sábado, 23 de janeiro de 2010

A Festa da Poesia

“Experimento, logo existo”: ouvi a paráfrase no “Café Filosófico” da TV Cultura. Estavam lá Viviane Mosé, psicanalista e filósofa, e o terapeuta corporal Nelson Lucero, que juntos discutiam o poder dos afetos. Meus domingos à noite têm sido assim: o finzinho do Fantástico e alguma filosofia.

Embora estivesse sonolento, não me esqueço quando eles disseram que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”. E mais, “eu só tenho acesso à experiência do outro por meio de sua expressão”. E que “o pensamento puramente racional impede os afetos, impedindo de criar”. Nossa! Eu poderia me perder por aqui...

Mas o que eu queria mesmo dizer era que hoje estive mexendo em papéis velhos. E achei algumas poesias antigas, minhas, de uma época em que eu vivia seguindo Adélia Prado. É verdade: eu e o Marcelo íamos juntos onde ela estivesse em São Paulo. Tenho fotos em preto e branco e tudo. Na época eu havia comprado aquele livro verde e roxo, “Poesia Reunida”, que ela me autografou, enquanto conversávamos sobre trem de ferro, Divinópolis, Minas Gerais... “Só faltou tirar o terço e rezar”, ironizou o Marcelo morto de inveja, porque ele é o maior adorador da Adélia. Sabe seus poemas de cor.

No meu livro ela escreveu:

“Para o Licurgo desejando-lhe a festa da Poesia.
Com Carinho, Adélia Prado”.

Voltando aos papéis velhos, li os poemas e senti aquela natural pontinha de vergonha. E notei que escrevo poesia em primeira pessoa. “Bem que eu podia deixar de ser tão confessional”, reclamei. Mas agora, lembrando do Nelson Lucero, que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”, senti orgulho da minha pequena criação. Se elas são boas ou não, que importa, mas sei que são criações explosivas de “afetos” verdadeiros.

Enfim, tímido, publico duas:



TÊNUE ESTAMPA

Gostava tanto daquela saia de lã...
O pai, de tão magro, parece um gato...
Disse ela mirando as fotos nos binóculos da juventude,
como de quem escapava um pensamento.

Eis minha mãe.
Eis o tempo.
Pude percebê-los em gema de cristal.
Ele passara e da saia de lã restava apenas a tênue estampa.

Que saudades dessa mulher que não me lembro.
Se pudesse lhe devolveria as cores vivas
de quando eu nem havia nascido,
a presenteá-la com o tempo,
essa variável sem acordos,
que desbota os tecidos,
amarela os papéis,
mas não lhes tira a marca d'água.


O tempo apaga o retrato,
vinca a memória,
resseca os intestinos,
mas não desfaz o encantamento:
somos todos “cada um”.

Só então pude perceber:
há um pedaço da minha mãe que não se curva.
Invulnerável, alheio, nascido.
Morrerá com ela,
Indestrutível em minha memória.

BEATICE

Qualquer suavidade é sempre rogada
- suplico a calmaria, a expressão exata, o gesto preciso -
Que sou dos secos.

Mas hoje não vou sem um arroubo,
sem a prática que me alivia:
- uma cega alimentava o filho às escuras!

Quis trazê-la ao colo,
a soprar seus os olhos no ímpeto de avivá-los.
Por ela fiquei santo,
- Santo Deus nas alturas! -
a ponto de arrebatar as pessoas inteiras.

Quem então enxergava os grãos de bico?

A cega, de grão em grão, separava-os cismada.
Mas quando a vida não basta, não basta.
No metrô, os “entendidos” entreolhavam-se com ousadia!
A avó de um amigo está no morre não morre.
“Nesse estabelecimento não se fuma”, anunciava o cartaz.

Nas ruas, uma gente e suas estampas
cinzas a tempestear a calmaria dos dias.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.