segunda-feira, 19 de abril de 2010

Minha Pequena Odisseia



Venci a minha guerra de Troia. No embate fui meu próprio cavalo de pau. Arranquei das entranhas arsenais que eu nunca imaginara. Armaduras de ferro, lanças pontiagudas, venenos. Exército sanguinolento eu fui. Pilhei meus próprios recursos, violentei convicções, vivi na mixórdia. Não me chamo Ulisses, nem de Penélopes eu gosto. Não luto por Helenas, mas tenho nome espartano.

Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas tentações. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invadores, reinarei até o fim.

Cada um de nós vive a sua Odisseia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.

Hei de Ser "Indecente"!

Viver a vida "decente" de Ivan Ilitch é viver uma vida deliberadamente conveniente. Forçosamente leve e agradável. Vida de raros entusiasmos, de envolvimentos recatados, aceitáveis. Vida vazia de si, vazia em si.

É nunca se expor ao ridículo, ainda que se imagine inteiramente racional. É reprimir e minimizar sentimentos, fragilidades, covardias e enganos. É se projetar num patamar plasticamente superior, artificialmente seguro, engessadamente nobre.

É se atirar numa cratera de falsos valores e viver idealmente. É vincular-se a conceitos e não a pessoas. É matar a subjetividade e despir a própria humanidade. É calar vozes interiores, abandonar a busca atávica de sentido, esquecer-se automaticamente de si.

Mas mal sabe ele, o "decente", o sabor da vida humana, sempre tão incerta e apaixonante, tão contraditória e envolvente. Por isso eu, um autêntico "decente", sofro, choro e morro com Ivan Ilitch. E vislumbro me atirar no abismo de uma vida plena, redescobrindo o gosto "indecente" do infinito.