gandalf, que para se tornar o cavaleiro branco precisou passar pelos abismos de fogo e pela escuridão das águas profundas, mergulhar em Macbeth e no seu reino de ambição, intriga, superstição e assassinatos também me iluminou. Foi por Macbeth que redescobri a miséria da escuridão. Foi por Macbeth que, paradoxalmente, me veio à luz essa compreensão: um mergulho nas profundezas mais vis revigoraria meu espírito a me revelar a vida real, diferente de um croqui cinza riscado sobre o papel, mas vida que é perspectiva e sombra, cor e volume.

Meio que por superstição fiquei habituado a uma leitura solar. Nada de pessimismo, desamparo e miséria. Tudo deveria afirmar. Nada remeter ao tormento, à dúvida, ao ressentimento. Milagrosamente tudo deveria me salvar do terror da finitude, do tempo que se acaba, da fraqueza. Hoje finalmente me libertei: vou com Macbeth e Rimbaud passar uma temporada no inferno.

Finalmente vejo o quanto essa minha negação do lado visceral e tenebroso da humanidade foi capaz de me desumanizar. Mesmo sem saber, de repente agi como Macbeth ao acreditar em vaticínios de bruxas e maus espíritos. É como se a maldição sobreviesse a mim se com a maldição eu tratasse, ainda que por meios solares, como a arte e a literatura. Passei então à covardia e ao receio de me ver outra vez rendido ao desencanto existencial que um dia tomou conta de mim quando li “A Náusea”, de Sartre.

Quanto a Sartre e os meus 20 anos, contarei depois essa louca iniciação. Também desvendarei o Laboratório de Humanidades.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O GOSTO DO INFINITO! Como assim?

De Baudelaire eu mal conheço dois ou três poemas do livro “As Flores do Mal”, mas adorei o ensaio “O Pintor da Vida Moderna”. Entusiasmado por ele, descobri o curso “Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”, lá na Casa das Rosas, onde tomei conhecimento do ensaio “O Poema do Haxixe” cujo título do primeiro capítulo é exatamente “O Gosto do Infinito”.

No começo de 2009 fiz minha primeira tentativa frustrada de publicar um blog. Era pretensioso, ou imaturo, pois se dizia de Filosofia, mas não a Filosofia de reflexões abstratas e textos analíticos e impenetráveis, porém aquela aplicada ao cotidiano, à “arte de viver” e ao “cuidado de si mesmo”. Queria falar especialmente de Sócrates, Epicuro, Epiteto, Sêneca entre outros por quem eu estava, naquele momento, profundamente impressionado. A intenção era boa, eu tinha muito que falar sobre o assunto, mas talvez eu quisesse “tomar o paraíso de um só golpe”, na expressão utilizada exatamente por Baudelaire em “O Gosto do Infinito”, nome tão sugestivo e sintético que eu não resisti e assim batizei esse blog, que inicio agora.

GOSTO DO INFINITO? Sim, nós homens temos raros momentos de transcendência, quando podemos notar no “observatório dos pensamentos, belas estações, dias felizes, minutos deliciosos”. É um verdadeiro “estado excepcional do espírito e dos sentidos”. “Uma verdadeira graça, como um espelho mágico onde o homem é convidado a ver-se belo, isto é, tal qual deveria e poderia ser”. E como essas "amostras do paraíso" são tão raras quanto desejadas, e sendo o homem pouco hábil em reproduzi-las naturalmente, somos assim impulsionado pelo gosto do infinito a buscar meios artificiais de repetição. E sendo nós como somos, ligeiramente dominados pelas paixões, temos o vício a nossa espreita, como também a graça. Enfim, para o bem ou para o mal, temos em nós o gosto do infinito e por ele perseguimos a vida.

Quanto a mim, vivo procurando escapar dos vícios, pelo menos dos mais tenebrosos, e cedendo aos encantos de pequenas fraquezas inconfessáveis. Nos últimos tempos, o infinito em mim tem se manifestado no sentido da poesia, na palavra viva e redentora de amigos, sábios e professores, personagens da vida e da literatura, no entendimento e na resignificação que a história do pensamento e do conhecimento humanos têm sido capazes de imprimir nessa minha existência pueril.

E é por este caminho que pretendo seguir no blog: o da construção do INFINITO em mim e em VOCÊ.





Eu CELEBRO a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.


Primeira estrofe do poema “Canção de Mim Mesmo” de Walt Whitman (1855).