sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Na Expectativa de Atravessar o Oceano

Poeticamente, a minha ausência na abertura do ciclo "Zorbás" no Laboratório de Humanidades foi a melhor história de leitura que eu poderia ter contado a todos, justamente porque fui com Fábio [e o Zorbás] atravessar o oceano.



Pois, ao contrário do que muitos possam imaginar, sempre me impus navegar pelos mares do bom senso, embalado por medos, inseguranças, e hábitos inconfessáveis de um bom-mocismo hesitante. Como o escrevinhador do romance, eu nunca havia antes cedido aos encantos de uma “belíssima pedra verde”. E assim como ele, sempre fui um fiel seguidor da “comedida, fria e humana voz da razão”.

Por coincidência, ou não, li Kazantzákis exatamente no momento em que a tomada de certas decisões práticas tornava inevitável essa minha viagem. Ao mesmo tempo, em meio à tirada de passaporte e preocupações com hospedagem, temor de atravessar o oceano, compras de moeda estrangeira, ansiedade, eu me comprometia com o meu projeto de Mestrado, que pretende exatamente analisar o impacto das leituras de Huxley e Kazantzákis no LabHum. O fato é que para o bem ou para o mal, Zorbás venceu essa batalha: estou hoje numa viagem de sonhos e de amor.


Mas não estou indo para Creta, cenário árido e belo, tão propício à reflexão. Estou indo para Paris e Londres, onde certamente serão paisagens, iguarias, roupas, perfumes e cosméticos que alimentarão minha alma. Tampouco pressinto que nessa viagem eu vá descobrir algum sentido oculto. Nada disso. Naturalmente há o antigo desejo de conhecer outros países, outras culturas. Mas, de maneira um tanto mais prosaica, estou mesmo é me permitindo viver solto, ou seja, alimentando minhas vaidades, zerando minhas invejas, gastando meu dinheiro, sendo um tanto quanto inconsequente...

Entretanto, inspirado por Zorbás, esse que tanto fez para me “ensinar a amar a vida e a não temer a morte”, irei à procura de resgatar meu olhar primitivo, que me conceda a “virgindade aos eternos elementos cotidianos”. Espero que em cada jardim, em cada prédio, em cada homem, o frescor do coração de Zorbás se apodere de mim. E que com o coração renovado eu possa superar velhos medos. E me escapar do “inferno dos escrevinhadores”. E tentar ouvir, finalmente, essa voz que me chama e me pede para viver com mais “sangue, carne e ossos” essa minha vida banal de “papel e tinta”.



PARA ENTENDER MELHOR:

Entusiasmado pela leitura do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”de Nikos Kazantzákis, talvez o maior escritor grego do século XX, copio abaixo dois trechos do prólogo para que vocês se deliciem:


"Se hoje, em todo o mundo, eu fosse escolher um guia espiritual, um "Guru" como dizem os hindus, um "Mentor" como dizem os monges do Monte Athos, certamente eu escolheria Zorbás, porque ele tinha tudo aquilo que um escrevinhador necessita para subsistir: o olhar primitivo que capta das alturas, como uma flecha, o seu alimento; a simplicidade criativa, renovada a cada manhã, a perceber incessantemente todas as coisas como se fosse pela primeira vez e a conceder virgindade aos eternos elementos cotidianos - ar, mar, fogo, mulher, pão; a firmeza da mão, o frescor do coração, a coragem de caçoar de sua própria alma, como se ele tivesse internamente uma força superior à alma e, por fim, a áspera risada gorgolejante, vinda de uma fonte profunda, mais profunda do que as entranhas do homem e que, nos momentos críticos, irrompia libertadora do velho peito do Zorbás, irrompia e podia demolir (e demolia) todas a barreiras - moral, religião, pátria - que o homem, infeliz e medroso, ergueu em torno de si para mal e mal tocar com segurança sua vidinha".

[...]

"Se eu tivesse ouvido a voz dele - não a voz, o brado - minha vida teria adquirido valor: eu viveria com sangue, carne e ossos tudo aquilo que agora, como um narcotizado, considero e realizo com papel e tinteiro. Mas não ousei. Eu via Zorbás em plena noite a dançar relinchando, a gritar para que eu também me arrojasse da confortável concha do bom senso e do hábito e com ele partisse para grandes viagens: e eu ficava imóvel, tiritando. Muitas vezes em minha vida senti vergonha por conter minha alma para que ela não ousasse fazer tudo aquilo que a suprema loucura - a essência da vida - conclamava-me a fazer, mas nunca me envergonhei tanto por minha alma como diante de Zorbás".

E isso é só o começo. Na orelha do livro está escrito: "Zorbás consegue ser ao mesmo tempo um romance de aventura, que se lê com febre, e um romance de formação, que transforma". Há uma edição recente traduzida diretamente do Grego. Nas edições antigas, o título em português era “Zorbás, o Grego”, por causa do filme, grande sucesso de bilheteria nos anos 60. Mas eu gosto mais do romance, embora haja quem prefira o Zorbás do cinema. É que a interpretação de Anthony Quinn no papel está impecável. No filme, porém, as inquietações do outro personagem, o escrevinhador, ficam por demais apagadas.

Referência do livro:

Nikos Kazantzákis. Vida e Proezas de Aléxis Zorbás. Editora Grua, 2011.

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