Mostrando postagens com marcador Humanização. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Humanização. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tudo é Vacilação: Afetos em Contraponto

“[...] Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” [Nélson Rodrigues] [1]


Eu, porém, eternamente iludido com o volume das coisas, invejoso de ainda não ter lido esta ou aquela obra, quase nunca releio, quase nunca revejo, quase sempre fico ansioso pelo próximo da lista, o que é lamentável, eu sei. É que existe no mundo uma pressa difícil de resistir, embora eu esteja devagarzinho me desacelerando para reler dois clássicos da literatura, “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, e “Contraponto”, de Aldous Huxley. Pretendo um dia enfrentá-los num grande embate, na minha suposta, futura, imprevista dissertação de mestrado, que por enquanto não se realizou nem como projeto. Quem sabe então eu consiga vencer, assim como Ulisses na Odisseia [2], o “mar nunca antes vindimado”, o “mar piscoso” das minhas hesitações e incertezas.

O poeta Baudelaire me contou certa vez que devemos sempre escrever poesia, mesmo quando em prosa. Ouvi dizer que Gilles Deleuze, o filósofo francês, dissera que “a partir do momento que você sabe, é inútil escrever”. E é isso mesmo, eu escrevo porque não sei, eu escrevo para tentar entender. Pois é assim que vou “construindo a minha própria beleza” [3], que vou me humanizando, pelo o que há em mim de mais atávico, a linguagem poética. Sinto que é pela escrita, pela palavra que medra, que sou. Antes da palavra nada em mim é e promete. Tudo é vacilação. Minha vida só borbulha mesmo na frase posta.

Já poetizei “Os Demônios” quando escrevi aqui “Tinta Russa”. Agora quero versar sobre “Contraponto” de Aldous Huxley, romance que vivi no semestre passado para o curso “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades”, ministrado pelos professores Dante Gallian e Luis Felipe Pondé. Apenas para localizar, “Contraponto”, publicado em 1928, antecipou o caráter visionário de Aldous Huxley, que em 1932 lançaria “Admirável Mundo Novo”, uma das mais ferozes denuncias contra os aspectos desumanizadores do progresso científico e material. Sinto, no entanto, que “Admirável Mundo Novo”, por ser uma distopia ambientada num tempo muito além do nosso, não traduz com a mesma veracidade que “Contraponto” o mal-estar de nossos dias.

Como o meu objetivo não é fazer crítica literária, mas expor o que em mim provoca a leitura de um livro, de chofre confesso meu afeto, minha paixão, pelo personagem Everard Webley. E essa predileção mexeu especialmente comigo, pois embora eu abomine o autoritarismo fascista de Webley, é justamente ele o cara que se mostra o mais convincente. Mas deixando por enquanto de lado a lógica do amor-bandido, também Mark Rampion e Maurice Spandrell indignaram e exaltaram os meus sentimentos.

“Toda vez que o homem quer ser mais do que simplesmente homem, não se torna melhor, mas um ser inumano”. Sinto que é esse o refrão do livro, repetido inúmeras vezes por Mark Rampion, que dominaria - eu tinha certeza -, as discussões no curso. Mas que nada! Só eu toquei e insisti no nome dele. Só eu o idealizei. Justamente ele que encabeça o discurso contra os ideais utópicos que nos afastam da “vida integral” com a promessa de nos tornarmos perfeitos. Rampion não crê em nada disso, não crê no que possa transcender a existência. Não acredita em Deus, tampouco na perfectibilidade do homem [4]. Não acredita que as ideias de progresso, que a moral, a ciência ou a ideologia política possam nos tirar da condição humana e animal para nos fazer retornar ao Jardim do Éden.

Mas o que mais me intriga em Rampion não é a sua lucidez ácida e prolixa, sua descrença, nem seu romantismo raivoso. É sua determinação em afirmar no homem a sua integralidade. Em não aceitar que a verdade esteja sempre no cérebro e nunca no coração, e vice-versa. O verdadeiro homem civilizado para Rampion é aquele que consegue englobar tudo, harmonizar a razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo. “A barbárie consiste em pender mais para um lado do que para outro. Os civilizados sabem viver com todo o ser”. Rampion considera William Blake, poeta e pintor inglês, o verdadeiro homem civilizado. E acusa Shelley, o grande poeta romântico, de não ter sido humano, mas “um misto de fada e lesma branca”, que “espiritualizava demais o amor”. Rampion admira a “carnalidade”, embora flutue no mundo das ideias numa ânsia pedagógica que ele mesmo sabe inumana. “É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”, brada. “O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam”.

Foi, porém, uma indagação do Pondé que virou a chave da minha leitura. E tantas outras portas se abriram. “Não seria insuportável conviver com Rampion? Ele não é um purista, um chato?”. De fato, o discurso de Rampion é extenso e repetitivo. Sua vida uma grande aula, onde ele é um professor empedernido. Mas se Rampion está humanamente distante de alcançar a perfeição - para a sua alegria e satisfação - ele é coerente e autêntico. Sua acidez não é corrosiva. Sua raiva é quase abstrata na esperança que sutilmente nutre pela humanidade. Seu ateísmo não lhe tira o sentido e o prazer da vida concreta, que apesar de sofrida, é o que lhe resta. “Spandrell se recusa a ser homem”, aponta Rampion. “Não é um homem, mas sim um demônio ou um anjo morto”. Mark Rampion sabe que a humanidade do homem se pulveriza tanto no bem quanto no mal absolutos. E que se não existe a possibilidade da transcendência, que sejamos ao menos éticos e felizes.

E é exatamente na ética que Rampion se distancia de um outro grande personagem, Maurice Spandrell, o “Peter Pan à Dostoiévski”, o “pequeno Nikolai” [5], o cínico dos cínicos, que vacila entre o bem e o mal absolutos e se entrega a uma existência que beira o inumano. A não superação do seu pequeno drama pessoal, a relação mal resolvida com a mãe, a nostalgia de uma vida feliz na infância, o atira definitivamente no abismo. O vazio e a violência em Spandrell se perdem em qualquer entendimento. Ele hesita se acredita ou não acredita em Deus. Hesita se a vida como ela é vale ou não vale a pena. E entrega-se à barbárie. Spandrell é o contraponto do homem integral “rampioniano”, porque ora é demônio, ora é anjo contemplando Deus numa sinfonia de Beethoven. Vivendo nos extremos, Spandrell esvazia sua humanidade e se perde e se mata na falta de ética.

Já Philip Quarles, personagem injustamente declarado frio e calculista, paradoxalmente passa pelo romance sofrendo pela consciência que tem de sua inabilidade emocional. Ele apenas não aprendeu a lidar com seus sentimentos, uma defesa, talvez, pelo fato de ser fisicamente aleijado. Huxley tentou obstinadamente torná-lo “o insensível”, “o racional” do romance, mas parece que essa foi uma criação que se rebelou. Terminamos o romance sensibilizados por ele, comovidos por sua integridade e, sobretudo, solidários com sua falta de jeito em lidar com as coisas do coração.

Numa determinada passagem, Philip Quarles faz uma reflexão sobre as pessoas que são notáveis em determinada esfera da vida, mas desprezíveis em outra. Cita o escritor Liev Tolstói, que em sua visão foi um excepcional romancista, mas detestável nas ideias sobre moral e religião. Uso esse exemplo um tanto tendencioso somente como ponte para me fazer voltar ao tema do amor-bandido, pois assim é Everard Webley, o amável repugnante, o líder dos “Ingleses Livres”, partido político fascista que na trama anseia chegar ao poder. Porque Webley, a despeito de suas posições políticas desprezíveis, é um homem admirável por sua determinação e disciplina. Seguro de si, sempre sabe a direção a tomar. E ele usa todo o seu poder de decisão não somente na política, mas também no seu amor por Elinor, a frágil mulher carente que vive um casamento gelado com o intelectual Philip Quarles. Webley é o homem viril que seduz montado literalmente num cavalo branco, e conquista a mulher. Infelizmente, ou felizmente, dependendo do ponto de vista, se político ou pessoal, a potência de Webley é anulada pelo vazio existencial de Spandrell.

A potência que se aniquila diante do vazio e do tédio. É o que me vem à cabeça quando penso no desfecho da história. Embora Webley seja evidentemente mais um contraponto ao homem ideal imaginado por Rampion - porque aposta todas as fichas no aperfeiçoamento da sociedade pelo viés social e político -, mesmo assim acredito nele como sendo o personagem que mais se aproxima do homem “rampioniano”: Webley está preso à materialidade da terra; a potência e a determinação de sua virilidade parecem indicar harmonia entre razão e instintos; por último, Webley ama e sofre sinceramente por amor.

Mas por que tal potência foi covardemente extirpada? Por que Huxley teria dado a Webley uma alma fascista? Talvez para nos mostrar que não existe o homem perfeito. E que somos vulneráveis na luta entre o bem e o mal. Afinal, isso é o que nos faz humanos.


E não dá para esquecer outro importante desfecho do livro: quem herda o paraíso na terra é a hipocrisia. Pelo menos é isso o que acontece em “Contraponto”. Embora a ambição e a sensualidade em si não sejam reprováveis, é o fingimento e as más intenções que as tornam desprezíveis. Para o personagem herdeiro huxleyano do “reino dos céus”, dinheiro e carnalidade são o que verdadeiramente interessa. Sua bondade é puro fingimento. Burlap é o seu nome, personagem representante de um dos produtos mais bem acabados da tal perfectibilidade, que criou esse homem moderno, o “homem extraordinário”, o “homem de ação”, prático, eficiente, técnico, que sabe ser “espiritual” quando conveniente e usa as emoções para mascarar sua ânsia de conquista e poder. O que importa é cumprir metas. O que importa é vencer. E Burlap venceu.

Em contraponto, e para finalizar, retomo a questão inicial de Nélson Rodrigues. Encontrei outro dia a Sonia, uma querida amiga e companheira de cursos da Casa das Rosas, e lhe mostrei com afã o trecho sobre a experiência fascinante da releitura. Qual foi minha surpresa quando ela me retrucou com um enfático “Não concordo!”. Depois me contou de um palestrante que se dirigiu a alguém na plateia e perguntou: “Você já leu a Odisseia?”. “Não, respondeu o rapaz”. Então o palestrante soltou uma estrondosa e intrigante resposta: “Que inveja eu tenho de você! Porque eu nunca mais vou poder sentir o mesmo entusiasmo, a mesma perplexidade que um dia eu senti quando li pela primeira vez a Odisseia. Parabéns!”.

Mínima culpa: Nada comentei sobre Marjorie e Lucy. Nem sobre Elinor, Beatrice, Mary... É que só agora me dei conta de que nada falei sobre as mulheres em “Contraponto”, embora grite o hedonismo niilista de Lucy e incomode a chatice e o tipo de salvação religiosa encontrada por Marjorie. Mas eu simplesmente me esqueci delas, depois me faltou vontade. Enfim, para o bem ou para o mal, hei de enfrentá-las numa releitura!


Notas:

[1] Assim como a Jacqueline, começo com o mesmo trecho de Nélson Rodrigues que ela abriu “Luz no Pântano”, artigo publicado recentemente no blog do Laboratório de Humanidades. Por ele me dei conta de que “existe entre Dostoiévski e Nélson Rodrigues um laço de família”, que são “almas parentas”, cujos personagens invariavelmente estão no limiar, em regiões abissais. Também me aproximei de um Nélson Rodrigues entregue, arrebatado, que faz tal afirmação sobre o fascínio da releitura. Referências: RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54. SAKAMOTO, Jacqueline. Luz no Pântano. Blog do LabHum. URL: http://labhum.blogspot.com/2010/08/luz-no-pantano.html.

[2] No Laboratório de Humanidades, acabamos de discutir Odisseia. Recomendo uma edição portuguesa primorosa. A clareza e a beleza dos versos fazem da leitura um deleite. Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2003. (Tem na Livraria Cultura).

[3] “Construir a própria beleza” é uma referência ao ideal grego de formação do homem (Paideia), segundo o qual o homem alcançaria a excelência humana por meio da areté - virtude - na medida em que se dedicasse ao belo, ao bom e ao justo, contemplando assim a verdade. Bem, como não estou lá muito seguro dessa definição, nada me resta senão escrever sobre isso. Em breve.

[4] Perfectibilidade do homem: conceito filosófico pelo qual se admite que o homem, por sua própria força e natureza racional, é capaz de alcançar à Perfeição por meio do progresso moral, social, científico e tecnológico. Não se trata do impulso natural que temos de aprimorar continuamente as coisas, mas da presunção humana de se sentir no centro do universo e autossuficiente. Trata-se, portanto, de acreditar que pela educação, pela inteligência, pelo raciocínio lógico e matemático, pelo progresso científico e tecnológico, em suma, pela racionalidade humana, o homem possa de fato dominar tanto as forças externas da natureza quanto o que há de interno e incontrolável nele. Para os perfectibilistas de ontem e de hoje, a Perfeição e a Felicidade são produtos de uma equação que pressupõe a supremacia da Razão sobre a Natureza. A perfectibilidade é a própria base das utopias modernas. Negá-la é desacreditar a autossuficiência do homem, assumindo assim uma atitude profundamente religiosa, ainda que desvinculada de qualquer instituição e/ou sistema doutrinário.

[5] Nikolai Stavróguin, personagem central do livro “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Impressionante por sua complexidade. Flutua no vazio, no tédio, no nada. Indecifrável, intrigante. Cruel, patife, demoníaco. Paradoxalmente atraente.

Bibliografia:

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

Huxley, A. Contraponto. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. 6ª Edição. São Paulo: Globo, 2001.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

-----------------------------

O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

-----------------------------

Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo infinito DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.


O Laboratório de Humanidades (LabHum) é uma atividade extra-curricular e também uma disciplina na pós-graduação, oferecida pelo Centro de Historia e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (CeHFi - UNIFESP - EPM).

Site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/labhum.htm
Blog: http://www.labhum.blogspot.com/