quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tinta Russa, e o Método de Deus


O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.

Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.

Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.

Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.

Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.

Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.

Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.

Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.

Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.

Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.

Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.

Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.

Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).
Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.

E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:

Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)

E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.

Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.

Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)
“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.

Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.


Bibliografia:

Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.


Notas:

(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.

(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.

(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].

(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).

(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.

(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.

(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Minha Pequena Odisseia



Venci a minha guerra de Troia. No embate fui meu próprio cavalo de pau. Arranquei das entranhas arsenais que eu nunca imaginara. Armaduras de ferro, lanças pontiagudas, venenos. Exército sanguinolento eu fui. Pilhei meus próprios recursos, violentei convicções, vivi na mixórdia. Não me chamo Ulisses, nem de Penélopes eu gosto. Não luto por Helenas, mas tenho nome espartano.

Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas tentações. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invadores, reinarei até o fim.

Cada um de nós vive a sua Odisseia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.

Hei de Ser "Indecente"!

Viver a vida "decente" de Ivan Ilitch é viver uma vida deliberadamente conveniente. Forçosamente leve e agradável. Vida de raros entusiasmos, de envolvimentos recatados, aceitáveis. Vida vazia de si, vazia em si.

É nunca se expor ao ridículo, ainda que se imagine inteiramente racional. É reprimir e minimizar sentimentos, fragilidades, covardias e enganos. É se projetar num patamar plasticamente superior, artificialmente seguro, engessadamente nobre.

É se atirar numa cratera de falsos valores e viver idealmente. É vincular-se a conceitos e não a pessoas. É matar a subjetividade e despir a própria humanidade. É calar vozes interiores, abandonar a busca atávica de sentido, esquecer-se automaticamente de si.

Mas mal sabe ele, o "decente", o sabor da vida humana, sempre tão incerta e apaixonante, tão contraditória e envolvente. Por isso eu, um autêntico "decente", sofro, choro e morro com Ivan Ilitch. E vislumbro me atirar no abismo de uma vida plena, redescobrindo o gosto "indecente" do infinito.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Ivan Ilitch não leu “O Livro dos Prazeres”

“A maior felicidade é quando a pessoa sabe porque é infeliz” (Dostoievski)

“Pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte” (Clarice Lispector)1


Quando li “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” de Clarice Lispector fiquei com o livro a tiracolo por uns seis meses: passava os olhos num trecho qualquer e ainda assim boiava. Pressentia, no entanto, ali uma importância, e a sensação de que uma aprendizagem se insinuava, embora eu não presumisse qual.

Inexperiente, virei “especialista”. Entusiasta, fiz apologia do romance e saí por aí presenteando pessoas, induzindo-as à compra. Dizia que Clarice era isso e aquilo. Que a personagem me comovia. Que sua intensidade. Que sua liberdade. Que sua relação com Ulisses. E que a despeito de tudo, ela aprendera.

Mais de vinte anos depois não me lembro direito da história. Nenhum argumento persistiu, apenas “Ulisses”, porque fiquei sabendo, na época, que esse também era o nome do gato da Clarice. Mas hoje, exatamente quando acabo de ler Tolstói, quando sofro e choro a morte de Ivan Ilitch, soube, enfim, tudo o que aprendera, tudo.

Aprendera a vida. Vida não necessariamente leve, agradável, decente, mas vida humana. Vida vivida não em aparências, em artificialidades, na correção do socialmente aceitável. Tampouco vida chata, deliberada, do tipo intensa. Mas vida errante, rotineira, sofrível, contraditória, para uns até mesmo "indecente", mas plena do sentimento de existência, da certeza que se é assim como uma lamparina acesa, mesmo que rodeada de insetos.


Um mundo fantástico me rodeia e me é. Ouço o canto doido de um passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roída por um verme. E espero a apocalipse orgásmica. Uma chusma dissonante de insetos me rodeia, luz de lamparina acesa que sou (Clarice Lispector).2

Agora sei que Clarice me ensinou a viver a vida, vida que se aproxima da morte. E que Tolstói, me aproximando da morte, me ligou implacavelmente à vida.

Ivan Ilitch não teve a chance de ler Clarice Lispector. Mas todos nós temos a chance de ler “A morte de Ivan Ilitch”: viva!


1. Lóri, personagem de Clarice Lispector em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.


2. Encontrei a citação no livro “Romanceiro de Dona Virgo” de Cláudio Daniel. Não há registro de onde ela foi retirada. Mas com certeza não foi do “Livro dos Prazeres”.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

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O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A Festa da Poesia

“Experimento, logo existo”: ouvi a paráfrase no “Café Filosófico” da TV Cultura. Estavam lá Viviane Mosé, psicanalista e filósofa, e o terapeuta corporal Nelson Lucero, que juntos discutiam o poder dos afetos. Meus domingos à noite têm sido assim: o finzinho do Fantástico e alguma filosofia.

Embora estivesse sonolento, não me esqueço quando eles disseram que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”. E mais, “eu só tenho acesso à experiência do outro por meio de sua expressão”. E que “o pensamento puramente racional impede os afetos, impedindo de criar”. Nossa! Eu poderia me perder por aqui...

Mas o que eu queria mesmo dizer era que hoje estive mexendo em papéis velhos. E achei algumas poesias antigas, minhas, de uma época em que eu vivia seguindo Adélia Prado. É verdade: eu e o Marcelo íamos juntos onde ela estivesse em São Paulo. Tenho fotos em preto e branco e tudo. Na época eu havia comprado aquele livro verde e roxo, “Poesia Reunida”, que ela me autografou, enquanto conversávamos sobre trem de ferro, Divinópolis, Minas Gerais... “Só faltou tirar o terço e rezar”, ironizou o Marcelo morto de inveja, porque ele é o maior adorador da Adélia. Sabe seus poemas de cor.

No meu livro ela escreveu:

“Para o Licurgo desejando-lhe a festa da Poesia.
Com Carinho, Adélia Prado”.

Voltando aos papéis velhos, li os poemas e senti aquela natural pontinha de vergonha. E notei que escrevo poesia em primeira pessoa. “Bem que eu podia deixar de ser tão confessional”, reclamei. Mas agora, lembrando do Nelson Lucero, que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”, senti orgulho da minha pequena criação. Se elas são boas ou não, que importa, mas sei que são criações explosivas de “afetos” verdadeiros.

Enfim, tímido, publico duas:



TÊNUE ESTAMPA

Gostava tanto daquela saia de lã...
O pai, de tão magro, parece um gato...
Disse ela mirando as fotos nos binóculos da juventude,
como de quem escapava um pensamento.

Eis minha mãe.
Eis o tempo.
Pude percebê-los em gema de cristal.
Ele passara e da saia de lã restava apenas a tênue estampa.

Que saudades dessa mulher que não me lembro.
Se pudesse lhe devolveria as cores vivas
de quando eu nem havia nascido,
a presenteá-la com o tempo,
essa variável sem acordos,
que desbota os tecidos,
amarela os papéis,
mas não lhes tira a marca d'água.


O tempo apaga o retrato,
vinca a memória,
resseca os intestinos,
mas não desfaz o encantamento:
somos todos “cada um”.

Só então pude perceber:
há um pedaço da minha mãe que não se curva.
Invulnerável, alheio, nascido.
Morrerá com ela,
Indestrutível em minha memória.

BEATICE

Qualquer suavidade é sempre rogada
- suplico a calmaria, a expressão exata, o gesto preciso -
Que sou dos secos.

Mas hoje não vou sem um arroubo,
sem a prática que me alivia:
- uma cega alimentava o filho às escuras!

Quis trazê-la ao colo,
a soprar seus os olhos no ímpeto de avivá-los.
Por ela fiquei santo,
- Santo Deus nas alturas! -
a ponto de arrebatar as pessoas inteiras.

Quem então enxergava os grãos de bico?

A cega, de grão em grão, separava-os cismada.
Mas quando a vida não basta, não basta.
No metrô, os “entendidos” entreolhavam-se com ousadia!
A avó de um amigo está no morre não morre.
“Nesse estabelecimento não se fuma”, anunciava o cartaz.

Nas ruas, uma gente e suas estampas
cinzas a tempestear a calmaria dos dias.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Em Zona de Tangência

O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério - Face a face...
(O Mistério do Mundo - Fernando Pessoa)


Mestres, poetas, filósofos, bruxos! Alguém que se apresente. Todos vocês, feiticeiros em geral, me arrastem que eu quero estar como Empédocles (1) à beira da cratera. Tenho em mim o imenso desejo de cair: anseio a epifania, o sagrado, o gosto do infinito.

Ah, o mistério! “Ele é a vida e a morte”. “Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo” (2). Foi o Rafael (3) que me insinuou esse Fernando Pessoa abissal. E que também me disse que as “verdades são epifânicas”. Juro, se eu não fosse tão afeito às agudezas da vida, teria sido arrebatado. Mas como posso decifrar esse mistério? Vou apenas desenhar aqui uma fina brecha por onde penetre ao menos um filete de luz.

Epifania é o afeto condensado ao limite da explosão: arrebatamento de amor, de piedade. É aparição ou manifestação divina. Revelação súbita da verdade que aplaca a razão e traz à tona a inteireza das coisas do coração.

Sabe quando você se depara com uma pessoa na rua, olha para ela, talvez em farrapos, e uma beleza injustificada salta daquele ser, seu coração soa mais alto, uma ternura invade a cena? Então você compreende tudo e enxerga naquela figura sua real nobreza, ao mesmo tempo em que o entorno desaparece, o momento se faz distinto, o peito infla de presença divina. Acontece em segundos, mas pode revelar o eterno. Isso é epifania.

Normalmente acontece em situações banais e pelos objetos mais prosaicos. Ou quando se está sensibilizado pela arte, pela literatura, pela música, na contemplação da natureza. De repente, um desarranjo na crosta que somos faz irromper o inesperado: o precipício que se abre e de onde emerge o que temos de mais oculto. Tudo o que é desvio, obscuro e sinistro desaparece. Tudo o que é perfeito, iluminado e belo desvanece. Não existe o bem, não existe o mal. Ali, na cratera de nós, não há divisão. Nasce a porção maior do prazer, o gosto do infinito.

E como já disse no texto inaugural desse blog, uma vez experimentado o infinito, por ele perseguimos a vida. Instaura-se, então, a grande busca, ainda que nem sempre encontremos um fim. A “busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar” (4). Seja como for, o que se busca são esses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”, nas palavras de Michel Leiris (5), poeta e ensaísta francês.

“Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem à obscuridade lodacenta donde haviam emergido”.

“Lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Michel Leiris, no ensaio “O Espelho da Tauromaquia”, explora essa tangência, associando-a primeiro às touradas, depois à arte, à poesia moderna, ao erotismo. O conceito é complexo, a prosa é poética. Roberto Alves, mestre que na Casa das Rosas me apresentou ao ensaio, colheu uma frase do texto escrevendo-a no quadro, em forma de pista:

“... a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”.

Oh Deus imanente, clareia. Oh Deus transcendente, dai-me as palavras dessa compreensão. Oh poeta moderno, Baudelaire, que na grande arte proclama uma metade transitória, fugidia, e na outra metade o eterno, o imutável, salvai-me dessa aflição tangente!

Michel Leiris foi genial no refinamento dessa concepção do poeta, quando determina uma região de experiência privilegiada onde o homem confronta - tangencia - o mundo e a si mesmo. Essa zona de tangência se dá quando um elemento reto (o eterno) está lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e de fluídos. Creio que é nessa zona de tangência que se dá a criação artística. É nela que grandes e pequenas epifania podem acontecer, e a verdade ser revelada, e uma voragem nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

As touradas, as tragédias, o erotismo genital, a grande arte, são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários como motor da estética moderna: uma metade reta e outra torta, uma bela e outra feia. Um lado sol e um lado sombra. Gotas de virtude e vício, união e separação, acumulação e dissipação, contração e relaxamento. Enfim, são nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste, dispostos sob efeito de tensão e perigo, nos colocam em condições de extrair mais facilmente o “eterno do transitório” de Baudelaire, ou as “verdades epifânicas” do Rafael.

No exemplo epifânico, quando o maltrapilho desperta o acontecimento pungente, certamente foi o conflito entre algum elemento reto e virtuoso, em contraste com sua condição torta e miserável, o estopim e o combustível da própria epifania. Na poesia de Baudelaire e nas mais tocantes obras de arte há sempre de haver uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada de virtude haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente encantador.

Embora epifania e arte sejam coisas distintas e não exista entre elas uma relação necessária de causa e efeito - a arte nem sempre provoca a epifania e essa acontece a despeito de qualquer manifestação artística - não se pode negar o poder sensibilizador da arte, tampouco deixar de reconhecer a superioridade das obras que nascem nessa zona de tensão, onde mais facilmente podemos ver espelhada nossa vulnerável condição humana.

Dentre os autores da nossa literatura, Clarice Lispector é certamente a escritora que mais construiu narrativas epifânicas. Tanto sua escrita é provocadora em nós, leitores, de tais experiências, quanto seus personagens são constantemente arrebatados por elas. A epifania, em Clarice, é o corte abrupto, o ritual de passagem que transvalora uma existência engessada na rotina e na trivialidade da vida.

Em “Perto do Coração Selvagem” (6), seu romance de estreia, Clarice descreve inúmeros momentos epifânicos de sua personagem Joana. Em um deles, estando ela sentada numa Catedral, são os “sons cheios, trêmulos e puros de um órgão” que subitamente detonam a sensação:

“As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-me dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu não temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”.

E na continuação, Joana / Clarice, plenamente consciente da verdade epifânica, é tomada pelo desejo de cair em si mesma, de transpor o abismo, de desaparecer na cratera.

“Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda”.

Haveria, assim, um atalho epifânico, uma tal situação ou lugar em que eu pudesse ali me colocar para viver e reviver a experiência vital? Como me pôr em zona de tangência?

Antes de tudo é preciso ter a determinação da cratera. E o afã de se deixar afetar pela vida. Depois é preciso se contaminar de um viver poético: afinar a pele, comover o olhar, a escuta, o paladar. Por fim, não deixar de se expor à grande arte, pois são os artistas os verdadeiros construtores de tangências: suas criações estão impregnadas de perigo e tensão. Por isso tenha coragem. Não tenha medo de se perder na trama ardente de acontecimentos, sentimentos e desejos próprios da arte, ainda que tudo pareça irreal, enevoado, talvez triste, fantasioso, fútil, cruel demais. Enfim, deixe-se possuir pelo entusiasmo do que é humano.

Creio que o “Laboratório de Humanidades” funcione como um desses construtores de tensão: facilitador de “acontecimentos interpelativos”, como diz o Prof. Dante, coordenador do Laboratório, cuja dinâmica de nos colocar em contato íntimo com a literatura clássica nos atira sem dó em zona privilegiada. Basta notar que agora estamos tentando entender a estranha vida de Joana. Ela é mesmo uma víbora? É chata? Amarga? Ou é uma mulher intensa e corajosa, determinada a estar sempre presente à vida que pulsa? Vejam que foi Joana e seu coração selvagem que despertou em mim toda a epifania desse texto. Preciso dizer mais alguma coisa: virei Clarice Lispector!

Antes de encerrar, uma questão derradeira: o simples colocar-se em tangência é garantia de revelações epifânicas? Frequentar tal zona de tensão é dar como certo o milagre epifânico da criação? É saber dos mistérios? Creio que não, já que tudo o que é humano é incerto. E citando Joana, indago: “Depois de ser feliz o que acontece?”. “Ser feliz é para conseguir o quê?”. Coisas de Clarice... Mas volto para tentar responder. Por enquanto voltemos como Empédocles à beira da cratera e do mistério.

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
(Fernando Pessoa)



NOTAS:

1. EMPÉDOCLES (495/490 - 435/430 aC) foi filósofo grego, médico, legislador, professor, místico e profeta. Sustentava a ideia de que o mundo seria constituído por quatro princípios: água, ar, fogo e terra. Tudo seria uma determinada mistura desses quatro elementos, em maior ou menor grau. Para Empédocles, duas forças fundamentais eram responsáveis pela manutenção do universo: O AMOR que unia os elementos (raízes) e o ÓDIO que os separava. Cedo virou figura legendária: ele mesmo se atribuía poderes mágicos. Conta a lenda que Empédocles teria se atirado na cratera do Etna, para provar que era um deus.

2. Fernando Pessoa e seu poema “O Mistério do Mundo”.

3. Rafael Ruiz é um dos dois coordenadores do Laboratório de Humanidades.

4. Palavras de Jorge Luis Borges.

5. Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

6. Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


POEMAS EPIFÂNICOS

O MISTÉRIO DO MUNDO
(Fernando Pessoa)

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
[...]
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
[...]
O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério – Face a face...


EPIFANIA
(Adélia Prado)


Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
‘Assim também, Deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
‘O café está pronto’.
Ai, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.


ALÉM-DEUS
(Fernando Pessoa)


I. Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.






terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Mal-Estar da Minha Pós-Modernidade

Seu nome reverbera em mim sensações primevas. Som que ecoa em chiados de memória, microfonia, e o tom de protesto nos anos 60: E Viva Cacilda Becker!, gritou Caetano Veloso no Tuca. Mas Cacilda, surpreendida, nada entendeu.

Bem mais tarde, já nos 90, das paredes em preto e branco do Centro Cultura São Paulo, vejo em exposição a figura enigmática dessa mulher de aura mítica, cuja imagem ainda flutua nebulosa em nosso imaginário: afinal quem foi Cacilda Becker?

Em 2002 li “Fúria Santa”, uma biografia da atriz que morreu há exatamente 40 anos após sofrer derrame cerebral, no palco, enquanto encenava “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Da infância miserável em São Paulo ao estrelato: foram mais de 80 peças, dezenas de teleteatros ao vivo, alguns poucos filmes e novelas, e a grandeza de uma mulher de voz pequena e anasalada, magra, muito magra, mas que mesmo assim dominava a platéia de forma irresistível. “O que é preciso deixar claro para a geração de hoje é que Cacilda não ficou grande depois que morreu, como acontece com a maioria dos mitos. Já era um mito em vida”, ouvi de Boris Casoy, nas páginas do livro.

Por isso recomendo “Fúria Santa” aos amigos. E por que não recomendaria? Sim, recomendo, ainda que confesse meu grande mal-estar: numa espécie de esgotamento disfarçado, eu seguia encantado e sofria escondido. Sofri, juro que sofri bem devagarzinho. Abandonei a leitura antes do capítulo final porque tudo aquilo era demais para mim. Ler a morte de Cacilda era como ver morrer em mim toda esperança de uma vida significativa. Cacilda era fascinante. Insuportável.

Tanta certeza. Tanto significado. Cacilda sabia e sempre soube. Cacilda era. Não havia dúvida naquela mulher, de pura vocação. Sem meias palavras, fiquei com INVEJA de Cacilda Becker. E passei a viver em crise, uma crise de sentido: eu haveria de alcançar a existência dos não-medíocres, dos bem-sucedidos, essa tal inclinação que a tudo torna significativo e transbordante.

De início fiquei paralisado no sentimento, que eu ainda não reconhecia como tal. Era uma ânsia, uma mera insatisfação, uma vontade. Sobrevieram questões típicas como “o que fazer”, “por que eu, afinal”, “ah, a felicidade...”. Depois o aforismo de Nietzsche, “Quem tem por que viver aguenta quase todo como”. E, então, uma sedutora determinação de procura, e as tangências do encontro.

Não foi, portanto, a INVEJA que me salvou?

A religião já se me tornara nostálgica demais. A metafísica e a transcendência, por não se deitarem nesse mundo, de pouco me serviriam. E o que seria afinal o mal-estar da pós-modernidade? Pressenti aí a salvação: eu precisava compreender o contemporâneo para nele me incluir.

Fui didático. Puxei e prendi a corda do tempo na Antiguidade. De comentador em comentador, um pouco de Sócrates, Epicuro, Sêneca. Afrouxando, Montaigne, Schopenhauer, Nietzsche. O iluminismo, o progresso, a perfectibilidade. Por fim, Zygmunt Bauman e a “Modernidade Líquida”. Seria “tomar o paraíso de um só golpe” percorrer agora toda essa aventura, e ainda por cima me detalhar nos males da contemporaneidade. Além do que, sendo exatamente esse é o sabor do blog: “o gosto do infinito”, certamente muito desses pratos serão servidos aqui.

Mas além de Cacilda, o fermento do meu bolo de chocolate, outras especiarias realçaram o sabor: Alice, o gato, e Osho.

Foi o gato de “Alice no País das Maravilhas” que me alertou para o óbvio: “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”. Serviu de ajuste de foco. Também é do livro de Lewis Carroll a passagem redentora:

“Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso”.

Vejo tanta correria, tanta competição, tanto estresse. E o perigo que ronda: estar ultrapassado; ser descartado. O que resta senão correr desesperadamente em busca do sucesso? No entanto, apesar do esforço sobre-humano para vencer, poucos são os que de fato saem do lugar. Foi assim que deixei de me sentir o perdedor, aquele que está sempre girando em torno da roda, mas que de fato nunca se vê inserido nela. Fui absolvido. A ciranda que girasse sozinha. Eu teria agora uma vida absolutamente comum.

Naturalmente muitos devem dizer que esse meu aparente desprezo pelo sucesso é sintomático do meu fracasso, das minhas covardias, e, principalmente, da minha falta de talento em geral. Sob um certo olhar, sim, já que sou humano. Mas sob um olhar mais generoso, não significa desprezo, nem fuga, mas senso de realidade e inteligência para perceber outras possibilidades de felicidade e realização que necessariamente não passem pela visibilidade e mensurabilidade da vida.

E aqui necessariamente chego às palavras de Osho:

A sociedade dá às pessoas, de muitas maneiras, a sensação de que elas são “extraordinárias”. Por isso é muito difícil não encontrar uma pessoa que, lá no fundo, não acredite que é especial, o filho único de Deus.

A pessoa comum é a pessoa natural. A natureza não produz pessoas especiais. Ela produz pessoas únicas, mas não especiais. Todo mundo é único à sua própria maneira.

Ser comum é a coisa mais extraordinária deste mundo. Basta olhar para você. Dói muito, é doloroso aceitar que você não é extraordinário. Então observe o que acontece quando você aceita a ideia de que é comum. Um grande peso sai dos seus ombros. De repente, você está num espaço aberto, natural, simplesmente do jeito que você é.

As pessoas são únicas, incomparáveis. Elas não podem ser comparadas, então como você pode dizer quem é inferior e quem é superior? A margarida é inferior à rosa? Como você vai decidir? Elas são únicas em sua individualidade. Toda a existência só produz pessoas únicas; ela não acredita em cópias.

Eu defendo a unicidade do ser humano. Sim, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser ela mesma. Em outras palavras, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser desigual, de ser única.

E foi assim, na crise da minha pós-modernidade, justamente quando me compreendi singular e pessoa comum, que o infinito em mim estremeceu e o horizonte gritou: viva a rotina, vida Adélia Prado. Mas essa é uma outra longa história.


E Viva Cacilda Becker: sobre o grito de Caetano Veloso

Em setembro de 1968, em tempos de ditadura militar, justamente quando Cacilda Becker era excluída da TV Bandeirantes por pressão da Censura Federal, ocorria a fase nacional do III FIC - Festival Internacional da Canção, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo.

Nos festivais de música, a arma de combate era a “festivaia”, uma vaia ensurdecedora acompanhada de tomates, ovos e qualquer outro objeto à mão. No dia 28 de setembro, o alvo era Caetano Veloso, que se apresentava na fase semifinal com a marchinha pop “É Proibido Proibir”. O uso de guitarra, símbolo do imperialismo ianque e a letra de sabor anarquista soaram acintosos para a plateia estudantil presente. Caetano estava consciente da provocação que fazia ao entrar no palco. Não conseguiu ultrapassar os primeiros versos: o público, em delírio, vaiou furiosamente. Caetano revidou: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada... Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais a quem? Àqueles que foram ao “Roda-Viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles; vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse viva aqui; não tem nada a ver com vocês”.

Caetano não tinha qualquer relação – pessoal ou profissional – com Cacilda. Seu brado em favor da atriz, por conta das perseguições que ela vinha sofrendo da Censura, surgiu de maneira que nem mesmo ele explica exatamente por quê: “Só vi Cacilda atuando uma vez. Foi em “Quem tem Medo de Virgínia Woolf?”, em 1965 ou 1966. [...] Eu sei que dizer aquilo era uma homenagem. Eu não achava que fosse ter maiores repercussões. Talvez dizer aquilo desnorteasse as pessoas que estavam lá”, afirma Caetano.



Livros citados:
Prado, Luis André. Cacilda Becker: Fúria Santa. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

Osho. O Livro da Sua Vida: crie seu próprio caminho para a liberdade. São Paulo: Cultrix, 2007.

Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo infinito DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.


O Laboratório de Humanidades (LabHum) é uma atividade extra-curricular e também uma disciplina na pós-graduação, oferecida pelo Centro de Historia e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (CeHFi - UNIFESP - EPM).

Site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/labhum.htm
Blog: http://www.labhum.blogspot.com/