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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre Deus e a Razão Metafísica

Este texto foi escrito para a disciplina "Visão Teológica" que cursei no semestre passado. Apesar do tema parecer difícil, nele se esconde uma simplicidade desconcertante. Aprendi e desaprendi muito nesta escrita. Quem se habilitar, leia e depois me conte o sabor das entrelinhas. Posso parecer bobo, eu sei. Posso parecer pretensioso, eu também sei. Mas se repelimos de nós a zona do não-entendimento afastamos com ela o gosto do Infinito.

Eis a pergunta que eu deveria responder:

Explique a razão pela qual a existência de Deus não pode ser considerada uma teoria meramente científica.

René Descartes (1596 - 1650) foi uma das personalidades históricas que mais contribuíram para o desmoronamento do mundo antigo, tanto que na filosofia suas teorias são consideradas fundadoras do pensamento moderno. Se nas ciências naturais tivemos nomes que abalaram sobremaneira a supremacia religiosa da Idade Média, Descartes, além de principiar as bases do método científico, representou ao mesmo tempo uma “ruptura e um ponto de partida” (Ferry, 2007). Ruptura porque examina, critica, duvida e rejeita todas e quaisquer crenças anteriores herdadas da família, da Igreja, da nação ou de qualquer outra autoridade estabelecida. De espírito completamente livre, determina-se “sujeito” autônomo, capaz de decidir por si só o que é verdadeiro ou falso. O ceticismo radical de Descartes o leva a considerar nada mais como certo, salvo que uma certeza resiste a tudo, aquela segundo a qual eu penso, e até duvido, por isso “eu” existo. “Penso, logo existo”, é dele a máxima célebre da filosofia moderna. Ponto de partida porque ao dizer que era “preciso saber fazer tábula rasa do passado” e decretar o “eu” como única instância confiável de existir estabelece um princípio novo nunca antes imaginado: o homem no centro do Universo, plenamente racional, substituindo o cosmos dos gregos e a divindade dos cristãos. Descartes funda a filosofia moderna, a filosofia do sujeito, o humanismo, o antropocentrismo, o homem e sua razão no centro de mundo, como um deus de si mesmo.

Bornheim (2008) assinala que a razão, segundo Descartes a concebera, seria a potência motora que permitiria ao homem subjugar o mundo. “E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser soberanamente livre, deveria considerar a razão como a essência do seu ser, derivando dela as normas de seu comportamento”. E mais, “o homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista”.

Mas como conceber que Descartes, que levava sua vida na França do século XVII, estudioso que certamente sacrificou os melhores anos de sua vida para pensar e escrever suas ideias, ainda que tão geniais quanto controversas, tivesse sido capaz de engendrar, fora dos domínios do poder e da religião, teorias que sozinhas, ao transcenderem o seu tempo histórico, revolucionassem gerações?

É por isso que se torna mais fácil compreender certos movimentos históricos quando os visualizamos como uma espécie de grande onda, não uma tsunami destruidora, mas uma marola lenta e persistente que ao longo de anos, décadas e séculos vai envolvendo tudo o que encontra. Imagino essa onda banhando as consciências da Europa daqueles tempos retirando da tradição o seu sentido e a sua razão. Creio que nessa inquietação foram arrastadas personalidades tão díspares e antagônicas como o próprio René Descartes (1596 - 1650), Blaise Pascal (1623 - 1662), Baruch Spinoza (1632 - 1677), John Locke (1632 - 1794), George Berkeley (1685 - 1753), Immanuel Kant (1724 - 1804), Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778), entre muitos outros, conhecidos e desconhecidos, gente do povo, artistas, políticos, nobres, reis e governantes, que mesmo não participando da mesma cosmovisão e dos mesmos ideais, contribuíram para a formação do mundo que conhecemos hoje, onde as certezas e a aceitação dogmática da verdade deram lugar à dúvida, o mundo fechado deu lugar ao infinito, a ordem e a autoridade deram lugar ao caos que para muitos resultou na absoluta falta de sentido. “Emancipados das crenças do ato da criação, da revelação e da condenação eterna, nós, humanos, nos encontramos sós, por nossa própria conta”, como assinalou Gotthold Lessing (1729 - 1781).

Um dos maiores males do homem moderno consiste exatamente no que decorre da chamada supremacia da razão. Essa função analítica e crítica, o bom senso cartesiano, que os homens desde o século XVII vinham depurando, foi sistematizada e generalizada pelo Iluminismo, que a tudo fez subordinar à crítica, transformando a razão, portanto, em valor supremo. “Não valem mais as coisas, e sim os objetos pensados; o mundo passa a ser o mundo do homem; Deus, o Deus do homem”. O direito, a moral, a arte, assim como a ciência e a filosofia, deveriam ser explicadas a partir da razão (Bornheim, 2008).

Tendo sido as amarras do saber as primeiras a sofrerem a ação libertária do Iluminismo, rapidamente surge no cenário do século XVIII a noção de que os valores da sociedade devessem ser submetidos necessariamente ao conhecimento. Decorre dessa nova maneira de valorizar o mundo o cientismo, que nasce da premissa de que tudo é passível de ser inteiramente desvendado e transformado pelo intelecto humano. Essa nova maneira de ver o mundo, que adota como critério de verdade a demonstração com base em cálculos matemáticos comprovados segundo a realidade empírica, tenta impor os métodos próprios às ciências naturais a todas as demais áreas de investigação, inclusive à filosofia, às ciências sociais e às humanidades. É importante ressaltar aqui que os termos cientismo e o cientificismo podem se confundir, embora ao cientificismo esteja normalmente associada à manipulação política da ciência. Assim, apesar da crise romântica no século XIX, que insurge contra os excessos da razão, ocorre no mundo moderno uma verdadeira sacralização da ciência.

Os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que deixaram marcas profundas no estudo da natureza (com o evolucionismo de Darwin) e da sociedade (com o positivismo de Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria (com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri) e mesmo na religião (com o kardecismo). Tais correntes procuravam romper com as explicações abstratas e metafísicas, buscando desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica. Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade. Idéias como estas encontraram ampla acolhida no Brasil, sobretudo entre os grupos urbanos. Afinal, para diversos setores da elite política e intelectual nativa, nosso jovem país precisava seguir, após a abolição da escravidão e a proclamação da República, os rumos do "progresso" e da "civilização" sinalizados pela Europa (Schmidt, 2001).

Não é preciso muito para demonstrar o quanto esse racionalismo desmedido reduz e empobrece a experiência humana, visto que a realidade é sempre muito mais entrelaçada, difusa e misteriosa. É praticamente impossível marcar com exatidão onde cada coisa começa e termina. A fronteira do certo e do errado. O início do prazer e do desespero. Enfim, insistir em posturas moralistas, racionais e reducionistas é apostar na infelicidade e na incompreensão.

As coisas todas pertencem a mais de uma categoria e podem ser classificadas de mais de um modo. As coisas podem mesmo pertencer a categorias contraditórias. Portanto, nem todas as descrições ou afirmações precisam ser inteiramente falsas ou inteiramente verdadeiras” (Teixeira Coelho, 2001).

Vivemos de sensações imprecisas. Gostamos mais ou menos de um filme, amamos sem saber ao certo o por quê, fruímos uma poesia, um romance, uma música, mas o que neles nos agrada é indeterminado. O que Teixeira Coelho (2001) esclarece é que “as fronteiras entre todas as coisas, ou, de todo modo, entre a maioria das coisas que dizem respeito ao ser humano em sua vida diária, são difusas. E, no entanto, continuamos a sermos treinados para acreditar no contrário”. Ele nos incita a “exercitar o pensamento do tipo prismático”, que é o perceber a vida múltipla, colorida, nevoada... não maniqueísta, não monocromática, não monocórdica.


A realidade que atravessa um prisma revela facetas tão precisas ou imprecisas quanto os feixes de cores em que se decompõe um raio de luz: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul... Onde se inicia o feixe vermelho, onde acaba o feixe laranja? A física poderá, talvez, dizê-lo com precisão - ou acredita que possa fazê-lo, para o que lhe interessa. Mas a precisão da física não me é significativa para a vida diária, para o mundo, para a cultura, para arte... (Teixeira Coelho, 2001).

O exercício do “pensamento prismático” é fundamental porque reflete a própria condição humana. Ver a realidade da vida sob um prisma é aprender a reconhecer não apenas diferenças, mas tonalidades, matizes e nuances dentro da própria diferença. Existem infinitas combinações de cores, infinitos tons de vermelho e, no entanto, cada um deles continua sendo vermelho.

Sócrates, na República de Platão, diz que o homem tem uma “alma que se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”. E é assim que chegamos à metafísica, um modo paradigmático de raciocínio não-científico que dialoga com o coração e, contraditoriamente, com o pensamento prismático, pois ao se dirigir ao Todo da experiência, o pensamento metafísico nunca subtrai a importância de suas partes. Aristóteles assim tratou a Metafísica:


Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma ciência particular, pois nenhuma outra ciência considera o ser enquanto ser em geral, mas, depois de ter delimitado uma parte dele, cada uma estuda as características dessa parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas.

Aristóteles ressalta que o objeto da metafísica é o “inteiro do ser”, enquanto as ciências particulares tratam das “partes específicas” do ser. A metafísica, portanto, diz respeito à essência e ao absoluto das coisas. Ainda segundo Aristóteles, “as categorias gerais que valem para o inteiro não coincidem com as que valem para as partes”; e ”as categorias que valem para as partes não podem ser estendidas completamente ao inteiro”. É por isso que Reale (2002) afirma que o grande erro da filosofia moderna e contemporânea foi ter assumido os métodos racionais das ciências particulares para a filosofia e, em especial, para a metafísica. Temos que pensar, portanto, que se há uma razão científica estabelecida, temos também uma razão metafísica, que quando não considerada deforma a ciência, visto que esta fica subtraída da noção do inteiro, perdendo sua consistência ontológica.

Sendo Deus o Absoluto, o Inteiro, o Uno, o que é simples e jamais composto, o Sentido transcendente que encontramos no horizonte de nossa experiência, que vai além das realidades finitas, corpóreas, imanentes, contingentes, passageiras e mutáveis, portanto objeto primeiro da metafísica, é fácil concluir o porquê de Deus não poder ser considerado uma hipótese meramente científica, já que a razão do método científico não é própria para abarcar o infinito, assim como não é própria para abarcar a verdade da beleza, da moral, da justiça, enfim, dessas categorias de coisas que não passam pelo crivo dos sentidos, que não possuem evidências empíricas, que estão além da matéria e, portanto, subjugadas a uma razão metafísica.

Porém, antes mesmo da razão metafísica, consideremos a questão do verdadeiro e da causa em Aristóteles:


Também é justo chamar a filosofia de ciência da verdade, porque o fim da ciência teórica é a verdade, ao passo que o fim da prática é a ação. De fato, os que têm por fim a ação, mesmo se observam o estado das coisas, não tendem ao conhecimento do que é eterno, mas só ao do que é relativo a determinada circunstância e num determinado momento. Ora, nós não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa. Mas qualquer coisa que possui em grau supremo a natureza que lhe é própria constitui a causa em virtude da qual também às outras convém a mesma natureza: por exemplo, o fogo é quente no grau máximo por ser a causa do calor das outras coisas. Portanto, o que é causa do ser verdadeiro das coisas que dele dependem deve ser mais verdadeiro que todas as outras. É pois necessário que as causas e os seres eternos sejam mais verdadeiros que todos os outros, pois eles não são verdadeiros só algumas vezes, e não há uma causa anterior para seu ser, mas são eles as causas do ser das outras coisas. Por conseguinte, cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser.

“Não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa”. Essa máxima aristotélica foi desenvolvida por São Tomás de Aquino (1225 - 1274) em sua Suma Teológica, quando descreve a 2ª via de demonstração da existência de Deus. Nessa obra, Tomás de Aquino ensina que “Deus é o princípio e o fim de todas as coisas” e que é possível provar Sua existência sem recorrer a argumentos religiosos ou dogmáticos, mas à luz da razão metafísica. São Tomás de Aquino propõe cinco vias de demonstração, assim sintetizadas:


1ª via - Primeiro Motor Imóvel: há que ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido, e um tal ser todos entendem que é Deus. O movimento aqui é considerado no sentido metafísico, isto é, passagem daquilo que pode vir a ser (potência) para o que a coisa é no momento (ato). Deus é ato puro e não sofre mudança.

2ª via - Causa Primeira ou Causa Eficiente: não se encontra algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio, o que é impossível. É necessário que haja uma Causa Primeira que por ninguém tenha sido causada. Essa Causa Incausada todos chamam Deus.

3ª via - Ser Necessário e Ser Contingente: existem seres contingentes, ou seja, que existem e depois deixam de existir. Todos os seres que existem no mundo são contingentes (desnecessários), mas há que ter um Ser Necessário (Deus), que sempre existiu, caso contrário algum dia o mundo não existiria. Do Nada Absoluto não surge e nem advém o Ser.

4ª via - Ser Perfeito e Causa da perfeição dos demais: há graus de perfeição nos seres, uns são mais perfeitos que outros. Há seres racionais, animais, vegetais e inanimados. Qualquer graduação pressupõe um parâmetro máximo, logo deve existir um ser que tenha esse padrão máximo de perfeição e é a Causa da perfeição dos demais.

5ª via - Inteligência Ordenadora: existe uma ordem admirável no universo. Toda ordem pressupõe uma inteligência ordenadora. Pelo acaso e pelo caos não se chega à ordem. Logo há um Ser Inteligente pelo qual todas as coisas são ordenadas a um fim e a Isso nós chamamos Deus.

Conclui-se que tudo o que existe está inserido numa série de causa e efeito, já que nada que observamos na natureza é capaz de se autoproduzir. Deus não pode fazer parte dessa série causal, pois, caso contrário, seria Ele também um efeito, o que, por sua vez, implicaria numa causa anterior. Há que se pensar que essa Primeira Causa, a Causa Incausada, é o que chamamos de Deus. Deus, portanto, está fora da série causal, logo não tem a mesma natureza dos seres que da série causal fazem parte. E é por isso que nós, seres contingentes, efeitos de uma série de causas infindáveis, somos privados da experiência sensível de Deus, pois Ele não é efeito, não é matéria da série causal, não é captado pelos nossos sentidos físicos e nem faz parte de nós, visto que se Dele tivéssemos uma ínfima parte, essa parte seria também matéria, o que é inconcebível.

Enfim, Deus não pode ser considerado uma teoria meramente científica porque não é empírico, não é sensível, não é material. É metafísico. Deus é o gosto do Infinito. Sentido e Causa. Eternidade e Vida.


Bibliografia (incompleta):

Ferry, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Fortes, L.R.S. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Guinsburg, J. (org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Todorov, T. O Espírito das Luzes. São Paulo: Editora Barcarolla, 2008.



Site Consultado:

Wikipédia - A Enciclopédia Livre. Existência de Deus: as cinco vias de São Tomás de Aquino. URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exist%C3%AAncia_de_Deus.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

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O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Mal-Estar da Minha Pós-Modernidade

Seu nome reverbera em mim sensações primevas. Som que ecoa em chiados de memória, microfonia, e o tom de protesto nos anos 60: E Viva Cacilda Becker!, gritou Caetano Veloso no Tuca. Mas Cacilda, surpreendida, nada entendeu.

Bem mais tarde, já nos 90, das paredes em preto e branco do Centro Cultura São Paulo, vejo em exposição a figura enigmática dessa mulher de aura mítica, cuja imagem ainda flutua nebulosa em nosso imaginário: afinal quem foi Cacilda Becker?

Em 2002 li “Fúria Santa”, uma biografia da atriz que morreu há exatamente 40 anos após sofrer derrame cerebral, no palco, enquanto encenava “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Da infância miserável em São Paulo ao estrelato: foram mais de 80 peças, dezenas de teleteatros ao vivo, alguns poucos filmes e novelas, e a grandeza de uma mulher de voz pequena e anasalada, magra, muito magra, mas que mesmo assim dominava a platéia de forma irresistível. “O que é preciso deixar claro para a geração de hoje é que Cacilda não ficou grande depois que morreu, como acontece com a maioria dos mitos. Já era um mito em vida”, ouvi de Boris Casoy, nas páginas do livro.

Por isso recomendo “Fúria Santa” aos amigos. E por que não recomendaria? Sim, recomendo, ainda que confesse meu grande mal-estar: numa espécie de esgotamento disfarçado, eu seguia encantado e sofria escondido. Sofri, juro que sofri bem devagarzinho. Abandonei a leitura antes do capítulo final porque tudo aquilo era demais para mim. Ler a morte de Cacilda era como ver morrer em mim toda esperança de uma vida significativa. Cacilda era fascinante. Insuportável.

Tanta certeza. Tanto significado. Cacilda sabia e sempre soube. Cacilda era. Não havia dúvida naquela mulher, de pura vocação. Sem meias palavras, fiquei com INVEJA de Cacilda Becker. E passei a viver em crise, uma crise de sentido: eu haveria de alcançar a existência dos não-medíocres, dos bem-sucedidos, essa tal inclinação que a tudo torna significativo e transbordante.

De início fiquei paralisado no sentimento, que eu ainda não reconhecia como tal. Era uma ânsia, uma mera insatisfação, uma vontade. Sobrevieram questões típicas como “o que fazer”, “por que eu, afinal”, “ah, a felicidade...”. Depois o aforismo de Nietzsche, “Quem tem por que viver aguenta quase todo como”. E, então, uma sedutora determinação de procura, e as tangências do encontro.

Não foi, portanto, a INVEJA que me salvou?

A religião já se me tornara nostálgica demais. A metafísica e a transcendência, por não se deitarem nesse mundo, de pouco me serviriam. E o que seria afinal o mal-estar da pós-modernidade? Pressenti aí a salvação: eu precisava compreender o contemporâneo para nele me incluir.

Fui didático. Puxei e prendi a corda do tempo na Antiguidade. De comentador em comentador, um pouco de Sócrates, Epicuro, Sêneca. Afrouxando, Montaigne, Schopenhauer, Nietzsche. O iluminismo, o progresso, a perfectibilidade. Por fim, Zygmunt Bauman e a “Modernidade Líquida”. Seria “tomar o paraíso de um só golpe” percorrer agora toda essa aventura, e ainda por cima me detalhar nos males da contemporaneidade. Além do que, sendo exatamente esse é o sabor do blog: “o gosto do infinito”, certamente muito desses pratos serão servidos aqui.

Mas além de Cacilda, o fermento do meu bolo de chocolate, outras especiarias realçaram o sabor: Alice, o gato, e Osho.

Foi o gato de “Alice no País das Maravilhas” que me alertou para o óbvio: “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”. Serviu de ajuste de foco. Também é do livro de Lewis Carroll a passagem redentora:

“Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso”.

Vejo tanta correria, tanta competição, tanto estresse. E o perigo que ronda: estar ultrapassado; ser descartado. O que resta senão correr desesperadamente em busca do sucesso? No entanto, apesar do esforço sobre-humano para vencer, poucos são os que de fato saem do lugar. Foi assim que deixei de me sentir o perdedor, aquele que está sempre girando em torno da roda, mas que de fato nunca se vê inserido nela. Fui absolvido. A ciranda que girasse sozinha. Eu teria agora uma vida absolutamente comum.

Naturalmente muitos devem dizer que esse meu aparente desprezo pelo sucesso é sintomático do meu fracasso, das minhas covardias, e, principalmente, da minha falta de talento em geral. Sob um certo olhar, sim, já que sou humano. Mas sob um olhar mais generoso, não significa desprezo, nem fuga, mas senso de realidade e inteligência para perceber outras possibilidades de felicidade e realização que necessariamente não passem pela visibilidade e mensurabilidade da vida.

E aqui necessariamente chego às palavras de Osho:

A sociedade dá às pessoas, de muitas maneiras, a sensação de que elas são “extraordinárias”. Por isso é muito difícil não encontrar uma pessoa que, lá no fundo, não acredite que é especial, o filho único de Deus.

A pessoa comum é a pessoa natural. A natureza não produz pessoas especiais. Ela produz pessoas únicas, mas não especiais. Todo mundo é único à sua própria maneira.

Ser comum é a coisa mais extraordinária deste mundo. Basta olhar para você. Dói muito, é doloroso aceitar que você não é extraordinário. Então observe o que acontece quando você aceita a ideia de que é comum. Um grande peso sai dos seus ombros. De repente, você está num espaço aberto, natural, simplesmente do jeito que você é.

As pessoas são únicas, incomparáveis. Elas não podem ser comparadas, então como você pode dizer quem é inferior e quem é superior? A margarida é inferior à rosa? Como você vai decidir? Elas são únicas em sua individualidade. Toda a existência só produz pessoas únicas; ela não acredita em cópias.

Eu defendo a unicidade do ser humano. Sim, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser ela mesma. Em outras palavras, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser desigual, de ser única.

E foi assim, na crise da minha pós-modernidade, justamente quando me compreendi singular e pessoa comum, que o infinito em mim estremeceu e o horizonte gritou: viva a rotina, vida Adélia Prado. Mas essa é uma outra longa história.


E Viva Cacilda Becker: sobre o grito de Caetano Veloso

Em setembro de 1968, em tempos de ditadura militar, justamente quando Cacilda Becker era excluída da TV Bandeirantes por pressão da Censura Federal, ocorria a fase nacional do III FIC - Festival Internacional da Canção, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo.

Nos festivais de música, a arma de combate era a “festivaia”, uma vaia ensurdecedora acompanhada de tomates, ovos e qualquer outro objeto à mão. No dia 28 de setembro, o alvo era Caetano Veloso, que se apresentava na fase semifinal com a marchinha pop “É Proibido Proibir”. O uso de guitarra, símbolo do imperialismo ianque e a letra de sabor anarquista soaram acintosos para a plateia estudantil presente. Caetano estava consciente da provocação que fazia ao entrar no palco. Não conseguiu ultrapassar os primeiros versos: o público, em delírio, vaiou furiosamente. Caetano revidou: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada... Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais a quem? Àqueles que foram ao “Roda-Viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles; vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse viva aqui; não tem nada a ver com vocês”.

Caetano não tinha qualquer relação – pessoal ou profissional – com Cacilda. Seu brado em favor da atriz, por conta das perseguições que ela vinha sofrendo da Censura, surgiu de maneira que nem mesmo ele explica exatamente por quê: “Só vi Cacilda atuando uma vez. Foi em “Quem tem Medo de Virgínia Woolf?”, em 1965 ou 1966. [...] Eu sei que dizer aquilo era uma homenagem. Eu não achava que fosse ter maiores repercussões. Talvez dizer aquilo desnorteasse as pessoas que estavam lá”, afirma Caetano.



Livros citados:
Prado, Luis André. Cacilda Becker: Fúria Santa. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

Osho. O Livro da Sua Vida: crie seu próprio caminho para a liberdade. São Paulo: Cultrix, 2007.

Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Apelo da Alma: Epiteto

Filosofia virou exemplo de reflexões abstratas e textos herméticos. No livro “Novas Vitaminas Filosófica”, Theo Roos a descreve, não a Filosofia em si, mas esta tal qual a compreendemos hoje, como “disciplina aparentemente analítica, conceitual, acadêmica, geralmente abstrata e autoreferente, com pouco ou nada a dizer sobre o mundo real, prático, cotidiano”. “Especular em vez de existir”, esse é o comentário do filósofo dinamarquês Soren Kiekegaar (1813 - 1856) sobre tal concepção da Filosofia.

No entanto, na antiguidade clássica, filosofia e prática eram indissociáveis, pois o conhecimento estava necessariamente ligado à ascese, ou seja, ao exercitar-se. Entendia-se, portanto, que a “arte de viver bem” é uma prática ou um “cuidado de si mesmo”. Mas o que seria esse “cuidar” de “si mesmo”? Na concepção de Sócrates seria o “conhece-te a ti mesmo”, o ocupar-se da própria alma.

Para Epíteto, ex-escravo romano e filósofo estóico que nasceu por volta de 55 d.C, “a principal tarefa da filosofia é responder ao apelo da alma. É procurar compreender o sentido de nossas dores e medos e, assim, nos libertar da sua influência”. Epíteto acreditava que a meta principal da filosofia era ajudar as pessoas comuns a enfrentar positivamente os desafios do cotidiano e a lidar com as inevitáveis perdas, decepções e mágoas da vida.

“Quando a alma grita seu apelo”, disse Epíteto, “é sinal de que chegamos a um estágio necessário e maduro de reflexão sobre nós mesmos. O segredo é não ficar bloqueado nesse ponto, perturbado, torcendo as mãos, mas ir em frente decidido a curar a própria vida. O que a filosofia nos pede é uma opção pela coragem. Seu remédio é expor, sem hesitar, inflexível e obstinadamente, as premissas falsas e enganadoras nas quais baseamos nossas vidas e nossa identidade”.

Então, seria a Filosofia uma espécie refinada de autoajuda?

Se for, pouco importa. Mas na tentativa de elucidar a questão, não vou falar por mim mesmo, vou continuar citando o mestre estóico com um recorte do seu texto intitulado “O verdadeiro propósito da Filosofia”. Viva Epiteto!

O propósito da filosofia é iluminar os caminhos da alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignas de nós. O principal antídoto a tudo isso é um autoexame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria também pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.

A habilidade no uso da lógica e do debate e o desenvolvimento da capacidade de definir as coisas com seus nomes certos são alguns instrumentos que a filosofia nos oferece para alcançar a clareza de visão e a tranquilidade interior que constituem a felicidade verdadeira.

Essa felicidade, que é nossa meta, deve ser corretamente entendida. A felicidade costuma ser confundida com prazer ou lazer experimentados passivamente. Este conceito de felicidade só é bom até certo ponto. O único e precioso objetivo de todos os nossos esforços é uma vida em expansão no caminho da plenitude.

A verdadeira felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. A vida em expansão, cuja base é a intenção de buscar a virtude, é algo que improvisamos continuamente, que construímos a cada momento. Ao fazê-lo, nossa alma amadurece. Nossa vida tem utilidade para nós mesmos e para as pessoas que tocamos.


Citei aqui dois livros que li recentemente e que foram muito importantes pra mim no entendimento que tenho hoje sobre Filosofia. São eles:

Ross, Theo. Novas Vitaminas Filosóficas: receitas para uma boa vida. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

Epíteto. A arte de viver: uma nova interpretação de Sharon Lebell. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.