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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Na Expectativa de Atravessar o Oceano

Poeticamente, a minha ausência na abertura do ciclo "Zorbás" no Laboratório de Humanidades foi a melhor história de leitura que eu poderia ter contado a todos, justamente porque fui com Fábio [e o Zorbás] atravessar o oceano.



Pois, ao contrário do que muitos possam imaginar, sempre me impus navegar pelos mares do bom senso, embalado por medos, inseguranças, e hábitos inconfessáveis de um bom-mocismo hesitante. Como o escrevinhador do romance, eu nunca havia antes cedido aos encantos de uma “belíssima pedra verde”. E assim como ele, sempre fui um fiel seguidor da “comedida, fria e humana voz da razão”.

Por coincidência, ou não, li Kazantzákis exatamente no momento em que a tomada de certas decisões práticas tornava inevitável essa minha viagem. Ao mesmo tempo, em meio à tirada de passaporte e preocupações com hospedagem, temor de atravessar o oceano, compras de moeda estrangeira, ansiedade, eu me comprometia com o meu projeto de Mestrado, que pretende exatamente analisar o impacto das leituras de Huxley e Kazantzákis no LabHum. O fato é que para o bem ou para o mal, Zorbás venceu essa batalha: estou hoje numa viagem de sonhos e de amor.


Mas não estou indo para Creta, cenário árido e belo, tão propício à reflexão. Estou indo para Paris e Londres, onde certamente serão paisagens, iguarias, roupas, perfumes e cosméticos que alimentarão minha alma. Tampouco pressinto que nessa viagem eu vá descobrir algum sentido oculto. Nada disso. Naturalmente há o antigo desejo de conhecer outros países, outras culturas. Mas, de maneira um tanto mais prosaica, estou mesmo é me permitindo viver solto, ou seja, alimentando minhas vaidades, zerando minhas invejas, gastando meu dinheiro, sendo um tanto quanto inconsequente...

Entretanto, inspirado por Zorbás, esse que tanto fez para me “ensinar a amar a vida e a não temer a morte”, irei à procura de resgatar meu olhar primitivo, que me conceda a “virgindade aos eternos elementos cotidianos”. Espero que em cada jardim, em cada prédio, em cada homem, o frescor do coração de Zorbás se apodere de mim. E que com o coração renovado eu possa superar velhos medos. E me escapar do “inferno dos escrevinhadores”. E tentar ouvir, finalmente, essa voz que me chama e me pede para viver com mais “sangue, carne e ossos” essa minha vida banal de “papel e tinta”.



PARA ENTENDER MELHOR:

Entusiasmado pela leitura do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”de Nikos Kazantzákis, talvez o maior escritor grego do século XX, copio abaixo dois trechos do prólogo para que vocês se deliciem:


"Se hoje, em todo o mundo, eu fosse escolher um guia espiritual, um "Guru" como dizem os hindus, um "Mentor" como dizem os monges do Monte Athos, certamente eu escolheria Zorbás, porque ele tinha tudo aquilo que um escrevinhador necessita para subsistir: o olhar primitivo que capta das alturas, como uma flecha, o seu alimento; a simplicidade criativa, renovada a cada manhã, a perceber incessantemente todas as coisas como se fosse pela primeira vez e a conceder virgindade aos eternos elementos cotidianos - ar, mar, fogo, mulher, pão; a firmeza da mão, o frescor do coração, a coragem de caçoar de sua própria alma, como se ele tivesse internamente uma força superior à alma e, por fim, a áspera risada gorgolejante, vinda de uma fonte profunda, mais profunda do que as entranhas do homem e que, nos momentos críticos, irrompia libertadora do velho peito do Zorbás, irrompia e podia demolir (e demolia) todas a barreiras - moral, religião, pátria - que o homem, infeliz e medroso, ergueu em torno de si para mal e mal tocar com segurança sua vidinha".

[...]

"Se eu tivesse ouvido a voz dele - não a voz, o brado - minha vida teria adquirido valor: eu viveria com sangue, carne e ossos tudo aquilo que agora, como um narcotizado, considero e realizo com papel e tinteiro. Mas não ousei. Eu via Zorbás em plena noite a dançar relinchando, a gritar para que eu também me arrojasse da confortável concha do bom senso e do hábito e com ele partisse para grandes viagens: e eu ficava imóvel, tiritando. Muitas vezes em minha vida senti vergonha por conter minha alma para que ela não ousasse fazer tudo aquilo que a suprema loucura - a essência da vida - conclamava-me a fazer, mas nunca me envergonhei tanto por minha alma como diante de Zorbás".

E isso é só o começo. Na orelha do livro está escrito: "Zorbás consegue ser ao mesmo tempo um romance de aventura, que se lê com febre, e um romance de formação, que transforma". Há uma edição recente traduzida diretamente do Grego. Nas edições antigas, o título em português era “Zorbás, o Grego”, por causa do filme, grande sucesso de bilheteria nos anos 60. Mas eu gosto mais do romance, embora haja quem prefira o Zorbás do cinema. É que a interpretação de Anthony Quinn no papel está impecável. No filme, porém, as inquietações do outro personagem, o escrevinhador, ficam por demais apagadas.

Referência do livro:

Nikos Kazantzákis. Vida e Proezas de Aléxis Zorbás. Editora Grua, 2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cinco Lições de Poesia: Akira Kurosawa e o sentido último do amor


Quando li MacBeth no Laboratório de Humanidades, fiquei sabendo do filme “Trono Manchado de Sangue” do Akira Kurosawa, uma recriação cinematográfica para a peça do Shakespeare. Na época eu já ouvira falar do diretor japonês, mas nunca tinha assistido a um filme dele até que, de repente, ou melhor, porque participei do Laboratório de Cinema nesse semestre, em menos de um mês assisti a cinco filmes do Kurosawa: “Duelo Silencioso”, “Cão Danado”, “Viver”, “O Barba Ruiva” e “Dersu Uzala”. E posso dizer que redescobri o mundo pelo viés japonês, um mundo em preto e branco tão denso e vertical quanto aquele bergniano, mas poeticamente diferente.

Os filmes do Kurosawa são profundamente japoneses, eu acho, embora o Japão o tenha acusado de ocidentalizar demais a cultura nipônica. Sinceramente não sei opinar sobre isso, mas posso dizer que, em comparação com os filmes do Bergman, por exemplo, os argumentos do Kurosawa são muito mais cotidianos, suas narrativas mais simples e lineares. Em Kurosawa tudo parece ser o que é, sem muita abstração: chão é chão, tempestade é tempestade.

Dizem até que Kurosawa levava dias para gravar uma única cena de chuva à espera de uma que fosse verdadeira. Mas mesmo com poucos recursos, e quase nenhum efeito especial, sua paixão pelo cinema o levou a narrar grandes histórias, a criar personagens heróicos e inesquecíveis, a trabalhar com atores magníficos que o ajudaram a transformar essa dedicação em grande arte. Apesar do seu didatismo, porque em seus filmes os valores morais vão sendo não apenas manifestos, mas clara e dignamente defendidos por seus “mocinhos”, suas criações são como um extraordinário transbordamento da alma humana em rara poesia.

E assim como em toda rara poesia, novas palavras e outras imagens serão sempre insuficientes para recriar o clima dos filmes do Kurosawa, cuja experiência singela de assisti-los é certamente indescritível. Mas creio que posso contar ao menos como a grandeza desses filmes modificaram o meu egoísmo, já que todos eles falam do amor, do amor em seu sentido mais último.

Duelo Silencioso (1949):


Em “Duelo Silencioso” assistimos ao conflito interno entre os desejos de um homem e seu dever como cidadão e médico. A consciência moral do jovem Kyoji é tão profunda que fiquei abalado questionando o meu próprio agir. Num tempo em que reina a satisfação imediata dos desejos, em que não sabemos mais lidar com mínimas frustrações, a hipótese de eu me sacrificar daquele jeito por alguém me pareceu quase absurda. O comportamento extremamente ético do Dr. Kyoji e sua resignação ao sofrimento são lições ao egoísmo que todos nós resistimos tanto em abrandar.

Cão Danado (1949):


Nessa mesma linha da consciência moral, em “Cão Danado” é o limite da responsabilidade que determina a descida aos infernos do personagem principal, Murukami, um jovem detetive que se abala ao ver sua pistola roubada ferindo pessoas inocentes. É na contradição de se sentir culpado por crimes que de fato ele nunca cometeu que o atormentado personagem nos faz refletir sobre a real responsabilidade que temos pelo mal que nos ronda. Numa aparente absoluta bobagem, a obsessão de Murukami em se martirizar por uma simples distração me fez tomar consciência de pequenas leviandades que pratico quase “sem querer” no meu dia a dia, mas que na verdade não passam de variações de egoísmo e falta de consideração pelo outro.

Viver (1952):



“Viver” trata dos efeitos devastadores que uma vida burocrática pode provocar num homem. Assim como na novela “A Morte de Ivan Ilitch” de Tostói e em “Morangos Silvestres” do Bergman, Kurosawa nos alerta sobre a teima de nos distrairmos da vida e só nos atentarmos a ela quando a morte já é certa. Mas diferentemente do que acontece nas narrativas de Tolstói e Bergman, em que Ivan Ilitch parece encontrar na agonia um significado transcendente, e o Prof. Borg um sentido no amor ao abrir-se para o novo e para o outro, a vida do Sr. Watanabe se completa no trabalho doado à comunidade. Outra vez é pelo sair de si mesmo, ou talvez pelo abrandamento do egoísmo, que o filme nos propõe “viver”.

O Barba Ruiva (1965):


Em “O Barba Ruiva”, Kurosawa nos coloca diante de um verdadeiro mestre, cuja sabedoria e senso de justiça transcendem sua própria condição de médico. No século XIX, O Dr. Kyojio Niide (apelidado carinhosamente de “O Barba Ruiva”) dirige um hospital numa pobre e remota aldeia japonesa, sendo respeitado, querido e temido por todos. Já o jovem médico Dr. Yasumoto, que contra a própria vontade se vê obrigado a viver e trabalhar com o Dr. Niide, o contrapõe com sua arrogância. Formado cientificamente na melhor escola de medicina da região, ele havia se preparado para se tornar um profissional importante, que cuidasse de pessoas importantes.

O Dr. Barba Ruiva, porém, não nega a ciência, embora não acredite piamente nela. Sem priorizar a comprovação científica e a perícia técnica, ele de fato olha e enxerga as pessoas. Por isso seus métodos de tratamento vão muito além dos protocolos. Assim, diante de uma realidade miserável, lidando com pacientes terminais e desamparados, o Dr. Barba Ruiva, ao tratar todos com consideração e humanidade, aos poucos cativa o jovem Yasumoto, que passa não somente a respeitá-lo, mas a verdadeiramente “humanizar-se” com ele, reconsiderando suas posições como homem e médico.

Esse é mais um filme grandioso de Akira Kurosawa, que nos interpõe o homem para além de nossas idealizações. O Dr. Niide, por exemplo, não é um médico “bonzinho”, tampouco faz questão de se mostrar agradável. Ao contrário, muitas vezes ele é implacável, violento. Sua cara amarrada é uma lição para todos nós que costumamos confundir o riso fácil com boa índole, a perfeição hipócrita com bondade. O homem, para o Dr. Niide, é “um animal”, como diria Zorba, o Grego*: “você lhe fez o mal? Ele o respeita e teme. Você lhe fez o bem? Ele arranca seus olhos”. Humanizar-se, então, nessa perspectiva, é uma questão de reconhecer-se justamente imperfeito. E imperfeito, embora justo, é o Dr. Barba Ruiva, que não vacila em quebrar literalmente os ossos dos malfeitores, ainda que depois cuide de consertá-los amorosamente.
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*Nikos Kizantizákis. Vida e Proezas e Alexis Zorbás. 3ª Edição. São Paulo: Grua, 2011.



Curiosidade: Thoshiro Mifune, ator principal de "Duelo Silencioso", "Cão Danado", "O Barba Ruiva", entre muitos outros filmes do diretor japonês, rompeu com Kurosawa durante a atuação em "O Barba Ruiva" por ter sido obrigado por ele a manter uma barba natural por dois longos anos, tempo que duraram as filmagens. Durante esse período, o grande ator japonês não conseguiu outros papéis.

Dersu Uzala (1975):


Frustrado e desapontado com a incompreensão que a cultura japonesa dispensava a seus filmes, Akira Kurosawa tentou o suicídio em 1971. Uma vez auto-exilado na União Soviética, entregou-se às filmagens dessa produção russa para ganhar, em 1975, o Oscar de melhor filme estrangeiro. “Dersu Uzala” é um filme sobre o encontro de mundos opostos, sobre a amizade, o envelhecimento, e, sobretudo, é um ensaio sobre a insuficiência humana. De belíssima fotografia colorida nos campos da Sibéria, Kurosawa dirigiu essa película como um tratado poético sobre as dificuldades de sobrevivência numa civilização que cada vez mais se encaminha para a padronização, a fragmentação e a artificialização da vida.

Como em Dostoiévski, que no romance “O Idiota” encarna o Bem na figura de um nobre que mais se parece com um “iuródiv”, misto de bobo, mendigo, louco e vidente na tradição russa, Kurosawa encarna o Bem na pele de Dersu Uzala, um velho caçador mongol que, por amizade, decidi guiar a expedição topográfica do capitão Vladimir Arseniev, um explorador czarista no início do século XX.

Sim, amizade, esse é o grande tema do filme, ou pelo menos aquele que primeiro nos impressiona: Dersu e Arseniev, dois estranhos que se elegem amigos num encontro improvável na Sibéria. Então Dersu, íntimo da floresta, salva inúmeras vezes a vida do capitão. E o capitão, por sua vez, o apóia e o acolhe quando a velhice por fim se impõe ameaçando a sobrevivência do experiente caçador na selva.

Dersu é um homem simples, confundido com a natureza, que conversa com os animais, com o fogo, com a água, com o vento. Já Arseniev, embora ele seja um pesquisador científico, é de uma espécie rara, que nunca se mostra arrogante. O encontro dos dois não é de tolerância, pois, ainda que de mundos distintos, não há oposição entre eles. Há, sim, empatia, amizade, e recíproca sabedoria, pois nenhum dos dois se reconhece melhor do que o outro, apenas diferente. E, nessa diferença, esses dois mundos se tocam numa relação fraterna que podemos chamar de amor.

Dersu Uzala é, definitivamente, um filme transformador. Por ele somos mobilizados a olhar terna e amorosamente para o outro, sem que isso implique no desejo de assumir a vida desse outro, muito menos na vontade de modificá-lo de acordo com as nossas conveniências. É o que acontece, por exemplo, quando enfraquecido pela velhice, Dersu deixa de ser quem ele é para se proteger na cidade, na casa do amigo Arseniev. Forçado, então, a afastar-se essencialmente de si, nosso herói se desumaniza tomado por uma aterradora infantilização. Contraditoriamente, porém, só o veremos renascer no enfrentamento da própria sorte.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

AO FOGO NEGRO

Laboratório de Humanidades,
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray:
um poema em prosa.

Às amigas Rozélia e Jacqueline.


Esvaneço de mim o que é cinzento, porque é do branco mais branco ao negro mais negro que a vida rutila. E o impacto se dá. Dorian Gray me atirou ao fogo negro. Estou ardendo. Quase cedendo à corrupção de algum livro amarelo. Você sabe como posso encontrá-lo? Me iniciaria em seus prazeres devassos? Exerceria sobre mim sua má influência? Ora, não se inquiete, que eu prescindo de você. Tenho o meu próprio veneno e salvação: as palavras que em mim fervilham [e contrastam minha alma sem vida].

Dorian Gray e eu passamos pela mesma sensação de fronteira ao conhecer Lorde Henry Wotton no ateliê do pobre, bom e apaixonado Basílio. Sentimos receio, e frenesi. Não ria! Sei que não sofro da beleza perfeita de Dorian Gray, mas as cínicas provocações, as verdades e meias verdades sedutoras e paradoxais de Harry me soaram como quando as bruxas de Shakespeare proferiram as tais palavras insidiosas que despertaram a ambição desmedida em Macbeth. Em Dorian Gray, as cordas da vaidade e do orgulho é que foram tocadas. Em mim, outra vez, é a voragem que ressoa.

O infinito e o abismo, abstrações concretas que suspendem o tempo e que resgatam em mim o sentimento oceânico. O que mais me fascina na literatura, e na arte, e no ser, é a experiência infinita do abismo. É o afã de quem beira crateras nos confins da existência. E reconhece no mal a dinâmica do belo, porque atrai.

Mas o que me atrai? Não é o capricho perverso que aniquila, mas a vida que se quer inteira, na audácia de vivê-la até as últimas consequências. "Cada um de nós carrega em si o céu e o inferno", disse Dorian Gray ao inocente Basílio. E é por isso que me sinto tomado, pela escatologia do bem e do mal ao alcance da boca, já que é no vão negro, no mais profundo escuro de mim, que a beleza faísca.

E o que é a beleza senão faísca?

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Tudo é Vacilação: Afetos em Contraponto

“[...] Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoiévski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” [Nélson Rodrigues] [1]


Eu, porém, eternamente iludido com o volume das coisas, invejoso de ainda não ter lido esta ou aquela obra, quase nunca releio, quase nunca revejo, quase sempre fico ansioso pelo próximo da lista, o que é lamentável, eu sei. É que existe no mundo uma pressa difícil de resistir, embora eu esteja devagarzinho me desacelerando para reler dois clássicos da literatura, “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, e “Contraponto”, de Aldous Huxley. Pretendo um dia enfrentá-los num grande embate, na minha suposta, futura, imprevista dissertação de mestrado, que por enquanto não se realizou nem como projeto. Quem sabe então eu consiga vencer, assim como Ulisses na Odisseia [2], o “mar nunca antes vindimado”, o “mar piscoso” das minhas hesitações e incertezas.

O poeta Baudelaire me contou certa vez que devemos sempre escrever poesia, mesmo quando em prosa. Ouvi dizer que Gilles Deleuze, o filósofo francês, dissera que “a partir do momento que você sabe, é inútil escrever”. E é isso mesmo, eu escrevo porque não sei, eu escrevo para tentar entender. Pois é assim que vou “construindo a minha própria beleza” [3], que vou me humanizando, pelo o que há em mim de mais atávico, a linguagem poética. Sinto que é pela escrita, pela palavra que medra, que sou. Antes da palavra nada em mim é e promete. Tudo é vacilação. Minha vida só borbulha mesmo na frase posta.

Já poetizei “Os Demônios” quando escrevi aqui “Tinta Russa”. Agora quero versar sobre “Contraponto” de Aldous Huxley, romance que vivi no semestre passado para o curso “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades”, ministrado pelos professores Dante Gallian e Luis Felipe Pondé. Apenas para localizar, “Contraponto”, publicado em 1928, antecipou o caráter visionário de Aldous Huxley, que em 1932 lançaria “Admirável Mundo Novo”, uma das mais ferozes denuncias contra os aspectos desumanizadores do progresso científico e material. Sinto, no entanto, que “Admirável Mundo Novo”, por ser uma distopia ambientada num tempo muito além do nosso, não traduz com a mesma veracidade que “Contraponto” o mal-estar de nossos dias.

Como o meu objetivo não é fazer crítica literária, mas expor o que em mim provoca a leitura de um livro, de chofre confesso meu afeto, minha paixão, pelo personagem Everard Webley. E essa predileção mexeu especialmente comigo, pois embora eu abomine o autoritarismo fascista de Webley, é justamente ele o cara que se mostra o mais convincente. Mas deixando por enquanto de lado a lógica do amor-bandido, também Mark Rampion e Maurice Spandrell indignaram e exaltaram os meus sentimentos.

“Toda vez que o homem quer ser mais do que simplesmente homem, não se torna melhor, mas um ser inumano”. Sinto que é esse o refrão do livro, repetido inúmeras vezes por Mark Rampion, que dominaria - eu tinha certeza -, as discussões no curso. Mas que nada! Só eu toquei e insisti no nome dele. Só eu o idealizei. Justamente ele que encabeça o discurso contra os ideais utópicos que nos afastam da “vida integral” com a promessa de nos tornarmos perfeitos. Rampion não crê em nada disso, não crê no que possa transcender a existência. Não acredita em Deus, tampouco na perfectibilidade do homem [4]. Não acredita que as ideias de progresso, que a moral, a ciência ou a ideologia política possam nos tirar da condição humana e animal para nos fazer retornar ao Jardim do Éden.

Mas o que mais me intriga em Rampion não é a sua lucidez ácida e prolixa, sua descrença, nem seu romantismo raivoso. É sua determinação em afirmar no homem a sua integralidade. Em não aceitar que a verdade esteja sempre no cérebro e nunca no coração, e vice-versa. O verdadeiro homem civilizado para Rampion é aquele que consegue englobar tudo, harmonizar a razão, o sentimento, o instinto, a vida do corpo. “A barbárie consiste em pender mais para um lado do que para outro. Os civilizados sabem viver com todo o ser”. Rampion considera William Blake, poeta e pintor inglês, o verdadeiro homem civilizado. E acusa Shelley, o grande poeta romântico, de não ter sido humano, mas “um misto de fada e lesma branca”, que “espiritualizava demais o amor”. Rampion admira a “carnalidade”, embora flutue no mundo das ideias numa ânsia pedagógica que ele mesmo sabe inumana. “É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude”, brada. “O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam”.

Foi, porém, uma indagação do Pondé que virou a chave da minha leitura. E tantas outras portas se abriram. “Não seria insuportável conviver com Rampion? Ele não é um purista, um chato?”. De fato, o discurso de Rampion é extenso e repetitivo. Sua vida uma grande aula, onde ele é um professor empedernido. Mas se Rampion está humanamente distante de alcançar a perfeição - para a sua alegria e satisfação - ele é coerente e autêntico. Sua acidez não é corrosiva. Sua raiva é quase abstrata na esperança que sutilmente nutre pela humanidade. Seu ateísmo não lhe tira o sentido e o prazer da vida concreta, que apesar de sofrida, é o que lhe resta. “Spandrell se recusa a ser homem”, aponta Rampion. “Não é um homem, mas sim um demônio ou um anjo morto”. Mark Rampion sabe que a humanidade do homem se pulveriza tanto no bem quanto no mal absolutos. E que se não existe a possibilidade da transcendência, que sejamos ao menos éticos e felizes.

E é exatamente na ética que Rampion se distancia de um outro grande personagem, Maurice Spandrell, o “Peter Pan à Dostoiévski”, o “pequeno Nikolai” [5], o cínico dos cínicos, que vacila entre o bem e o mal absolutos e se entrega a uma existência que beira o inumano. A não superação do seu pequeno drama pessoal, a relação mal resolvida com a mãe, a nostalgia de uma vida feliz na infância, o atira definitivamente no abismo. O vazio e a violência em Spandrell se perdem em qualquer entendimento. Ele hesita se acredita ou não acredita em Deus. Hesita se a vida como ela é vale ou não vale a pena. E entrega-se à barbárie. Spandrell é o contraponto do homem integral “rampioniano”, porque ora é demônio, ora é anjo contemplando Deus numa sinfonia de Beethoven. Vivendo nos extremos, Spandrell esvazia sua humanidade e se perde e se mata na falta de ética.

Já Philip Quarles, personagem injustamente declarado frio e calculista, paradoxalmente passa pelo romance sofrendo pela consciência que tem de sua inabilidade emocional. Ele apenas não aprendeu a lidar com seus sentimentos, uma defesa, talvez, pelo fato de ser fisicamente aleijado. Huxley tentou obstinadamente torná-lo “o insensível”, “o racional” do romance, mas parece que essa foi uma criação que se rebelou. Terminamos o romance sensibilizados por ele, comovidos por sua integridade e, sobretudo, solidários com sua falta de jeito em lidar com as coisas do coração.

Numa determinada passagem, Philip Quarles faz uma reflexão sobre as pessoas que são notáveis em determinada esfera da vida, mas desprezíveis em outra. Cita o escritor Liev Tolstói, que em sua visão foi um excepcional romancista, mas detestável nas ideias sobre moral e religião. Uso esse exemplo um tanto tendencioso somente como ponte para me fazer voltar ao tema do amor-bandido, pois assim é Everard Webley, o amável repugnante, o líder dos “Ingleses Livres”, partido político fascista que na trama anseia chegar ao poder. Porque Webley, a despeito de suas posições políticas desprezíveis, é um homem admirável por sua determinação e disciplina. Seguro de si, sempre sabe a direção a tomar. E ele usa todo o seu poder de decisão não somente na política, mas também no seu amor por Elinor, a frágil mulher carente que vive um casamento gelado com o intelectual Philip Quarles. Webley é o homem viril que seduz montado literalmente num cavalo branco, e conquista a mulher. Infelizmente, ou felizmente, dependendo do ponto de vista, se político ou pessoal, a potência de Webley é anulada pelo vazio existencial de Spandrell.

A potência que se aniquila diante do vazio e do tédio. É o que me vem à cabeça quando penso no desfecho da história. Embora Webley seja evidentemente mais um contraponto ao homem ideal imaginado por Rampion - porque aposta todas as fichas no aperfeiçoamento da sociedade pelo viés social e político -, mesmo assim acredito nele como sendo o personagem que mais se aproxima do homem “rampioniano”: Webley está preso à materialidade da terra; a potência e a determinação de sua virilidade parecem indicar harmonia entre razão e instintos; por último, Webley ama e sofre sinceramente por amor.

Mas por que tal potência foi covardemente extirpada? Por que Huxley teria dado a Webley uma alma fascista? Talvez para nos mostrar que não existe o homem perfeito. E que somos vulneráveis na luta entre o bem e o mal. Afinal, isso é o que nos faz humanos.


E não dá para esquecer outro importante desfecho do livro: quem herda o paraíso na terra é a hipocrisia. Pelo menos é isso o que acontece em “Contraponto”. Embora a ambição e a sensualidade em si não sejam reprováveis, é o fingimento e as más intenções que as tornam desprezíveis. Para o personagem herdeiro huxleyano do “reino dos céus”, dinheiro e carnalidade são o que verdadeiramente interessa. Sua bondade é puro fingimento. Burlap é o seu nome, personagem representante de um dos produtos mais bem acabados da tal perfectibilidade, que criou esse homem moderno, o “homem extraordinário”, o “homem de ação”, prático, eficiente, técnico, que sabe ser “espiritual” quando conveniente e usa as emoções para mascarar sua ânsia de conquista e poder. O que importa é cumprir metas. O que importa é vencer. E Burlap venceu.

Em contraponto, e para finalizar, retomo a questão inicial de Nélson Rodrigues. Encontrei outro dia a Sonia, uma querida amiga e companheira de cursos da Casa das Rosas, e lhe mostrei com afã o trecho sobre a experiência fascinante da releitura. Qual foi minha surpresa quando ela me retrucou com um enfático “Não concordo!”. Depois me contou de um palestrante que se dirigiu a alguém na plateia e perguntou: “Você já leu a Odisseia?”. “Não, respondeu o rapaz”. Então o palestrante soltou uma estrondosa e intrigante resposta: “Que inveja eu tenho de você! Porque eu nunca mais vou poder sentir o mesmo entusiasmo, a mesma perplexidade que um dia eu senti quando li pela primeira vez a Odisseia. Parabéns!”.

Mínima culpa: Nada comentei sobre Marjorie e Lucy. Nem sobre Elinor, Beatrice, Mary... É que só agora me dei conta de que nada falei sobre as mulheres em “Contraponto”, embora grite o hedonismo niilista de Lucy e incomode a chatice e o tipo de salvação religiosa encontrada por Marjorie. Mas eu simplesmente me esqueci delas, depois me faltou vontade. Enfim, para o bem ou para o mal, hei de enfrentá-las numa releitura!


Notas:

[1] Assim como a Jacqueline, começo com o mesmo trecho de Nélson Rodrigues que ela abriu “Luz no Pântano”, artigo publicado recentemente no blog do Laboratório de Humanidades. Por ele me dei conta de que “existe entre Dostoiévski e Nélson Rodrigues um laço de família”, que são “almas parentas”, cujos personagens invariavelmente estão no limiar, em regiões abissais. Também me aproximei de um Nélson Rodrigues entregue, arrebatado, que faz tal afirmação sobre o fascínio da releitura. Referências: RODRIGUES, Nélson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 54. SAKAMOTO, Jacqueline. Luz no Pântano. Blog do LabHum. URL: http://labhum.blogspot.com/2010/08/luz-no-pantano.html.

[2] No Laboratório de Humanidades, acabamos de discutir Odisseia. Recomendo uma edição portuguesa primorosa. A clareza e a beleza dos versos fazem da leitura um deleite. Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Edições Cotovia, 2003. (Tem na Livraria Cultura).

[3] “Construir a própria beleza” é uma referência ao ideal grego de formação do homem (Paideia), segundo o qual o homem alcançaria a excelência humana por meio da areté - virtude - na medida em que se dedicasse ao belo, ao bom e ao justo, contemplando assim a verdade. Bem, como não estou lá muito seguro dessa definição, nada me resta senão escrever sobre isso. Em breve.

[4] Perfectibilidade do homem: conceito filosófico pelo qual se admite que o homem, por sua própria força e natureza racional, é capaz de alcançar à Perfeição por meio do progresso moral, social, científico e tecnológico. Não se trata do impulso natural que temos de aprimorar continuamente as coisas, mas da presunção humana de se sentir no centro do universo e autossuficiente. Trata-se, portanto, de acreditar que pela educação, pela inteligência, pelo raciocínio lógico e matemático, pelo progresso científico e tecnológico, em suma, pela racionalidade humana, o homem possa de fato dominar tanto as forças externas da natureza quanto o que há de interno e incontrolável nele. Para os perfectibilistas de ontem e de hoje, a Perfeição e a Felicidade são produtos de uma equação que pressupõe a supremacia da Razão sobre a Natureza. A perfectibilidade é a própria base das utopias modernas. Negá-la é desacreditar a autossuficiência do homem, assumindo assim uma atitude profundamente religiosa, ainda que desvinculada de qualquer instituição e/ou sistema doutrinário.

[5] Nikolai Stavróguin, personagem central do livro “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski. Impressionante por sua complexidade. Flutua no vazio, no tédio, no nada. Indecifrável, intrigante. Cruel, patife, demoníaco. Paradoxalmente atraente.

Bibliografia:

Dostoiévski, F. Os Demônios. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.

Huxley, A. Contraponto. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. 6ª Edição. São Paulo: Globo, 2001.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo infinito DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.


O Laboratório de Humanidades (LabHum) é uma atividade extra-curricular e também uma disciplina na pós-graduação, oferecida pelo Centro de Historia e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (CeHFi - UNIFESP - EPM).

Site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/labhum.htm
Blog: http://www.labhum.blogspot.com/

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Tragédia, o Bode, e Macbeth


No “Laboratório de Humanidades” estamos terminando o ciclo Macbeth. Depois da trilogia “O Senhor dos Anéis” veio Shakespeare a me reconciliar com a concepção trágica da vida. Tragédia vem do grego “tragos” e significa bode, ou seja, viver a tragédia é estar no lugar do bode a caminho do sacrifício: o homem sem autonomia e que luta eternamente contra o destino, consciente de sua derrocada final.

Fatalista, pessimista, concepção trágica demais? Talvez. Mas, embora na vida diária seja importante acreditar que de algum modo venceremos no final, é também humanamente necessário que aceitemos nossas limitações, que encaremos o fato de que pouco na vida realmente está sob nosso controle, que viver é mesmo estar em contato permanente com essa fragilidade que somos. Então, ao contrário de cair no desencanto, encarar a tragédia na vida real ou por meio dos heróis das obras da literatura clássica, traz a ideia de que vale a pena continuar lutando contra o destino, de que essa luta por si só é a vida, e de que é pelos vitoriosos embates cotidianos que nos percebemos corajosos e aptos a enfrentar a vida com dignidade. A morte virá, é certo, mas até lá muito som e muita fúria agitará nossa sombra ambulante.

Agora falando de Macbeth, foi uma catarse. Li de uma tacada só. Ao terminar, após longa caminhada, tive anseios de escrever e teclei com toda lucidez. Veja o que escrevi, exatamente, no momento catártico:

Como o mago Gandalf, que para se tornar o cavaleiro branco precisou passar pelos abismos de fogo e pela escuridão das águas profundas, mergulhar em Macbeth e no seu reino de ambição, intriga, superstição e assassinatos também me iluminou. Foi por Macbeth que redescobri a miséria da escuridão. Foi por Macbeth que, paradoxalmente, me veio à luz essa compreensão: um mergulho nas profundezas mais vis revigoraria meu espírito a me revelar a vida real, diferente de um croqui cinza riscado sobre o papel, mas vida que é perspectiva e sombra, cor e volume.

Meio que por superstição fiquei habituado a uma leitura solar. Nada de pessimismo, desamparo e miséria. Tudo deveria afirmar. Nada remeter ao tormento, à dúvida, ao ressentimento. Milagrosamente tudo deveria me salvar do terror da finitude, do tempo que se acaba, da fraqueza. Hoje finalmente me libertei: vou com Macbeth e Rimbaud passar uma temporada no inferno.

Finalmente vejo o quanto essa minha negação do lado visceral e tenebroso da humanidade foi capaz de me desumanizar. Mesmo sem saber, de repente agi como Macbeth ao acreditar em vaticínios de bruxas e maus espíritos. É como se a maldição sobreviesse a mim se com a maldição eu tratasse, ainda que por meios solares, como a arte e a literatura. Passei então à covardia e ao receio de me ver outra vez rendido ao desencanto existencial que um dia tomou conta de mim quando li “A Náusea”, de Sartre.

Quanto a Sartre e os meus 20 anos, contarei depois essa louca iniciação. Também desvendarei o Laboratório de Humanidades.