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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tinta Russa, e o Método de Deus


O Sonho de um Homem Ridículo, Os Demônios, A Morte de Ivan Ilitch. Passei os últimos três meses assim, entre Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói. Roleta russa, montanha russa, com a alma russa. Ou seja, meio que ajoelhado, um tanto espremido, na porta estreita de regiões abissais.

Nunca uma literatura havia me pintado assim. Tanto que me sinto como folha de papel de arroz japonês, raro e caríssimo, colorido a grossas camadas de tinta negra e vermelha. E a imagem que se criou em mim é bela, ainda que a tintura escorra em sulcos verticais mais ou menos profundos, quase rasgando minha tecedura de papel. Não que eu me reconheça frágil, apenas um tanto raso para compreender certos matizes da alma humana: os russos querem me deixar cicatrizes, eu sei, querem se fazer indeléveis.

Ah, quantas paisagens nessa minha alma de papel de arroz! Quantas nuances de dúvida, contradição, perplexidade. Ora eu me sentindo ingênuo por não apreendê-las completamente. Ora vislumbrando nelas toda a verdade. Depois delirando com esses tipos russos meio demônios, meio anjos, cuja humanidade torta fere de sangue meu entendimento e meu coração.

Agora sei como Dostoiévski é implacável. Ele não facilita, não abranda mesmo. Temerário, joga cada vez mais tinta de corante negro. Mas também cuida de ir respingando vermelho, vermelho escuro, vermelho claro, e matizes de cinza. Por fim, essa paisagem inquieta, desconfortável, que de fato nada esclarece, mas entreabre as portas do infinito.

Quando acabei O Sonho de um Homem Ridículo disseram que tive uma reação epiléptica. Talvez epifânica. Foi uma reação sem palavras, inefável, impossível de ser elaborada instantânea e racionalmente. Mas tive a intuição de não explicá-la: eu seguiria com o próprio personagem os caminhos do coração. E não pensaria a vida ao invés de vivê-la. E não deixaria escorrer o sagrado entre os dedos da mão.

Foi assim que mais do que me sentir ridículo, eu quis ser ridículo. Porque a ridiculez daquele homem era o seu próprio coração querendo saltar pela boca. A sua ridiculez era eu arrebatado como ele na repentina certeza de que a razão não é tudo. Tampouco o método é tudo. Tampouco a ciência. E de que nós, quando demasiadamente agarrados à concretude da vida, obsedados pela especialização cerebral da vida, acabamos nos afastando dela, consumidos pela indiferença, pelo tédio, e sobretudo pela soberba de não darmos conta dos segredos da vida.

Mas por outro lado, quando a chaga do coração é por ventura exposta, e pressentimos a ação determinante e misteriosa das emoções e dos afetos no florescer da existência, um outro risco é que se apodera de nós, uma espécie de inadequação e deslocamento, e a possibilidade de nos sentirmos sempre e cada vez mais ridículos. E em sendo ridículo aquele homem sonhou. E em sendo ridículos, ele e eu, sonhamos e conhecemos a Verdade. Verdade inaudita, verdade do coração, verdade alimento da alma, que tanto desejo pronunciá-la, mas não consigo, que tanto quero vivê-la, mas tenho pudores, que tanto a vejo como real, se eu não fosse tão humanamente orgulhoso.

Foi então que a maldade se apoderou de mim, reconhecida por mim, tocada por mim. Vinte e quatro dias debruçado sobre Os Demônios. Cismado caminhei na derradeira noite. E me lembrei da crueza de Lady Macbeth e de como certo tipo de vileza me incita. Em Os Demônios é Nikolai Stavróguin o maldito sedutor. “Vou defendê-lo até o fim”, proclamei a passos largos contra o vento me preparando para o dia seguinte, quando se iniciaria o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades.

Na pauta, eu imaginava Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chátov, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta” (1), que na arena do LabHum enfrentariam seus demônios, assim como eu, que naquela noite nebulosa já intuía tudo do que seria capaz. Piotr Stiepánovitch é sem dúvida um grande patife - me perturbava a cabeça - porém mais descarado e enigmático é Nikolai Stavróguin, cuja patifaria é de nobre linhagem. E eu, um patife menor, chafurdando no breu entre as luzes do canteiro central, silencioso e atordoado em meio à lamentação ruidosa da Avenida Paulista, sofria naquela hora a angústia de não conseguir captá-lo, embora eu o acolhesse por inteiro num fascínio de quase prazer. Era de Nikolai a minha paixão e martírio. Era do seu veneno que eu queria beber. Eram os argumentos em sua defesa que eu pretendia tecer, vasculhando em sua névoa calada uma súplica de salvação.

Em confissão, reconheço o quanto tudo isso me faz parecer dramático. Admito até certa afetação no que escrevo. Outro dia li que “por meio da palavra escrita, nós nos livramos de alteridades incômodas” (2). Pois bem, tudo se torna mesmo pequeno quando se admite o óbvio: a) a salvação de Nikolai, ou essa minha ânsia desmedida de compreendê-lo, não passa de mera tentativa de justificar os meus próprios e medianos pecados; b) todo esse esforço virtual é vontade de desabitar os pântanos da minha existência real, pois ser Nikolai Stavróguin, afinal, é olhar a paisagem de cima, é debruçar-se em crateras, é “vaguear pelo precipício” e nele se atirar de cabeça para baixo. Por isso, o que mais amedronta Stavróguin é a mediocridade. Quanto a mim, medroso que sou, porém abissal como me pretendo, é graças à literatura que realizo tais ousadias; c) deixo a vocês, leitores, a possibilidade de tantas outras interpretações, tanto mais óbvias quanto reveladoras.

Mas Nikolai pode ser tudo, menos afetado e frívolo, menos bajulador ou interesseiro. Na verdade, parece que a ele nada interessa, mesmo que muitos tenham sido por ele seduzidos. Nikolai tinha “a beleza de uma pintura, mas, ao mesmo tempo, tinha qualquer coisa de repugnante. Diziam que seu rosto lembrava uma máscara”. Ouvi nessas palavras de Dostoiévski aquilo mesmo que me fascinou em Baudelaire, via Michel Leiris (3), para quem “a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”. Pois bem, como consta na aparência de Nikolai uma gota de veneno, um desvio, uma dissonância que o faz algo repugnante - seguindo o raciocínio do próprio Dostoiévski, haveria também uma outra gota de virtude nas atitudes de Stavróguin? Naquela noite, e por muitas outras, eu acreditei que sim.

Em Os Demônios, Dostoiévski narra a história de uma conspiração política com o fim de estabelecer a “república social universal de todos os homens e da harmonia”. Os conspiradores, comandados por Piotr Stiepânovitch, são como criaturas demoníacas que andam em legiões. Ambientado numa pequena província russa, esses ativistas se organizaram “acreditando entusiasticamente que eram apenas uma unidade entre centenas e milhares de quintetos espalhados pela Rússia e que todos dependiam de algum órgão central, imenso e secreto, que por sua vez estava organicamente vinculado à revolução mundial na Europa” (4). Escrito em 1870, Dostoiévski concebeu a obra para recriar ficcionalmente um episódio verídico ocorrido em 1869, o assassinato do estudante I.I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, autor, com o famoso anarquista Bakunin, do Catecismo Revolucionário, que se tornaria a cartilha de todo guerrilheiro do século XX.

Mas Os Demônios não é um livro político e panfletário. É um romance sobre o homem e sobre Deus, sobre as forças inumanas e sobre “homens que esqueceram quem são e por que são” (5):
Os Demônios é um romance difícil e magnífico, um romance profético sobre o destino da Rússia e sobre o século XX. A negatividade devastadora de Stavróguin e Piotr não são expressões de um mal abstrato e metafísico, ao contrário, são expressões vívidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na plenitude de tal liberdade a personalidade humana é destruída, a solidão se instala, a ligação entre os homens é cortada e as bases sociais abaladas. Dostoiévski nos apresenta um brilhante insight do estado de declínio e inadequação da alma mutilada e espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade humana, “emancipados” das potências de Deus, os homens passam a voar pelo espaço (6).
Na dinâmica do Laboratório de Humanidades, uma alma russa foi em mim se delineando. Intenso, extremado, abissal. Cruel, devasso, contraditório. Bom, generoso, humano. Para cada movimento meu, um olhar, uma confirmação, uma refutação. No compartilhar da história e das emoções, o instigamento, a reflexão, a compreensão, a vontade. “O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem” (7). Percurso esse que para Dostoiévski, segundo Jacqueline, amiga e companheira do LabHum, “pressupõe o reconhecimento do mal dentro de nós mesmos”.

E foi nesse reconhecimento do mal em mim que vivi Os Demônios no Laboratório de Humanidades. É duro defender sozinho o indefensável. Todos me diziam que Nikolai Stavróguin era a própria encarnação demoníaca do vazio, do tédio, do Nada. Em contraposição eu argumentava que Nikolai havia sentido toda a profundidade do seu crime, que ele mesmo queria se perdoar e por culpa andava à procura de humilhações e sofrimentos desmedidos. Tudo em vão. Nikolai começou a ruir quando sozinho me dei conta de que ele havia, ao mesmo tempo, plantado em Chátov a crença em Deus, enquanto em Kiríllov cultivara a semente do suicídio. Nikolai não tem coração! Nikolai é perverso! Afinal foram tantas as atrocidades! Estuprou a pobre menininha. Deixou matar a coitada da coxa. Enfim, capitulei diante de todos, embora em meu coração persistisse - e ainda persista - um estranho sentimento que luta por reconhecimento. Eu não sei o que é. Só sei que quando eu declarei “tudo bem, Nikolai é um demônio”, o Dante disse “NÃO, veja bem Licurgo, Nikolai é humano”. E essa advertência fez toda diferença, pois como definir taxativamente um Homem? Como ser Homem e ser Absoluto? A radical experiência humana é singular e vertical. Emocionado, entusiasmado, só me lembro que encerrei minha participação naquele dia citando os versos de Walt Whitman:

Me contradigo?
Tudo bem, então... me contradigo:
Sou vasto... contenho multidões. (8)

E essa multidão que habita em mim sabe agora reconhecer o mal. Sabe até contemplá-lo em sua beleza. E na beleza que nele se encerra, ainda que por caminhos tortuosos, ver-se revelada a transcendência. Em Os Demônios Dostoiévski diz que “a verdade verdadeira é sempre inverossímil” e que “para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira”. Talvez salpicando mentiras, acredito que pela exacerbação do mal também se chega a Deus, pois quando por fim optamos entre realizar a maldade ou deixá-la à espreita, nessa hora, ao exercer a liberdade na opção pelo bem, cumpre-se o destino sagrado do homem.

Completamente insuficiente para continuar, cito um trecho essencial no fechamento desse meu primeiro pequeno e intenso ciclo russo. Porque não tive tempo e porque não quis influenciar minha experiência de Dostoiévski, li somente na véspera do encerramento das discussões no Laboratório de Humanidades a dissertação de Mestrado da Jacqueline sobre Os Demônios:
A negação do mal para Dostoiévski nega a progenitura do homem, nega a profundeza de sua verdadeira natureza, e ainda, nega a liberdade do espírito humano e a responsabilidade que lhe é inerente. O mal é sinal que existe no homem uma profundeza interna ligada à personalidade; só a personalidade pode criar o mal e responder por ele, uma força impessoal não seria capaz de ser responsável pelo mal. A concepção do mal e da liberdade em Dostoiévski está ligada à sua concepção de personalidade. Negar a personalidade é também negar o mal, se existe no homem a personalidade em profundeza, então o mal tem fonte interior e não pode ser resultado de circunstâncias externas. Convém ao homem, por sua filiação divina, pensar que o caminho do sofrimento resgata e consome o mal. Porque o sofrimento no homem é justamente o indício de usa profundeza.

Dostoiévski não tratou o mal em suas obras do ponto de vista da lei. Ele buscou reconhecer o mal. Reconhecimento como um caminho que o homem deve seguir, seu destino trágico, destino de sua liberdade, e experiência suscetível de levá-lo ao conhecimento de si mesmo. Experiência interior que acaba por demonstrar o Nada do mal, e que no decorrer desta experiência o confunde e o consome. Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que traz em si. (9)
Então, uma vez embebido em tinta russa, carregado de luz e sombra, certeza e perplexidade, numa veemência quase espiritual, assumo e realizo no entusiasmo e no exagero de minha alma a personalidade que sou. Um dia a Jacqueline falou no LabHum que esse meu jeito nervoso, e os meus olhos inquietos, me faziam parecer um personagem dostoievskiano. Depois me disse que sentia que eu estava “no método”. Era um elogio, eu sabia, embora eu não pudesse naquele momento compreendê-lo. Até que por sua generosidade ela me fez conhecer o escritor grego Nikos Kazantzakis:
Sentia que era este o dever, o meu único dever: reconciliar os irreconciliáveis, arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais para delas fazer luz, na medida das minhas possibilidades. Não é este o método de Deus? Não é este o método que nós temos, portanto, o dever de aplicar, seguindo os seus passos? A nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo. (10)
“Reconciliar os irreconciliáveis”. “Arrancar do fundo de mim mesmo as espessas trevas ancestrais”. E não é essa mesma a minha busca do Infinito? Não é esse o sabor agridoce que tanto tenho perseguido? Agora sei que burilar essa minha alma russa tem sido fundamental na “concretização” do gosto do infinito em mim.

Quanto a Tolstoi e “A Morte de Ivan Ilitch”, nem tenho o que dizer. A experiência foi tão marcante que só consegui traduzi-la nos dois textos que eu já publiquei aqui: “Ivan Ilitch não leu O Livro dos Prazeres” e “Hei de ser indecente”, além dos e-mails que mandei para os meus amigos, intimando-os a ler Tolstói imediatamente. De resto, nunca nos esqueçamos que “nossa vida é um relâmpago muito breve, mas temos sempre tempo”.


Bibliografia:

Dostoiévski, F. Duas Narrativas Fantásticas: A dócil e O Sonho de um Homem Ridículo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

Tolstoi, L. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34: 2006.


Notas:

(1) Versos de Walt Whitman. Poema Vida. Publicado nesse blog no post “Desvios e Estridências”.

(2) Miguel Sanches Neto. É dele a citação, mas não sei em que obra. Li a frase, e anotei, ao acaso, na Livraria Cultura.

(3) Leiris, M. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 38. [A frase referida no texto é uma referência ao conceito estético que norteava a obra do poeta Charles Baudelaire].

(4) Lacerda, R. Fiódor Dostoiévski. São Paulo: Dueto Editorial, 2008 - (Entre Clássicos: 7).

(5) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 21.

(6) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(7) Tarkovskiaei, A. A. Esculpir o Tempo: Tarkovski. Apud: Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 22.

(8) Whitman, W. Folhas de Relva. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2008.

(9) Sakamoto, J.I. Religião e Niilismo: Paidéia crítica em Os Demônios de Dostoiévski. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. p. 108.

(10) Kazantzakis, N. Carta a Greco. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. (Documento do Tempo Presente, nº 40).

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Concepção Ensaística da Vida

Depois de uma aula morna, durante o blecaute, na cama, à luz de uma lanterna, reli as primeiras estrofes de ”O Corvo” de Edgar Allan Poe. Sem nenhuma intenção tétrica, já que por uma infernal coincidência a aula fora exatamente sobre o poema, ao contrário do que se possa deduzir dos contos de horror, nada aconteceu. E acabei por me entregar à escuridão depois de sorver a elegante prosa poética de Baudelaire.

Mas hoje, à luz do dia, espremido no metrô, e com os versos insistentes à mão, respirei fundo, procurei me abandonar, ativando os olhos e os ouvidos de dentro, declamei em silêncio:

Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.
Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus umbrais -
É só isto, e nada mais”.


Atentando ao ritmo, à cadência, segui pela segunda, terceira, quarta estrofe. E meu coração ACELEROU. ACELEROU. Na quinta estrofe precisei voltar do INFINITO, das zonas ancestrais, do hiato entre o pensamento e a palavra, do lugar sem nome onde o homem “tangencia o mundo e a si mesmo”. Não tive coragem de continuar, ali, a declamação surda. Apenas disse: “O instante poético é solitário, é íntimo. E isto é tudo, e nada mais”.

Bem, eu só queria entender por que uma exposição muitas vezes correta, planejada, cujo professor é profundo conhecedor do tema e tem todos os requisitos básicos e necessários, não consegue transmitir “essencialidades”, sobretudo as poéticas?

A resposta talvez esteja na “concepção ensaística da vida”, ou seja, o problema não é de conteúdo e competência, mas de uma abordagem ao tema que tente sensibilizar e transmitir o “intransmitível”: o conhecimento que não se ensina, a sensação que não se pode fazer sentir, a experiência singular que não se pode reproduzir no outro.

“Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”. É um curso na Casa das Rosas. Até três quartos da aula eu estava irritado. Nada de fato acontecia, o poeta passava longe, voltas e mais voltas, somente. No final uma pequena redenção. Na segunda aula fomos recebidos a todo volume, uma música dissonante, alta, e o barulho da Paulista tornava sofrível acompanhar o que o professor, Roberto Alves, balbuciava. No terceiro encontro, intencionalmente ou não, a iluminação principal da sala se apagava e, na semiescuridão, o professor tentava prosseguir na leitura. A luz ia e vinha, e assim ficou até o final. Enfim, percebi que tudo tinha um porquê, mesmo o não deliberadamente planejado: o intento do Mestre era esclarecer a questão da aproximação ao tema, tão essencial quando se trata do gênero estudado,

Também percebemos que no Ensaio há, por natureza, camadas de significação, que as leituras do texto podem privilegiar uma ou outra camada, que a função poética e abordagens não convencionais constituem formas de construção e transmissão de conhecimento.

Com tudo isso, e nada mais, retomando o Corvo, e imediatamente saltando a Baudelaire, que por sua vez encontrou em Poe uma grande influência, estou apaixonado pelo gênero de escritura que é o Ensaio, sobretudo os que estou lendo agora, os do Poeta francês. Mas, na verdade, tudo o que disse até aqui foi para anunciar: “mudei minha concepção de vida, serei ENSAÍSTICO”. Que Dramático, diriam!

Por que ser tão certinho? Por que ser tão sistemático, recheado de começo, meio e fim? Por que não começar pelas beiradas, girar em torno dela, apenas? Por que essa necessidade de a tudo reduzir, concluir, significar?

Agora me permito ler poemas, romances, assistir a filmes, contemplar objetos de arte, conversar, e não entender absolutamente nada. Confio que algum sentido penetrou em mim, que a arte e a poesia fizeram o seu papel, que pelo menos um sentimento daquilo tudo sobreviverá! É uma lição que trago para vida: suspender os significados, abandonar a intencionalidade, e fruir.

Não ensaísticamente, conclui.

Me contradigo?
Tudo bem, então.... me contradigo;
Sou vasto.... contenho multidões.
(Walt Whitman)


Paul Valéry, Michel Leiris, Maurice Blanchot: os três ensaístas franceses. Roberto Alves, o Mestre da Casas das Rosas. Baudelaire e Poe, os Poetas. A todos, obrigado!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O GOSTO DO INFINITO! Como assim?

De Baudelaire eu mal conheço dois ou três poemas do livro “As Flores do Mal”, mas adorei o ensaio “O Pintor da Vida Moderna”. Entusiasmado por ele, descobri o curso “Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”, lá na Casa das Rosas, onde tomei conhecimento do ensaio “O Poema do Haxixe” cujo título do primeiro capítulo é exatamente “O Gosto do Infinito”.

No começo de 2009 fiz minha primeira tentativa frustrada de publicar um blog. Era pretensioso, ou imaturo, pois se dizia de Filosofia, mas não a Filosofia de reflexões abstratas e textos analíticos e impenetráveis, porém aquela aplicada ao cotidiano, à “arte de viver” e ao “cuidado de si mesmo”. Queria falar especialmente de Sócrates, Epicuro, Epiteto, Sêneca entre outros por quem eu estava, naquele momento, profundamente impressionado. A intenção era boa, eu tinha muito que falar sobre o assunto, mas talvez eu quisesse “tomar o paraíso de um só golpe”, na expressão utilizada exatamente por Baudelaire em “O Gosto do Infinito”, nome tão sugestivo e sintético que eu não resisti e assim batizei esse blog, que inicio agora.

GOSTO DO INFINITO? Sim, nós homens temos raros momentos de transcendência, quando podemos notar no “observatório dos pensamentos, belas estações, dias felizes, minutos deliciosos”. É um verdadeiro “estado excepcional do espírito e dos sentidos”. “Uma verdadeira graça, como um espelho mágico onde o homem é convidado a ver-se belo, isto é, tal qual deveria e poderia ser”. E como essas "amostras do paraíso" são tão raras quanto desejadas, e sendo o homem pouco hábil em reproduzi-las naturalmente, somos assim impulsionado pelo gosto do infinito a buscar meios artificiais de repetição. E sendo nós como somos, ligeiramente dominados pelas paixões, temos o vício a nossa espreita, como também a graça. Enfim, para o bem ou para o mal, temos em nós o gosto do infinito e por ele perseguimos a vida.

Quanto a mim, vivo procurando escapar dos vícios, pelo menos dos mais tenebrosos, e cedendo aos encantos de pequenas fraquezas inconfessáveis. Nos últimos tempos, o infinito em mim tem se manifestado no sentido da poesia, na palavra viva e redentora de amigos, sábios e professores, personagens da vida e da literatura, no entendimento e na resignificação que a história do pensamento e do conhecimento humanos têm sido capazes de imprimir nessa minha existência pueril.

E é por este caminho que pretendo seguir no blog: o da construção do INFINITO em mim e em VOCÊ.





Eu CELEBRO a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.


Primeira estrofe do poema “Canção de Mim Mesmo” de Walt Whitman (1855).