C) "Que Deus me perdoe, mas acho que estou feliz".
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Abecê
C) "Que Deus me perdoe, mas acho que estou feliz".
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Cinco Lições de Poesia: Akira Kurosawa e o sentido último do amor

Quando li MacBeth no Laboratório de Humanidades, fiquei sabendo do filme “Trono Manchado de Sangue” do Akira Kurosawa, uma recriação cinematográfica para a peça do Shakespeare. Na época eu já ouvira falar do diretor japonês, mas nunca tinha assistido a um filme dele até que, de repente, ou melhor, porque participei do Laboratório de Cinema nesse semestre, em menos de um mês assisti a cinco filmes do Kurosawa: “Duelo Silencioso”, “Cão Danado”, “Viver”, “O Barba Ruiva” e “Dersu Uzala”. E posso dizer que redescobri o mundo pelo viés japonês, um mundo em preto e branco tão denso e vertical quanto aquele bergniano, mas poeticamente diferente.
Os filmes do Kurosawa são profundamente japoneses, eu acho, embora o Japão o tenha acusado de ocidentalizar demais a cultura nipônica. Sinceramente não sei opinar sobre isso, mas posso dizer que, em comparação com os filmes do Bergman, por exemplo, os argumentos do Kurosawa são muito mais cotidianos, suas narrativas mais simples e lineares. Em Kurosawa tudo parece ser o que é, sem muita abstração: chão é chão, tempestade é tempestade.
Dizem até que Kurosawa levava dias para gravar uma única cena de chuva à espera de uma que fosse verdadeira. Mas mesmo com poucos recursos, e quase nenhum efeito especial, sua paixão pelo cinema o levou a narrar grandes histórias, a criar personagens heróicos e inesquecíveis, a trabalhar com atores magníficos que o ajudaram a transformar essa dedicação em grande arte. Apesar do seu didatismo, porque em seus filmes os valores morais vão sendo não apenas manifestos, mas clara e dignamente defendidos por seus “mocinhos”, suas criações são como um extraordinário transbordamento da alma humana em rara poesia.
E assim como em toda rara poesia, novas palavras e outras imagens serão sempre insuficientes para recriar o clima dos filmes do Kurosawa, cuja experiência singela de assisti-los é certamente indescritível. Mas creio que posso contar ao menos como a grandeza desses filmes modificaram o meu egoísmo, já que todos eles falam do amor, do amor em seu sentido mais último.
Duelo Silencioso (1949):

Em “Duelo Silencioso” assistimos ao conflito interno entre os desejos de um homem e seu dever como cidadão e médico. A consciência moral do jovem Kyoji é tão profunda que fiquei abalado questionando o meu próprio agir. Num tempo em que reina a satisfação imediata dos desejos, em que não sabemos mais lidar com mínimas frustrações, a hipótese de eu me sacrificar daquele jeito por alguém me pareceu quase absurda. O comportamento extremamente ético do Dr. Kyoji e sua resignação ao sofrimento são lições ao egoísmo que todos nós resistimos tanto em abrandar.
Cão Danado (1949):

Nessa mesma linha da consciência moral, em “Cão Danado” é o limite da responsabilidade que determina a descida aos infernos do personagem principal, Murukami, um jovem detetive que se abala ao ver sua pistola roubada ferindo pessoas inocentes. É na contradição de se sentir culpado por crimes que de fato ele nunca cometeu que o atormentado personagem nos faz refletir sobre a real responsabilidade que temos pelo mal que nos ronda. Numa aparente absoluta bobagem, a obsessão de Murukami em se martirizar por uma simples distração me fez tomar consciência de pequenas leviandades que pratico quase “sem querer” no meu dia a dia, mas que na verdade não passam de variações de egoísmo e falta de consideração pelo outro.
Viver (1952):


“Viver” trata dos efeitos devastadores que uma vida burocrática pode provocar num homem. Assim como na novela “A Morte de Ivan Ilitch” de Tostói e em “Morangos Silvestres” do Bergman, Kurosawa nos alerta sobre a teima de nos distrairmos da vida e só nos atentarmos a ela quando a morte já é certa. Mas diferentemente do que acontece nas narrativas de Tolstói e Bergman, em que Ivan Ilitch parece encontrar na agonia um significado transcendente, e o Prof. Borg um sentido no amor ao abrir-se para o novo e para o outro, a vida do Sr. Watanabe se completa no trabalho doado à comunidade. Outra vez é pelo sair de si mesmo, ou talvez pelo abrandamento do egoísmo, que o filme nos propõe “viver”.
O Barba Ruiva (1965):

Em “O Barba Ruiva”, Kurosawa nos coloca diante de um verdadeiro mestre, cuja sabedoria e senso de justiça transcendem sua própria condição de médico. No século XIX, O Dr. Kyojio Niide (apelidado carinhosamente de “O Barba Ruiva”) dirige um hospital numa pobre e remota aldeia japonesa, sendo respeitado, querido e temido por todos. Já o jovem médico Dr. Yasumoto, que contra a própria vontade se vê obrigado a viver e trabalhar com o Dr. Niide, o contrapõe com sua arrogância. Formado cientificamente na melhor escola de medicina da região, ele havia se preparado para se tornar um profissional importante, que cuidasse de pessoas importantes.
O Dr. Barba Ruiva, porém, não nega a ciência, embora não acredite piamente nela. Sem priorizar a comprovação científica e a perícia técnica, ele de fato olha e enxerga as pessoas. Por isso seus métodos de tratamento vão muito além dos protocolos. Assim, diante de uma realidade miserável, lidando com pacientes terminais e desamparados, o Dr. Barba Ruiva, ao tratar todos com consideração e humanidade, aos poucos cativa o jovem Yasumoto, que passa não somente a respeitá-lo, mas a verdadeiramente “humanizar-se” com ele, reconsiderando suas posições como homem e médico.
Esse é mais um filme grandioso de Akira Kurosawa, que nos interpõe o homem para além de nossas idealizações. O Dr. Niide, por exemplo, não é um médico “bonzinho”, tampouco faz questão de se mostrar agradável. Ao contrário, muitas vezes ele é implacável, violento. Sua cara amarrada é uma lição para todos nós que costumamos confundir o riso fácil com boa índole, a perfeição hipócrita com bondade. O homem, para o Dr. Niide, é “um animal”, como diria Zorba, o Grego*: “você lhe fez o mal? Ele o respeita e teme. Você lhe fez o bem? Ele arranca seus olhos”. Humanizar-se, então, nessa perspectiva, é uma questão de reconhecer-se justamente imperfeito. E imperfeito, embora justo, é o Dr. Barba Ruiva, que não vacila em quebrar literalmente os ossos dos malfeitores, ainda que depois cuide de consertá-los amorosamente.
______________
*Nikos Kizantizákis. Vida e Proezas e Alexis Zorbás. 3ª Edição. São Paulo: Grua, 2011.

Curiosidade: Thoshiro Mifune, ator principal de "Duelo Silencioso", "Cão Danado", "O Barba Ruiva", entre muitos outros filmes do diretor japonês, rompeu com Kurosawa durante a atuação em "O Barba Ruiva" por ter sido obrigado por ele a manter uma barba natural por dois longos anos, tempo que duraram as filmagens. Durante esse período, o grande ator japonês não conseguiu outros papéis.
Dersu Uzala (1975):

Frustrado e desapontado com a incompreensão que a cultura japonesa dispensava a seus filmes, Akira Kurosawa tentou o suicídio em 1971. Uma vez auto-exilado na União Soviética, entregou-se às filmagens dessa produção russa para ganhar, em 1975, o Oscar de melhor filme estrangeiro. “Dersu Uzala” é um filme sobre o encontro de mundos opostos, sobre a amizade, o envelhecimento, e, sobretudo, é um ensaio sobre a insuficiência humana. De belíssima fotografia colorida nos campos da Sibéria, Kurosawa dirigiu essa película como um tratado poético sobre as dificuldades de sobrevivência numa civilização que cada vez mais se encaminha para a padronização, a fragmentação e a artificialização da vida.
Como em Dostoiévski, que no romance “O Idiota” encarna o Bem na figura de um nobre que mais se parece com um “iuródiv”, misto de bobo, mendigo, louco e vidente na tradição russa, Kurosawa encarna o Bem na pele de Dersu Uzala, um velho caçador mongol que, por amizade, decidi guiar a expedição topográfica do capitão Vladimir Arseniev, um explorador czarista no início do século XX.
Sim, amizade, esse é o grande tema do filme, ou pelo menos aquele que primeiro nos impressiona: Dersu e Arseniev, dois estranhos que se elegem amigos num encontro improvável na Sibéria. Então Dersu, íntimo da floresta, salva inúmeras vezes a vida do capitão. E o capitão, por sua vez, o apóia e o acolhe quando a velhice por fim se impõe ameaçando a sobrevivência do experiente caçador na selva.
Dersu é um homem simples, confundido com a natureza, que conversa com os animais, com o fogo, com a água, com o vento. Já Arseniev, embora ele seja um pesquisador científico, é de uma espécie rara, que nunca se mostra arrogante. O encontro dos dois não é de tolerância, pois, ainda que de mundos distintos, não há oposição entre eles. Há, sim, empatia, amizade, e recíproca sabedoria, pois nenhum dos dois se reconhece melhor do que o outro, apenas diferente. E, nessa diferença, esses dois mundos se tocam numa relação fraterna que podemos chamar de amor.
Dersu Uzala é, definitivamente, um filme transformador. Por ele somos mobilizados a olhar terna e amorosamente para o outro, sem que isso implique no desejo de assumir a vida desse outro, muito menos na vontade de modificá-lo de acordo com as nossas conveniências. É o que acontece, por exemplo, quando enfraquecido pela velhice, Dersu deixa de ser quem ele é para se proteger na cidade, na casa do amigo Arseniev. Forçado, então, a afastar-se essencialmente de si, nosso herói se desumaniza tomado por uma aterradora infantilização. Contraditoriamente, porém, só o veremos renascer no enfrentamento da própria sorte.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
AO FOGO NEGRO
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray:
um poema em prosa.
Às amigas Rozélia e Jacqueline.

Esvaneço de mim o que é cinzento, porque é do branco mais branco ao negro mais negro que a vida rutila. E o impacto se dá. Dorian Gray me atirou ao fogo negro. Estou ardendo. Quase cedendo à corrupção de algum livro amarelo. Você sabe como posso encontrá-lo? Me iniciaria em seus prazeres devassos? Exerceria sobre mim sua má influência? Ora, não se inquiete, que eu prescindo de você. Tenho o meu próprio veneno e salvação: as palavras que em mim fervilham [e contrastam minha alma sem vida].
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Minha Pequena Odisseia

Espartano que sou inicio o caminho de volta. À minha Ítaca chegarei, ainda que outros dez anos se cumpram. Não me importa que me tentem com a imortalidade, não aceitarei me tornar desumano. Que me tentem vencer pelo esquecimento, não apagarei aquele que sou. Que sereias tentem me atirar no abismo dos mortos, não ouvirei as suas tentações. Certo, retornarei a minha casa, expulsarei invadores, reinarei até o fim.
Cada um de nós vive a sua Odisseia, o seu embate, a sua humanidade torta. Cada um tem o seu caos, a sua desordem, o seu perigo. Mas cada um também tem o seu retorno, a sua casa que lhe espera, o seu centro. E quando você estiver lá, mesmo que ninguém lhe dê a mão e o pretume da sua pele o transfigure, mesmo que você nunca tenha sabido de Helenas e Menelaus, não importa, mesmo assim você se reconhecerá Ulisses, pois a certeza que germina do caos e se fortalece no embate é heroicamente vida que floresce.
sábado, 23 de janeiro de 2010
A Festa da Poesia
“Experimento, logo existo”: ouvi a paráfrase no “Café Filosófico” da TV Cultura. Estavam lá Viviane Mosé, psicanalista e filósofa, e o terapeuta corporal Nelson Lucero, que juntos discutiam o poder dos afetos. Meus domingos à noite têm sido assim: o finzinho do Fantástico e alguma filosofia.
Embora estivesse sonolento, não me esqueço quando eles disseram que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”. E mais, “eu só tenho acesso à experiência do outro por meio de sua expressão”. E que “o pensamento puramente racional impede os afetos, impedindo de criar”. Nossa! Eu poderia me perder por aqui...
Mas o que eu queria mesmo dizer era que hoje estive mexendo em papéis velhos. E achei algumas poesias antigas, minhas, de uma época em que eu vivia seguindo Adélia Prado. É verdade: eu e o Marcelo íamos juntos onde ela estivesse em São Paulo. Tenho fotos em preto e branco e tudo. Na época eu havia comprado aquele livro verde e roxo, “Poesia Reunida”, que ela me autografou, enquanto conversávamos sobre trem de ferro, Divinópolis, Minas Gerais... “Só faltou tirar o terço e rezar”, ironizou o Marcelo morto de inveja, porque ele é o maior adorador da Adélia. Sabe seus poemas de cor.
No meu livro ela escreveu:
“Para o Licurgo desejando-lhe a festa da Poesia.
Com Carinho, Adélia Prado”.
Voltando aos papéis velhos, li os poemas e senti aquela natural pontinha de vergonha. E notei que escrevo poesia em primeira pessoa. “Bem que eu podia deixar de ser tão confessional”, reclamei. Mas agora, lembrando do Nelson Lucero, que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”, senti orgulho da minha pequena criação. Se elas são boas ou não, que importa, mas sei que são criações explosivas de “afetos” verdadeiros.
Enfim, tímido, publico duas:
TÊNUE ESTAMPA
Gostava tanto daquela saia de lã...
O pai, de tão magro, parece um gato...
Disse ela mirando as fotos nos binóculos da juventude,
como de quem escapava um pensamento.
Eis minha mãe.
Eis o tempo.
Pude percebê-los em gema de cristal.
Ele passara e da saia de lã restava apenas a tênue estampa.
Que saudades dessa mulher que não me lembro.
Se pudesse lhe devolveria as cores vivas
de quando eu nem havia nascido,
a presenteá-la com o tempo,
essa variável sem acordos,
que desbota os tecidos,
amarela os papéis,
mas não lhes tira a marca d'água.
O tempo apaga o retrato,
vinca a memória,
resseca os intestinos,
mas não desfaz o encantamento:
somos todos “cada um”.
Só então pude perceber:
há um pedaço da minha mãe que não se curva.
Invulnerável, alheio, nascido.
Morrerá com ela,
Indestrutível em minha memória.
BEATICE
Qualquer suavidade é sempre rogada
- suplico a calmaria, a expressão exata, o gesto preciso -
Que sou dos secos.
Mas hoje não vou sem um arroubo,
sem a prática que me alivia:
- uma cega alimentava o filho às escuras!
Quis trazê-la ao colo,
a soprar seus os olhos no ímpeto de avivá-los.
Por ela fiquei santo,
- Santo Deus nas alturas! -
a ponto de arrebatar as pessoas inteiras.
Quem então enxergava os grãos de bico?
A cega, de grão em grão, separava-os cismada.
Mas quando a vida não basta, não basta.
No metrô, os “entendidos” entreolhavam-se com ousadia!
A avó de um amigo está no morre não morre.
“Nesse estabelecimento não se fuma”, anunciava o cartaz.
Nas ruas, uma gente e suas estampas
cinzas a tempestear a calmaria dos dias.
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
Desvios e Estridências
Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.
-----------------------------
Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:
Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.
O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.
Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.
Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.
Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.
Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.
Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.
Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.
Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.
VIDA
Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Em Zona de Tangência

Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério - Face a face...
(O Mistério do Mundo - Fernando Pessoa)
Ah, o mistério! “Ele é a vida e a morte”. “Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo” (2). Foi o Rafael (3) que me insinuou esse Fernando Pessoa abissal. E que também me disse que as “verdades são epifânicas”. Juro, se eu não fosse tão afeito às agudezas da vida, teria sido arrebatado. Mas como posso decifrar esse mistério? Vou apenas desenhar aqui uma fina brecha por onde penetre ao menos um filete de luz.
Epifania é o afeto condensado ao limite da explosão: arrebatamento de amor, de piedade. É aparição ou manifestação divina. Revelação súbita da verdade que aplaca a razão e traz à tona a inteireza das coisas do coração.
Sabe quando você se depara com uma pessoa na rua, olha para ela, talvez em farrapos, e uma beleza injustificada salta daquele ser, seu coração soa mais alto, uma ternura invade a cena? Então você compreende tudo e enxerga naquela figura sua real nobreza, ao mesmo tempo em que o entorno desaparece, o momento se faz distinto, o peito infla de presença divina. Acontece em segundos, mas pode revelar o eterno. Isso é epifania.
Normalmente acontece em situações banais e pelos objetos mais prosaicos. Ou quando se está sensibilizado pela arte, pela literatura, pela música, na contemplação da natureza. De repente, um desarranjo na crosta que somos faz irromper o inesperado: o precipício que se abre e de onde emerge o que temos de mais oculto. Tudo o que é desvio, obscuro e sinistro desaparece. Tudo o que é perfeito, iluminado e belo desvanece. Não existe o bem, não existe o mal. Ali, na cratera de nós, não há divisão. Nasce a porção maior do prazer, o gosto do infinito.
E como já disse no texto inaugural desse blog, uma vez experimentado o infinito, por ele perseguimos a vida. Instaura-se, então, a grande busca, ainda que nem sempre encontremos um fim. A “busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar” (4). Seja como for, o que se busca são esses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”, nas palavras de Michel Leiris (5), poeta e ensaísta francês.
“Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem à obscuridade lodacenta donde haviam emergido”.
“Lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Michel Leiris, no ensaio “O Espelho da Tauromaquia”, explora essa tangência, associando-a primeiro às touradas, depois à arte, à poesia moderna, ao erotismo. O conceito é complexo, a prosa é poética. Roberto Alves, mestre que na Casa das Rosas me apresentou ao ensaio, colheu uma frase do texto escrevendo-a no quadro, em forma de pista:
“... a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”.
Oh Deus imanente, clareia. Oh Deus transcendente, dai-me as palavras dessa compreensão. Oh poeta moderno, Baudelaire, que na grande arte proclama uma metade transitória, fugidia, e na outra metade o eterno, o imutável, salvai-me dessa aflição tangente!
Michel Leiris foi genial no refinamento dessa concepção do poeta, quando determina uma região de experiência privilegiada onde o homem confronta - tangencia - o mundo e a si mesmo. Essa zona de tangência se dá quando um elemento reto (o eterno) está lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e de fluídos. Creio que é nessa zona de tangência que se dá a criação artística. É nela que grandes e pequenas epifania podem acontecer, e a verdade ser revelada, e uma voragem nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.
As touradas, as tragédias, o erotismo genital, a grande arte, são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários como motor da estética moderna: uma metade reta e outra torta, uma bela e outra feia. Um lado sol e um lado sombra. Gotas de virtude e vício, união e separação, acumulação e dissipação, contração e relaxamento. Enfim, são nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste, dispostos sob efeito de tensão e perigo, nos colocam em condições de extrair mais facilmente o “eterno do transitório” de Baudelaire, ou as “verdades epifânicas” do Rafael.
No exemplo epifânico, quando o maltrapilho desperta o acontecimento pungente, certamente foi o conflito entre algum elemento reto e virtuoso, em contraste com sua condição torta e miserável, o estopim e o combustível da própria epifania. Na poesia de Baudelaire e nas mais tocantes obras de arte há sempre de haver uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada de virtude haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente encantador.
Embora epifania e arte sejam coisas distintas e não exista entre elas uma relação necessária de causa e efeito - a arte nem sempre provoca a epifania e essa acontece a despeito de qualquer manifestação artística - não se pode negar o poder sensibilizador da arte, tampouco deixar de reconhecer a superioridade das obras que nascem nessa zona de tensão, onde mais facilmente podemos ver espelhada nossa vulnerável condição humana.
Dentre os autores da nossa literatura, Clarice Lispector é certamente a escritora que mais construiu narrativas epifânicas. Tanto sua escrita é provocadora em nós, leitores, de tais experiências, quanto seus personagens são constantemente arrebatados por elas. A epifania, em Clarice, é o corte abrupto, o ritual de passagem que transvalora uma existência engessada na rotina e na trivialidade da vida.
Em “Perto do Coração Selvagem” (6), seu romance de estreia, Clarice descreve inúmeros momentos epifânicos de sua personagem Joana. Em um deles, estando ela sentada numa Catedral, são os “sons cheios, trêmulos e puros de um órgão” que subitamente detonam a sensação:
“As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-me dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu não temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”.
E na continuação, Joana / Clarice, plenamente consciente da verdade epifânica, é tomada pelo desejo de cair em si mesma, de transpor o abismo, de desaparecer na cratera.
“Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda”.
Haveria, assim, um atalho epifânico, uma tal situação ou lugar em que eu pudesse ali me colocar para viver e reviver a experiência vital? Como me pôr em zona de tangência?
Antes de tudo é preciso ter a determinação da cratera. E o afã de se deixar afetar pela vida. Depois é preciso se contaminar de um viver poético: afinar a pele, comover o olhar, a escuta, o paladar. Por fim, não deixar de se expor à grande arte, pois são os artistas os verdadeiros construtores de tangências: suas criações estão impregnadas de perigo e tensão. Por isso tenha coragem. Não tenha medo de se perder na trama ardente de acontecimentos, sentimentos e desejos próprios da arte, ainda que tudo pareça irreal, enevoado, talvez triste, fantasioso, fútil, cruel demais. Enfim, deixe-se possuir pelo entusiasmo do que é humano.
Creio que o “Laboratório de Humanidades” funcione como um desses construtores de tensão: facilitador de “acontecimentos interpelativos”, como diz o Prof. Dante, coordenador do Laboratório, cuja dinâmica de nos colocar em contato íntimo com a literatura clássica nos atira sem dó em zona privilegiada. Basta notar que agora estamos tentando entender a estranha vida de Joana. Ela é mesmo uma víbora? É chata? Amarga? Ou é uma mulher intensa e corajosa, determinada a estar sempre presente à vida que pulsa? Vejam que foi Joana e seu coração selvagem que despertou em mim toda a epifania desse texto. Preciso dizer mais alguma coisa: virei Clarice Lispector!
Antes de encerrar, uma questão derradeira: o simples colocar-se em tangência é garantia de revelações epifânicas? Frequentar tal zona de tensão é dar como certo o milagre epifânico da criação? É saber dos mistérios? Creio que não, já que tudo o que é humano é incerto. E citando Joana, indago: “Depois de ser feliz o que acontece?”. “Ser feliz é para conseguir o quê?”. Coisas de Clarice... Mas volto para tentar responder. Por enquanto voltemos como Empédocles à beira da cratera e do mistério.
Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
(Fernando Pessoa)
NOTAS:

2. Fernando Pessoa e seu poema “O Mistério do Mundo”.
3. Rafael Ruiz é um dos dois coordenadores do Laboratório de Humanidades.
4. Palavras de Jorge Luis Borges.
5. Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
6. Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
POEMAS EPIFÂNICOS
O MISTÉRIO DO MUNDO
(Fernando Pessoa)
Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
[...]
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
[...]
O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério – Face a face...
EPIFANIA
(Adélia Prado)
Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
‘Assim também, Deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
‘O café está pronto’.
Ai, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.
ALÉM-DEUS
(Fernando Pessoa)
I. Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Concepção Ensaística da Vida
Mas hoje, à luz do dia, espremido no metrô, e com os versos insistentes à mão, respirei fundo, procurei me abandonar, ativando os olhos e os ouvidos de dentro, declamei em silêncio:
Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.
Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus umbrais -
É só isto, e nada mais”.
Atentando ao ritmo, à cadência, segui pela segunda, terceira, quarta estrofe. E meu coração ACELEROU. ACELEROU. Na quinta estrofe precisei voltar do INFINITO, das zonas ancestrais, do hiato entre o pensamento e a palavra, do lugar sem nome onde o homem “tangencia o mundo e a si mesmo”. Não tive coragem de continuar, ali, a declamação surda. Apenas disse: “O instante poético é solitário, é íntimo. E isto é tudo, e nada mais”.
Bem, eu só queria entender por que uma exposição muitas vezes correta, planejada, cujo professor é profundo conhecedor do tema e tem todos os requisitos básicos e necessários, não consegue transmitir “essencialidades”, sobretudo as poéticas?
A resposta talvez esteja na “concepção ensaística da vida”, ou seja, o problema não é de conteúdo e competência, mas de uma abordagem ao tema que tente sensibilizar e transmitir o “intransmitível”: o conhecimento que não se ensina, a sensação que não se pode fazer sentir, a experiência singular que não se pode reproduzir no outro.
“Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”. É um curso na Casa das Rosas. Até três quartos da aula eu estava irritado. Nada de fato acontecia, o poeta passava longe, voltas e mais voltas, somente. No final uma pequena redenção. Na segunda aula fomos recebidos a todo volume, uma música dissonante, alta, e o barulho da Paulista tornava sofrível acompanhar o que o professor, Roberto Alves, balbuciava. No terceiro encontro, intencionalmente ou não, a iluminação principal da sala se apagava e, na semiescuridão, o professor tentava prosseguir na leitura. A luz ia e vinha, e assim ficou até o final. Enfim, percebi que tudo tinha um porquê, mesmo o não deliberadamente planejado: o intento do Mestre era esclarecer a questão da aproximação ao tema, tão essencial quando se trata do gênero estudado,
Também percebemos que no Ensaio há, por natureza, camadas de significação, que as leituras do texto podem privilegiar uma ou outra camada, que a função poética e abordagens não convencionais constituem formas de construção e transmissão de conhecimento.
Com tudo isso, e nada mais, retomando o Corvo, e imediatamente saltando a Baudelaire, que por sua vez encontrou em Poe uma grande influência, estou apaixonado pelo gênero de escritura que é o Ensaio, sobretudo os que estou lendo agora, os do Poeta francês. Mas, na verdade, tudo o que disse até aqui foi para anunciar: “mudei minha concepção de vida, serei ENSAÍSTICO”. Que Dramático, diriam!
Por que ser tão certinho? Por que ser tão sistemático, recheado de começo, meio e fim? Por que não começar pelas beiradas, girar em torno dela, apenas? Por que essa necessidade de a tudo reduzir, concluir, significar?
Agora me permito ler poemas, romances, assistir a filmes, contemplar objetos de arte, conversar, e não entender absolutamente nada. Confio que algum sentido penetrou em mim, que a arte e a poesia fizeram o seu papel, que pelo menos um sentimento daquilo tudo sobreviverá! É uma lição que trago para vida: suspender os significados, abandonar a intencionalidade, e fruir.
Não ensaísticamente, conclui.
Me contradigo?
Tudo bem, então.... me contradigo;
Sou vasto.... contenho multidões.
(Walt Whitman)
Paul Valéry, Michel Leiris, Maurice Blanchot: os três ensaístas franceses. Roberto Alves, o Mestre da Casas das Rosas. Baudelaire e Poe, os Poetas. A todos, obrigado!
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
O GOSTO DO INFINITO! Como assim?

No começo de 2009 fiz minha primeira tentativa frustrada de publicar um blog. Era pretensioso, ou imaturo, pois se dizia de Filosofia, mas não a Filosofia de reflexões abstratas e textos analíticos e impenetráveis, porém aquela aplicada ao cotidiano, à “arte de viver” e ao “cuidado de si mesmo”. Queria falar especialmente de Sócrates, Epicuro, Epiteto, Sêneca entre outros por quem eu estava, naquele momento, profundamente impressionado. A intenção era boa, eu tinha muito que falar sobre o assunto, mas talvez eu quisesse “tomar o paraíso de um só golpe”, na expressão utilizada exatamente por Baudelaire em “O Gosto do Infinito”, nome tão sugestivo e sintético que eu não resisti e assim batizei esse blog, que inicio agora.
GOSTO DO INFINITO? Sim, nós homens temos raros momentos de transcendência, quando podemos notar no “observatório dos pensamentos, belas estações, dias felizes, minutos deliciosos”. É um verdadeiro “estado excepcional do espírito e dos sentidos”. “Uma verdadeira graça, como um espelho mágico onde o homem é convidado a ver-se belo, isto é, tal qual deveria e poderia ser”. E como essas "amostras do paraíso" são tão raras quanto desejadas, e sendo o homem pouco hábil em reproduzi-las naturalmente, somos assim impulsionado pelo gosto do infinito a buscar meios artificiais de repetição. E sendo nós como somos, ligeiramente dominados pelas paixões, temos o vício a nossa espreita, como também a graça. Enfim, para o bem ou para o mal, temos em nós o gosto do infinito e por ele perseguimos a vida.
Quanto a mim, vivo procurando escapar dos vícios, pelo menos dos mais tenebrosos, e cedendo aos encantos de pequenas fraquezas inconfessáveis. Nos últimos tempos, o infinito em mim tem se manifestado no sentido da poesia, na palavra viva e redentora de amigos, sábios e professores, personagens da vida e da literatura, no entendimento e na resignificação que a história do pensamento e do conhecimento humanos têm sido capazes de imprimir nessa minha existência pueril.
E é por este caminho que pretendo seguir no blog: o da construção do INFINITO em mim e em VOCÊ.
Eu CELEBRO a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.
Primeira estrofe do poema “Canção de Mim Mesmo” de Walt Whitman (1855).