quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

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O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.