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sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cinco Lições de Poesia: Akira Kurosawa e o sentido último do amor


Quando li MacBeth no Laboratório de Humanidades, fiquei sabendo do filme “Trono Manchado de Sangue” do Akira Kurosawa, uma recriação cinematográfica para a peça do Shakespeare. Na época eu já ouvira falar do diretor japonês, mas nunca tinha assistido a um filme dele até que, de repente, ou melhor, porque participei do Laboratório de Cinema nesse semestre, em menos de um mês assisti a cinco filmes do Kurosawa: “Duelo Silencioso”, “Cão Danado”, “Viver”, “O Barba Ruiva” e “Dersu Uzala”. E posso dizer que redescobri o mundo pelo viés japonês, um mundo em preto e branco tão denso e vertical quanto aquele bergniano, mas poeticamente diferente.

Os filmes do Kurosawa são profundamente japoneses, eu acho, embora o Japão o tenha acusado de ocidentalizar demais a cultura nipônica. Sinceramente não sei opinar sobre isso, mas posso dizer que, em comparação com os filmes do Bergman, por exemplo, os argumentos do Kurosawa são muito mais cotidianos, suas narrativas mais simples e lineares. Em Kurosawa tudo parece ser o que é, sem muita abstração: chão é chão, tempestade é tempestade.

Dizem até que Kurosawa levava dias para gravar uma única cena de chuva à espera de uma que fosse verdadeira. Mas mesmo com poucos recursos, e quase nenhum efeito especial, sua paixão pelo cinema o levou a narrar grandes histórias, a criar personagens heróicos e inesquecíveis, a trabalhar com atores magníficos que o ajudaram a transformar essa dedicação em grande arte. Apesar do seu didatismo, porque em seus filmes os valores morais vão sendo não apenas manifestos, mas clara e dignamente defendidos por seus “mocinhos”, suas criações são como um extraordinário transbordamento da alma humana em rara poesia.

E assim como em toda rara poesia, novas palavras e outras imagens serão sempre insuficientes para recriar o clima dos filmes do Kurosawa, cuja experiência singela de assisti-los é certamente indescritível. Mas creio que posso contar ao menos como a grandeza desses filmes modificaram o meu egoísmo, já que todos eles falam do amor, do amor em seu sentido mais último.

Duelo Silencioso (1949):


Em “Duelo Silencioso” assistimos ao conflito interno entre os desejos de um homem e seu dever como cidadão e médico. A consciência moral do jovem Kyoji é tão profunda que fiquei abalado questionando o meu próprio agir. Num tempo em que reina a satisfação imediata dos desejos, em que não sabemos mais lidar com mínimas frustrações, a hipótese de eu me sacrificar daquele jeito por alguém me pareceu quase absurda. O comportamento extremamente ético do Dr. Kyoji e sua resignação ao sofrimento são lições ao egoísmo que todos nós resistimos tanto em abrandar.

Cão Danado (1949):


Nessa mesma linha da consciência moral, em “Cão Danado” é o limite da responsabilidade que determina a descida aos infernos do personagem principal, Murukami, um jovem detetive que se abala ao ver sua pistola roubada ferindo pessoas inocentes. É na contradição de se sentir culpado por crimes que de fato ele nunca cometeu que o atormentado personagem nos faz refletir sobre a real responsabilidade que temos pelo mal que nos ronda. Numa aparente absoluta bobagem, a obsessão de Murukami em se martirizar por uma simples distração me fez tomar consciência de pequenas leviandades que pratico quase “sem querer” no meu dia a dia, mas que na verdade não passam de variações de egoísmo e falta de consideração pelo outro.

Viver (1952):



“Viver” trata dos efeitos devastadores que uma vida burocrática pode provocar num homem. Assim como na novela “A Morte de Ivan Ilitch” de Tostói e em “Morangos Silvestres” do Bergman, Kurosawa nos alerta sobre a teima de nos distrairmos da vida e só nos atentarmos a ela quando a morte já é certa. Mas diferentemente do que acontece nas narrativas de Tolstói e Bergman, em que Ivan Ilitch parece encontrar na agonia um significado transcendente, e o Prof. Borg um sentido no amor ao abrir-se para o novo e para o outro, a vida do Sr. Watanabe se completa no trabalho doado à comunidade. Outra vez é pelo sair de si mesmo, ou talvez pelo abrandamento do egoísmo, que o filme nos propõe “viver”.

O Barba Ruiva (1965):


Em “O Barba Ruiva”, Kurosawa nos coloca diante de um verdadeiro mestre, cuja sabedoria e senso de justiça transcendem sua própria condição de médico. No século XIX, O Dr. Kyojio Niide (apelidado carinhosamente de “O Barba Ruiva”) dirige um hospital numa pobre e remota aldeia japonesa, sendo respeitado, querido e temido por todos. Já o jovem médico Dr. Yasumoto, que contra a própria vontade se vê obrigado a viver e trabalhar com o Dr. Niide, o contrapõe com sua arrogância. Formado cientificamente na melhor escola de medicina da região, ele havia se preparado para se tornar um profissional importante, que cuidasse de pessoas importantes.

O Dr. Barba Ruiva, porém, não nega a ciência, embora não acredite piamente nela. Sem priorizar a comprovação científica e a perícia técnica, ele de fato olha e enxerga as pessoas. Por isso seus métodos de tratamento vão muito além dos protocolos. Assim, diante de uma realidade miserável, lidando com pacientes terminais e desamparados, o Dr. Barba Ruiva, ao tratar todos com consideração e humanidade, aos poucos cativa o jovem Yasumoto, que passa não somente a respeitá-lo, mas a verdadeiramente “humanizar-se” com ele, reconsiderando suas posições como homem e médico.

Esse é mais um filme grandioso de Akira Kurosawa, que nos interpõe o homem para além de nossas idealizações. O Dr. Niide, por exemplo, não é um médico “bonzinho”, tampouco faz questão de se mostrar agradável. Ao contrário, muitas vezes ele é implacável, violento. Sua cara amarrada é uma lição para todos nós que costumamos confundir o riso fácil com boa índole, a perfeição hipócrita com bondade. O homem, para o Dr. Niide, é “um animal”, como diria Zorba, o Grego*: “você lhe fez o mal? Ele o respeita e teme. Você lhe fez o bem? Ele arranca seus olhos”. Humanizar-se, então, nessa perspectiva, é uma questão de reconhecer-se justamente imperfeito. E imperfeito, embora justo, é o Dr. Barba Ruiva, que não vacila em quebrar literalmente os ossos dos malfeitores, ainda que depois cuide de consertá-los amorosamente.
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*Nikos Kizantizákis. Vida e Proezas e Alexis Zorbás. 3ª Edição. São Paulo: Grua, 2011.



Curiosidade: Thoshiro Mifune, ator principal de "Duelo Silencioso", "Cão Danado", "O Barba Ruiva", entre muitos outros filmes do diretor japonês, rompeu com Kurosawa durante a atuação em "O Barba Ruiva" por ter sido obrigado por ele a manter uma barba natural por dois longos anos, tempo que duraram as filmagens. Durante esse período, o grande ator japonês não conseguiu outros papéis.

Dersu Uzala (1975):


Frustrado e desapontado com a incompreensão que a cultura japonesa dispensava a seus filmes, Akira Kurosawa tentou o suicídio em 1971. Uma vez auto-exilado na União Soviética, entregou-se às filmagens dessa produção russa para ganhar, em 1975, o Oscar de melhor filme estrangeiro. “Dersu Uzala” é um filme sobre o encontro de mundos opostos, sobre a amizade, o envelhecimento, e, sobretudo, é um ensaio sobre a insuficiência humana. De belíssima fotografia colorida nos campos da Sibéria, Kurosawa dirigiu essa película como um tratado poético sobre as dificuldades de sobrevivência numa civilização que cada vez mais se encaminha para a padronização, a fragmentação e a artificialização da vida.

Como em Dostoiévski, que no romance “O Idiota” encarna o Bem na figura de um nobre que mais se parece com um “iuródiv”, misto de bobo, mendigo, louco e vidente na tradição russa, Kurosawa encarna o Bem na pele de Dersu Uzala, um velho caçador mongol que, por amizade, decidi guiar a expedição topográfica do capitão Vladimir Arseniev, um explorador czarista no início do século XX.

Sim, amizade, esse é o grande tema do filme, ou pelo menos aquele que primeiro nos impressiona: Dersu e Arseniev, dois estranhos que se elegem amigos num encontro improvável na Sibéria. Então Dersu, íntimo da floresta, salva inúmeras vezes a vida do capitão. E o capitão, por sua vez, o apóia e o acolhe quando a velhice por fim se impõe ameaçando a sobrevivência do experiente caçador na selva.

Dersu é um homem simples, confundido com a natureza, que conversa com os animais, com o fogo, com a água, com o vento. Já Arseniev, embora ele seja um pesquisador científico, é de uma espécie rara, que nunca se mostra arrogante. O encontro dos dois não é de tolerância, pois, ainda que de mundos distintos, não há oposição entre eles. Há, sim, empatia, amizade, e recíproca sabedoria, pois nenhum dos dois se reconhece melhor do que o outro, apenas diferente. E, nessa diferença, esses dois mundos se tocam numa relação fraterna que podemos chamar de amor.

Dersu Uzala é, definitivamente, um filme transformador. Por ele somos mobilizados a olhar terna e amorosamente para o outro, sem que isso implique no desejo de assumir a vida desse outro, muito menos na vontade de modificá-lo de acordo com as nossas conveniências. É o que acontece, por exemplo, quando enfraquecido pela velhice, Dersu deixa de ser quem ele é para se proteger na cidade, na casa do amigo Arseniev. Forçado, então, a afastar-se essencialmente de si, nosso herói se desumaniza tomado por uma aterradora infantilização. Contraditoriamente, porém, só o veremos renascer no enfrentamento da própria sorte.


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Apelo da Alma: Epiteto

Filosofia virou exemplo de reflexões abstratas e textos herméticos. No livro “Novas Vitaminas Filosófica”, Theo Roos a descreve, não a Filosofia em si, mas esta tal qual a compreendemos hoje, como “disciplina aparentemente analítica, conceitual, acadêmica, geralmente abstrata e autoreferente, com pouco ou nada a dizer sobre o mundo real, prático, cotidiano”. “Especular em vez de existir”, esse é o comentário do filósofo dinamarquês Soren Kiekegaar (1813 - 1856) sobre tal concepção da Filosofia.

No entanto, na antiguidade clássica, filosofia e prática eram indissociáveis, pois o conhecimento estava necessariamente ligado à ascese, ou seja, ao exercitar-se. Entendia-se, portanto, que a “arte de viver bem” é uma prática ou um “cuidado de si mesmo”. Mas o que seria esse “cuidar” de “si mesmo”? Na concepção de Sócrates seria o “conhece-te a ti mesmo”, o ocupar-se da própria alma.

Para Epíteto, ex-escravo romano e filósofo estóico que nasceu por volta de 55 d.C, “a principal tarefa da filosofia é responder ao apelo da alma. É procurar compreender o sentido de nossas dores e medos e, assim, nos libertar da sua influência”. Epíteto acreditava que a meta principal da filosofia era ajudar as pessoas comuns a enfrentar positivamente os desafios do cotidiano e a lidar com as inevitáveis perdas, decepções e mágoas da vida.

“Quando a alma grita seu apelo”, disse Epíteto, “é sinal de que chegamos a um estágio necessário e maduro de reflexão sobre nós mesmos. O segredo é não ficar bloqueado nesse ponto, perturbado, torcendo as mãos, mas ir em frente decidido a curar a própria vida. O que a filosofia nos pede é uma opção pela coragem. Seu remédio é expor, sem hesitar, inflexível e obstinadamente, as premissas falsas e enganadoras nas quais baseamos nossas vidas e nossa identidade”.

Então, seria a Filosofia uma espécie refinada de autoajuda?

Se for, pouco importa. Mas na tentativa de elucidar a questão, não vou falar por mim mesmo, vou continuar citando o mestre estóico com um recorte do seu texto intitulado “O verdadeiro propósito da Filosofia”. Viva Epiteto!

O propósito da filosofia é iluminar os caminhos da alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignas de nós. O principal antídoto a tudo isso é um autoexame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria também pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.

A habilidade no uso da lógica e do debate e o desenvolvimento da capacidade de definir as coisas com seus nomes certos são alguns instrumentos que a filosofia nos oferece para alcançar a clareza de visão e a tranquilidade interior que constituem a felicidade verdadeira.

Essa felicidade, que é nossa meta, deve ser corretamente entendida. A felicidade costuma ser confundida com prazer ou lazer experimentados passivamente. Este conceito de felicidade só é bom até certo ponto. O único e precioso objetivo de todos os nossos esforços é uma vida em expansão no caminho da plenitude.

A verdadeira felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. A vida em expansão, cuja base é a intenção de buscar a virtude, é algo que improvisamos continuamente, que construímos a cada momento. Ao fazê-lo, nossa alma amadurece. Nossa vida tem utilidade para nós mesmos e para as pessoas que tocamos.


Citei aqui dois livros que li recentemente e que foram muito importantes pra mim no entendimento que tenho hoje sobre Filosofia. São eles:

Ross, Theo. Novas Vitaminas Filosóficas: receitas para uma boa vida. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

Epíteto. A arte de viver: uma nova interpretação de Sharon Lebell. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.