quinta-feira, 26 de maio de 2011

Bergman, Bergman, Bergman: Amavio!

Tive o privilégio de assistir “Sonata de Outono” na telona. Não, não foi em 1978, época em que Ingmar Bergman lançou o filme. Foi no começo desse ano quando, por indicação de uma amiga, fui me despedir do “Cine Belas Artes”. Sai da sala tal qual a Sônia me disse que saíra, literalmente doído. Já na rua me persistia um vazio, um nada, difícil de entender, pois afinal tratava-se de um Bergman. Era como se durante a sessão uma substância estranha tivesse sido injetada em mim, um amavio, um encanto, talvez, cujo efeito naturalmente demorasse a acontecer. Mas aconteceu.

No outro dia à tarde, quase 24 horas após, ainda sob o efeito de um nada, devagarzinho, tive o impulso de procurar na internet a cena em que Eva (a filha) impõe a Charlotte (sua mãe) a morte do pequeno Erik (seu filho), e cuja fala longa e intensa, ali na fluidez das legendas, me fez lembrar algo de Dostoiévski: Deus, demônio, santos, profetas, artistas, iconoclastas, palavras que então lidas por mim rapidamente na tela iam se misturando à rudeza do idioma sueco, ao mesmo tempo em que a voz suave e melancólica de Liv Ullmann (Eva), sob o olhar pequeno e angustiado de Ingrid Bergman (Charlotte), que na minha frente parecia se contorcer de reprovação e dor, me faziam perceber o quanto “Sonata de Outono” era mesmo um filme grandioso, ainda que no final eu tivesse sido tomado por certa anestesia.

O fato é que inicialmente eu não consegui encontrar a tal cena no Google, mas revi no Youtube a inesquecível aula de piano em que Charlotte, uma pianista célebre e tecnicamente perfeita que, sem humilhar propriamente a filha, não consegue deixar de derramar sobre ela seu olhar compassivo e arrogante, exteriorizando assim a superioridade e o distanciamento que essa mulher sempre fez questão de estabelecer na sua relação com a família e com a própria vida. Foi então que atingi o paroxismo da substância: passei a me sentir estranho, incomodado, impactado, embevecido pelo magnífico texto do Bergman, pela grandeza das atrizes, e por tudo que eu não fui capaz de compreender no filme.

Dias depois, baixando e assistindo novamente o filme, agora porque iria discuti-lo com o grupo do Laboratório de Cinema, finalmente transcrevi a fala que no “Belas Artes” tanto me impressionou:




[...] Não há linha divisória, nem muralha intransponível. Eu queria saber como é a vida onde meu filho vive. Eu sei que não dá para descrever. É um mundo de sentimentos livres. Sabe o que eu quero dizer? Para mim, o homem é uma criação incrível, uma ideia inconcebível. No homem, existe tudo, do começo ao fim. O homem é a imagem de Deus e, em Deus, existe tudo. E o ser humano foi criado, mas também os demônios, os santos, os profetas, os artistas e os iconoclastas. Tudo existe paralelamente. São como padrões grandiosos mudando o tempo todo. Da mesma forma, deve haver inúmeras realidades, não só esta que percebemos com nossos sentimentos embotados, mas um amontoado de realidades se sobrepondo umas às outras. É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos nem para os sentimentos. Ao tocar a parte lenta da sonata de Hammerklavier você deve sentir que o mundo não tem limites em uma atividade que você nunca entenderá nem explorará.



Soube que essa foi a última interpretação de Ingrid Bergman para o cinema. E que nas filmagens ela já estava consciente da gravidade do câncer que a mataria quatro anos depois. Em matéria de cinema, eu me considero um ignorante. Sou daqueles que não sabe dos diretores, que nunca guarda como se pronuncia o nome complicado dos atores estrangeiros, e que se esquece rapidamente dos argumentos. Dos mais de sessenta filmes do Bergman, “Sonata” foi o quarto que assisti. De Ingrid Bergman eu sabia apenas de “Casablanca”. Liv Ullmann era para mim uma referência distante, pensava que fosse talvez uma atriz americana, e não norueguesa.

Bem, não vou ficar aqui destilando meu desconhecimento cinematográfico, mesmo porque nada disso importa. O que importa é que com esse filme o cinema de Bergman se apossou de mim. Tanto que jamais me esquecerei da conturbada vida afetiva daquelas duas criaturas hipersensíveis, mãe e filha, numa relação de afeto e desafeto, amor e desamor, compreensão e incompreensão, alto apreço e pequenez, sentimentos tão comuns a todos nós seres humanos, especialmente quando nos é dado viver nos extremos, tanto nas alturas de uma vida profissional bem-sucedida pretensamente destinada à perfeição, como quando vivemos à sombra de tudo isso, jogados à insignificância de nós mesmos. Do embate entre essas duas mulheres vi jorrar da tela solidão, angústia, dor e sofrimento. E na minha pele senti os efeitos destrutivos de uma vida obsessiva, incapaz de tolerar as imperfeições de ser gente, quanto mais amar e acolher as imperfeições do outro. Mesmo assim não considero Charlotte uma mulher desumana. Charlotte é mais uma sofredora, numa espécie de “analfabetismo afetivo”, expressão que o próprio Bergman explorou em “Cenas de um Casamento”, outro de seus grandes filmes.

Impossível exprimir aqui tudo o que tenho sentido nessa minha fase cinéfila. Se eu fosse pegar Lars Von Trier, por exemplo, para tentar explicar porque quase desmaiei duas vezes assistindo “Anticristo”, soaria até ridículo. Quem acreditaria que aquela mulher maligna pudesse mexer comigo a ponto de me escurecerem as vistas? E que eu precisei pausar o filme duas vezes para molhar a nuca e os pulsos? Já em “Dogville” uma surpresa, um entusiasmo, e eu indignado pela capacidade que o homem tem de humilhar, abusar, maltratar alguém daquele jeito. E depois ainda experimentar a contradição de vibrar contente na cena do extermínio final.

É verdade que em 2010 eu já participara do Laboratório de Cinema. E que por causa disso eu assisti “O Sétimo Selo”. Mas em 2011 a sétima arte passou a me espreitar diferente. Ela agora flerta comigo, e me seduz. Talvez porque o mergulho no Laboratório de Cinema tenha sido mais intenso. Nesse ciclo resolvemos estudar o cinema de autor para nos aprofundar na arte de dois grandes cineastas: Ingmar Bergman e Akira Kurosawa. Também tenho me deslocado semanalmente para frequentar na PUC um curso teórico do Prof. Luiz Felipe Pondé: “Cinema e Religião - Lars Von Trier, Kieslowski e Bergman”. Com um pouco de exagero, acho que se eu continuar nesse ritmo assistirei mais filmes nesse ano do que já vi em toda minha vida. E olha que eu sou do tempo em que se via Mazzaropi e Derci Gonçalves na Sessão da Tarde.

Mas a minha obsessão atual é mesmo bergniana. Vou relacionar na ordem os filmes que assisti dele nos últimos tempos: “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno”, "Sonata de Outono", “Morangos Silvestres”, “Persona”, “Gritos e Sussurros”, “Fanny e Alexander” e “Através de um Espelho”. Com exceção de “Gritos e Sussurros”, que eu pouco entendi e quase não me identifiquei, todos os outros foram uma explosão. Explosão de beleza. Explosão de sentimentos. De perplexidades. Se eu disser que gostei mais de “O Sétimo Selo”, “Luz de Inverno” certamente gritará. Se eu eleger “Sonata de Outono”, “Persona” calará fundo em mim. E como eu não quero, não posso, e não saberia agora me colocar crítica e afetivamente diante desses filmes, assumo o risco e escolho “Morangos Silvestres” para continuar um pouco mais com Bergman antes de finalizar.

Aliás, já citei aqui “Morangos Silvestres” quando publiquei o post anterior: “Eu, Antonius Block”, que começa assim:



Fui à Praça Roosevelt com a Neusa, no antigo Cineclube Bijou, assistir Bergman. Meados da década de 90, “Morangos Silvestres”. Do filme só me lembro que era em preto e branco e que contava a história de um velho viajante. Mais nada.

Mais de vinte anos depois, no entanto, descubro que tenho muito de mim naquele homem de 78 anos. Que a trajetória existencial dele poderia (e poderá) muito bem ser a minha. E que eu, aos 45 anos, talvez ainda continue sendo o mesmo garotinho tímido que um dia se deparou com esse velho no Cineclube Bijou, soube de suas angústias, lamentações, sofreu com o seu isolamento, mas não compreendeu nada, não se modificou em nada, porque na sua imaturidade não conseguia sair de si mesmo. Tem uma hora no filme em que a vida do Prof. Borg é avaliada num sonho. E ele é acusado de culpa. E sem compreender o veredito, o avaliador lhe explica que ele cometeu pequenos delitos, porém graves, como a indiferença, o egoísmo e a falta de consideração. “E qual será a pena?”, pergunta o velho médico. “Pena? A de sempre, creio. A solidão”, responde o juiz.

Mas eu tenho confiança, quem sabe ingênua, de não continuar sendo eternamente aquele garotinho. E de que eu consiga sair um pouco de mim mesmo. No fim da vida, o Prof. Borg ousou olhar corajosamente para a vida: abriu-se para o outro. Descobriu sobre o amor. Fiquei sinceramente feliz porque no final do filme um olhar risonho invade toda a tela. É um olhar para o infinito.

SINOPSES:
Sonata de Outono:


Uma pianista de concerto acaba de perder o homem com quem vivia há muitos anos. A filha, que está casada há alguns anos com um pastor e vive numa pequena cidade da Noruega, pede à mãe que a visite. Durante alguns dias, as duas mulheres confrontam-se. Umas vezes sentem repulsa pela outra, outras vezes procuram a sua companhia. Mas o encontro será crucial para o futuro de ambas. O que está em causa nessa relação é obrigatoriamente o amor: a presença e a ausência do amor, o desejo do amor, as mentiras do amor, o amor deformado, e o amor como a nossa única esperança para sobreviver.

Morangos Silvestres:

Um professor aposentado viaja de automóvel de Estocolmo até a universidade em que lecionou, a fim de receber um título honorífico. Durante a viagem, um pesadelo desencadeia uma série de associações mentais que o fazem recordar episódios de sua longa vida. O filme não vale para quem quer só diversão: é esplêndido, mas sério e difícil. Destaca-se pelo excelente uso do flashback, ótima fotografia em preto-e-branco, direção muito criativa de Bergman e interpretação brilhante do antigo diretor Sjöstrom como o velho professor. Vencedor do Urso de Ouro em Berlim.

Um comentário:

  1. Olá, Licurgo! Estava te devendo esta visita ao seu blog, e foi uma bela surpresa me deparar com a sua nova descoberta, o universo bergmaniano. Sou suspeito, Bergman para mim sempre foi o melhor, não digo isso porque ele é reconhecido como um gênio do cinema, mas porque ele é o que se aproxima (perigosamente) das minhas questões mais íntimas. Não é à toa que fiz aquele mestrado sobre a angústia...
    Licurgo, devo voltar no segundo semestre ao Laboratório de Humanidades, um fôlego para mim que anda achando insuportável ministrar aulas por necessidade na FMU. Mas isso é um outro assunto. Tudo de bom para você! Abração do José Luiz

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