quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Concepção Ensaística da Vida

Depois de uma aula morna, durante o blecaute, na cama, à luz de uma lanterna, reli as primeiras estrofes de ”O Corvo” de Edgar Allan Poe. Sem nenhuma intenção tétrica, já que por uma infernal coincidência a aula fora exatamente sobre o poema, ao contrário do que se possa deduzir dos contos de horror, nada aconteceu. E acabei por me entregar à escuridão depois de sorver a elegante prosa poética de Baudelaire.

Mas hoje, à luz do dia, espremido no metrô, e com os versos insistentes à mão, respirei fundo, procurei me abandonar, ativando os olhos e os ouvidos de dentro, declamei em silêncio:

Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.
Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus umbrais -
É só isto, e nada mais”.


Atentando ao ritmo, à cadência, segui pela segunda, terceira, quarta estrofe. E meu coração ACELEROU. ACELEROU. Na quinta estrofe precisei voltar do INFINITO, das zonas ancestrais, do hiato entre o pensamento e a palavra, do lugar sem nome onde o homem “tangencia o mundo e a si mesmo”. Não tive coragem de continuar, ali, a declamação surda. Apenas disse: “O instante poético é solitário, é íntimo. E isto é tudo, e nada mais”.

Bem, eu só queria entender por que uma exposição muitas vezes correta, planejada, cujo professor é profundo conhecedor do tema e tem todos os requisitos básicos e necessários, não consegue transmitir “essencialidades”, sobretudo as poéticas?

A resposta talvez esteja na “concepção ensaística da vida”, ou seja, o problema não é de conteúdo e competência, mas de uma abordagem ao tema que tente sensibilizar e transmitir o “intransmitível”: o conhecimento que não se ensina, a sensação que não se pode fazer sentir, a experiência singular que não se pode reproduzir no outro.

“Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”. É um curso na Casa das Rosas. Até três quartos da aula eu estava irritado. Nada de fato acontecia, o poeta passava longe, voltas e mais voltas, somente. No final uma pequena redenção. Na segunda aula fomos recebidos a todo volume, uma música dissonante, alta, e o barulho da Paulista tornava sofrível acompanhar o que o professor, Roberto Alves, balbuciava. No terceiro encontro, intencionalmente ou não, a iluminação principal da sala se apagava e, na semiescuridão, o professor tentava prosseguir na leitura. A luz ia e vinha, e assim ficou até o final. Enfim, percebi que tudo tinha um porquê, mesmo o não deliberadamente planejado: o intento do Mestre era esclarecer a questão da aproximação ao tema, tão essencial quando se trata do gênero estudado,

Também percebemos que no Ensaio há, por natureza, camadas de significação, que as leituras do texto podem privilegiar uma ou outra camada, que a função poética e abordagens não convencionais constituem formas de construção e transmissão de conhecimento.

Com tudo isso, e nada mais, retomando o Corvo, e imediatamente saltando a Baudelaire, que por sua vez encontrou em Poe uma grande influência, estou apaixonado pelo gênero de escritura que é o Ensaio, sobretudo os que estou lendo agora, os do Poeta francês. Mas, na verdade, tudo o que disse até aqui foi para anunciar: “mudei minha concepção de vida, serei ENSAÍSTICO”. Que Dramático, diriam!

Por que ser tão certinho? Por que ser tão sistemático, recheado de começo, meio e fim? Por que não começar pelas beiradas, girar em torno dela, apenas? Por que essa necessidade de a tudo reduzir, concluir, significar?

Agora me permito ler poemas, romances, assistir a filmes, contemplar objetos de arte, conversar, e não entender absolutamente nada. Confio que algum sentido penetrou em mim, que a arte e a poesia fizeram o seu papel, que pelo menos um sentimento daquilo tudo sobreviverá! É uma lição que trago para vida: suspender os significados, abandonar a intencionalidade, e fruir.

Não ensaísticamente, conclui.

Me contradigo?
Tudo bem, então.... me contradigo;
Sou vasto.... contenho multidões.
(Walt Whitman)


Paul Valéry, Michel Leiris, Maurice Blanchot: os três ensaístas franceses. Roberto Alves, o Mestre da Casas das Rosas. Baudelaire e Poe, os Poetas. A todos, obrigado!

Um comentário:

  1. Nunca li O Corvo, e gosto muito do Poe, mas mesmo assim nunca li.
    Gostei do blog, xuxu!
    Renata Xu

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