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segunda-feira, 13 de junho de 2011

Arte que Espelha a Vulnerável Condição Humana

O Sonho (Pablo Picasso, 1932).

“A arte é perigosa; sim, ela nunca pode ser casta; se casta, não é arte” (Schama, 2010). Assim falou Pablo Picasso sobre essa indecifrável, misteriosa coisa, que para além de representar o belo em nossas vidas, nunca se cansa de destruir o que há em nós de mais banal. Tal qual Minós, figura dantesca que na Divina Comédia enrola os pecadores em sua cauda para lançá-los aos círculos do Inferno, é próprio da arte nos atirar nesses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo” (Leiris, 2001), num toque de graça e reconciliação, é verdade, embora a entrega genuína à arte possa de fato ser perigosamente transformadora.

Bentinho, no romance Dom Casmurro de Machado de Assis, procurando atinar o espírito curioso, inquieto, enigmático, provocador e sedutor da menina Capitu, afirma que ela tinha “olhos de ressaca”, que traziam em si um “fluido misterioso e energético” numa força irresistível que o atraía. A arte literária, assim como os olhos de Capitu, parece possuir essa mesma dinâmica de uma onda que se retira da praia em dias de mau tempo e que na volta nos arrasta por domínios internos tão desconhecidos e ameaçadores quanto gozosos são os olhos da amada. Nisso parece residir o mistério de um bom livro, na capacidade de nos tragar para dentro de nós mesmos e nos devolver inteiros para a vida.

Há muito se discute que arte não é apenas prazer e fruição, mas uma forma segura de se adquirir conhecimento. “A literatura instrui deleitando”, afirma Compagnon (2009), que se remete a Émile Zola para dizer que “um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos”. Teria, portanto, a literatura o poder de nos tornar seres humanos melhores? Seria uma ferramenta de melhor compreensão do mundo? Um método de educação dos sentimentos e dos afetos? A literatura, enfim, funcionaria assim como um remédio para os males da alma dotada de poderosa força humanizadora?

De Marcel Proust a Roland Barthes, de Charles Baudelaire a Paul Valéry, de Michel Blanchot a Antoine Compagnon, as publicações pertinentes estão repletas de artigos que se dedicaram a responder como a arte e literatura operam na vida de todos nós. Ítalo Calvino, por exemplo, revela que as coisas que a literatura pode ensinar são “pouco numerosas, mas insubstituíveis”, como “a maneira de ver o próximo e a si mesmo”, de “atribuir valor às coisas pequenas ou grandes”, de “encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela,” e “o lugar da morte”, além de outras coisas “necessárias e difíceis” como “a rudeza, a piedade, a tristeza, a ironia e o humor” (Calvino, 2006).

Leiris (2001), ao sintetizar o conceito estético que norteava a obra do poeta moderno Charles Baudelaire (1821 - 1867), segundo o qual “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”, nos aproxima de uma zona de inquietação e desconforto proporcionado pela arte, onde o homem, tocado pelo Belo, confronta-se consigo mesmo (zona de tangência). Segundo Baudelaire, a arte se dá pela conjunção de duas metades, uma eterna e imutável, outra transitória e fugidia, onde um elemento reto (o eterno) se coloca lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e fluídos. É, então, nessa zona delicada de tangência onde grandes e pequenas epifanias podem acontecer numa voragem capaz de nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

Por isso acredito que tanto na poesia de Baudelaire, quanto nas mais tocantes obras de arte, haverá sempre uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada do belo haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente atraente. “O erotismo genital, as touradas, as tragédias, a grande arte são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários” como motor da estética artística: reto e torto, luz e sombra, virtude e vício, união e separação, contração e relaxamento (Leiris, 2001). São nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste encontram-se dispostos sob efeito de tensão e perigo, que mais facilmente vemos irromper da crosta que somos o que temos de mais inesperado, oculto e perturbador. É nessa zona de tensão que o poder da arte espelha nossa vulnerável condição humana.


Referências Bibliográficas:

Baudelaire, C. O Pintor da Vida Moderna. In: A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Calvino, I. Assunto Encerrado. Discurso sobre Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Compagnon, A. Literatura Para Quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

Schama, S. O Poder da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Em Zona de Tangência

O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério - Face a face...
(O Mistério do Mundo - Fernando Pessoa)


Mestres, poetas, filósofos, bruxos! Alguém que se apresente. Todos vocês, feiticeiros em geral, me arrastem que eu quero estar como Empédocles (1) à beira da cratera. Tenho em mim o imenso desejo de cair: anseio a epifania, o sagrado, o gosto do infinito.

Ah, o mistério! “Ele é a vida e a morte”. “Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo” (2). Foi o Rafael (3) que me insinuou esse Fernando Pessoa abissal. E que também me disse que as “verdades são epifânicas”. Juro, se eu não fosse tão afeito às agudezas da vida, teria sido arrebatado. Mas como posso decifrar esse mistério? Vou apenas desenhar aqui uma fina brecha por onde penetre ao menos um filete de luz.

Epifania é o afeto condensado ao limite da explosão: arrebatamento de amor, de piedade. É aparição ou manifestação divina. Revelação súbita da verdade que aplaca a razão e traz à tona a inteireza das coisas do coração.

Sabe quando você se depara com uma pessoa na rua, olha para ela, talvez em farrapos, e uma beleza injustificada salta daquele ser, seu coração soa mais alto, uma ternura invade a cena? Então você compreende tudo e enxerga naquela figura sua real nobreza, ao mesmo tempo em que o entorno desaparece, o momento se faz distinto, o peito infla de presença divina. Acontece em segundos, mas pode revelar o eterno. Isso é epifania.

Normalmente acontece em situações banais e pelos objetos mais prosaicos. Ou quando se está sensibilizado pela arte, pela literatura, pela música, na contemplação da natureza. De repente, um desarranjo na crosta que somos faz irromper o inesperado: o precipício que se abre e de onde emerge o que temos de mais oculto. Tudo o que é desvio, obscuro e sinistro desaparece. Tudo o que é perfeito, iluminado e belo desvanece. Não existe o bem, não existe o mal. Ali, na cratera de nós, não há divisão. Nasce a porção maior do prazer, o gosto do infinito.

E como já disse no texto inaugural desse blog, uma vez experimentado o infinito, por ele perseguimos a vida. Instaura-se, então, a grande busca, ainda que nem sempre encontremos um fim. A “busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar” (4). Seja como for, o que se busca são esses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”, nas palavras de Michel Leiris (5), poeta e ensaísta francês.

“Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem à obscuridade lodacenta donde haviam emergido”.

“Lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Michel Leiris, no ensaio “O Espelho da Tauromaquia”, explora essa tangência, associando-a primeiro às touradas, depois à arte, à poesia moderna, ao erotismo. O conceito é complexo, a prosa é poética. Roberto Alves, mestre que na Casa das Rosas me apresentou ao ensaio, colheu uma frase do texto escrevendo-a no quadro, em forma de pista:

“... a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”.

Oh Deus imanente, clareia. Oh Deus transcendente, dai-me as palavras dessa compreensão. Oh poeta moderno, Baudelaire, que na grande arte proclama uma metade transitória, fugidia, e na outra metade o eterno, o imutável, salvai-me dessa aflição tangente!

Michel Leiris foi genial no refinamento dessa concepção do poeta, quando determina uma região de experiência privilegiada onde o homem confronta - tangencia - o mundo e a si mesmo. Essa zona de tangência se dá quando um elemento reto (o eterno) está lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e de fluídos. Creio que é nessa zona de tangência que se dá a criação artística. É nela que grandes e pequenas epifania podem acontecer, e a verdade ser revelada, e uma voragem nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

As touradas, as tragédias, o erotismo genital, a grande arte, são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários como motor da estética moderna: uma metade reta e outra torta, uma bela e outra feia. Um lado sol e um lado sombra. Gotas de virtude e vício, união e separação, acumulação e dissipação, contração e relaxamento. Enfim, são nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste, dispostos sob efeito de tensão e perigo, nos colocam em condições de extrair mais facilmente o “eterno do transitório” de Baudelaire, ou as “verdades epifânicas” do Rafael.

No exemplo epifânico, quando o maltrapilho desperta o acontecimento pungente, certamente foi o conflito entre algum elemento reto e virtuoso, em contraste com sua condição torta e miserável, o estopim e o combustível da própria epifania. Na poesia de Baudelaire e nas mais tocantes obras de arte há sempre de haver uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada de virtude haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente encantador.

Embora epifania e arte sejam coisas distintas e não exista entre elas uma relação necessária de causa e efeito - a arte nem sempre provoca a epifania e essa acontece a despeito de qualquer manifestação artística - não se pode negar o poder sensibilizador da arte, tampouco deixar de reconhecer a superioridade das obras que nascem nessa zona de tensão, onde mais facilmente podemos ver espelhada nossa vulnerável condição humana.

Dentre os autores da nossa literatura, Clarice Lispector é certamente a escritora que mais construiu narrativas epifânicas. Tanto sua escrita é provocadora em nós, leitores, de tais experiências, quanto seus personagens são constantemente arrebatados por elas. A epifania, em Clarice, é o corte abrupto, o ritual de passagem que transvalora uma existência engessada na rotina e na trivialidade da vida.

Em “Perto do Coração Selvagem” (6), seu romance de estreia, Clarice descreve inúmeros momentos epifânicos de sua personagem Joana. Em um deles, estando ela sentada numa Catedral, são os “sons cheios, trêmulos e puros de um órgão” que subitamente detonam a sensação:

“As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-me dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu não temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”.

E na continuação, Joana / Clarice, plenamente consciente da verdade epifânica, é tomada pelo desejo de cair em si mesma, de transpor o abismo, de desaparecer na cratera.

“Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda”.

Haveria, assim, um atalho epifânico, uma tal situação ou lugar em que eu pudesse ali me colocar para viver e reviver a experiência vital? Como me pôr em zona de tangência?

Antes de tudo é preciso ter a determinação da cratera. E o afã de se deixar afetar pela vida. Depois é preciso se contaminar de um viver poético: afinar a pele, comover o olhar, a escuta, o paladar. Por fim, não deixar de se expor à grande arte, pois são os artistas os verdadeiros construtores de tangências: suas criações estão impregnadas de perigo e tensão. Por isso tenha coragem. Não tenha medo de se perder na trama ardente de acontecimentos, sentimentos e desejos próprios da arte, ainda que tudo pareça irreal, enevoado, talvez triste, fantasioso, fútil, cruel demais. Enfim, deixe-se possuir pelo entusiasmo do que é humano.

Creio que o “Laboratório de Humanidades” funcione como um desses construtores de tensão: facilitador de “acontecimentos interpelativos”, como diz o Prof. Dante, coordenador do Laboratório, cuja dinâmica de nos colocar em contato íntimo com a literatura clássica nos atira sem dó em zona privilegiada. Basta notar que agora estamos tentando entender a estranha vida de Joana. Ela é mesmo uma víbora? É chata? Amarga? Ou é uma mulher intensa e corajosa, determinada a estar sempre presente à vida que pulsa? Vejam que foi Joana e seu coração selvagem que despertou em mim toda a epifania desse texto. Preciso dizer mais alguma coisa: virei Clarice Lispector!

Antes de encerrar, uma questão derradeira: o simples colocar-se em tangência é garantia de revelações epifânicas? Frequentar tal zona de tensão é dar como certo o milagre epifânico da criação? É saber dos mistérios? Creio que não, já que tudo o que é humano é incerto. E citando Joana, indago: “Depois de ser feliz o que acontece?”. “Ser feliz é para conseguir o quê?”. Coisas de Clarice... Mas volto para tentar responder. Por enquanto voltemos como Empédocles à beira da cratera e do mistério.

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
(Fernando Pessoa)



NOTAS:

1. EMPÉDOCLES (495/490 - 435/430 aC) foi filósofo grego, médico, legislador, professor, místico e profeta. Sustentava a ideia de que o mundo seria constituído por quatro princípios: água, ar, fogo e terra. Tudo seria uma determinada mistura desses quatro elementos, em maior ou menor grau. Para Empédocles, duas forças fundamentais eram responsáveis pela manutenção do universo: O AMOR que unia os elementos (raízes) e o ÓDIO que os separava. Cedo virou figura legendária: ele mesmo se atribuía poderes mágicos. Conta a lenda que Empédocles teria se atirado na cratera do Etna, para provar que era um deus.

2. Fernando Pessoa e seu poema “O Mistério do Mundo”.

3. Rafael Ruiz é um dos dois coordenadores do Laboratório de Humanidades.

4. Palavras de Jorge Luis Borges.

5. Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

6. Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


POEMAS EPIFÂNICOS

O MISTÉRIO DO MUNDO
(Fernando Pessoa)

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
[...]
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
[...]
O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério – Face a face...


EPIFANIA
(Adélia Prado)


Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
‘Assim também, Deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
‘O café está pronto’.
Ai, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.


ALÉM-DEUS
(Fernando Pessoa)


I. Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.