quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Próprio de Mim

24 dias lendo “Os Demônios” de Dostoiévski. Enluarado, ontem caminhei à noite ruminando... E me lembrei de Lady Macbeth. Por que será que certo tipo de maldade tanto me encanta? Em “Os Demônios”, é Nikolai Stavróguin quem mais me seduz. Vou defender a sua maldade até o fim, eu sei.

Amanhã terá início o Ciclo 2010 do Laboratório de Humanidades. Na pauta, Varvara, Stiepan, Piotr, Kiríllov, Chatóv, Nikolai... Quantas histórias, quantas “almas indesencorajadas”, “resolutas indo à luta”, embora eu saiba que Piotr Stiepánovitch é apenas um patife. E patife é também Nikolai, mas de uma patifaria sedutora. E eu me pergunto, por que a crueldade de Nikolai Stavróguin é outra? O que o difere dos demais demônios, se maldade é sempre maldade?

Assim, retomo hoje “O Gosto do Infinito”. As 697 páginas de Dostoievski eu vivi em fevereiro. Em janeiro eu nada li, tampouco fiquei à toa. Na verdade passei as férias tecendo argumentos: escrevi mais de quarenta páginas intituladas “Da Ruptura à Flor Azul da Humanização”. E muito disso eu pretendo incluir aqui. Por enquanto, somente o prólogo, pois preciso parar e pensar. Pensar sobre “Os Demônios”.

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O que é próprio do homem?

Tal pergunta assim indagada, aparentemente feita ao acaso, ainda ressoa em mim seus anseios de resposta. O que é próprio de mim? Talvez se eu me dedicasse a sintetizar historiofilosoficamente tudo o que já foi pensado sobre o homem eu chegasse a uma solução. Ou se voltasse a atenção completamente para minha interioridade. Sempre ouvimos falar que próprio do homem é a sua racionalidade. Outros enfatizam o sentimento. Um ser em busca de sentido. Em busca de prazer. De poder. Um ser dotado de palavra. Rousseau enfatizou no homem a sua liberdade, uma vez que ele foi capaz de escapar da programação dos instintos. Marx teria afirmado a nossa capacidade de produzir meios de sobrevivência. Então vamos dizer que o homem é tudo isso, e algo mais, além da necessidade, creio, imensa de criar, recriar, transcriar, pois somos seres inconformados pela finitude de nossos dias e ansiamos, sobretudo, pela salvação, sendo que, na pior das hipóteses, nos conformamos em deixar a nossa marca no mundo.

Fico assim pensando porque nunca deixo de sentir certo estranhamento pelo termo “humanização”. Humanização aplicada ao próprio homem. Estaríamos nós nos tornando menos humanos? No entanto, basta um olhar mais apurado que exemplos gritantes de “desumanização” surgem em nossa sociedade moderna, contemporânea.

Ruschel (2009), em artigo intitulado “O Reino dos Struldbruggs”, descreve o anticlímax que vem acontecendo nas relações de trabalho. No mundo corporativo, onde a urgência em tornar uma empresa competitiva assume cada vez mais condição de sobrevivência, há casos em que os gestores insistem em impor regras e modelos ao comportamento humano, por meio de manuais que acabam se transformando em verdadeiras armadilhas. Na intenção de uniformizar os processos e ganhar em eficácia, os dirigentes tentam, por exemplo, infundir a ilusão do pensamento único. Acontece que para implementar tais ferramentas, muitas organizações acabam por exercer enorme pressão junto aos empregados. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se frios, temerosos, caracterizados pelo medo de expor qualquer posição que fuja da visão oficial. Então trabalhadores se vêem transformados em robôs, cuja imaginação, criatividade e paixão pelo trabalho desaparecem. É o que o etnólogo francês Marc Auge chama de “não lugares”, ou seja, “ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que as cercam”.

E é nesse contexto que surgem os projetos de humanização tão em voga, numa tentativa de remediar a crescente desumanização, essa “patologia crônica da Modernidade”, mas cujos resultados frequentemente têm-se mostrado frustrantes e ineficazes. A maioria dessas iniciativas encontra-se embasada em pressupostos superficiais, focadas mais na aparência que no conteúdo, mais na infraestrutura que no sentimento, mais no treinamento que na essência. Humanizar não é uma questão de disfarce, de ajuste, mas requer comprometimento e vontade.

Tais projetos são na verdade “meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade” que tenta excluir do homem o transcendente e com ele “o não controlável, o não dominável, o não utilizável” (Gallian, 2009), tudo em nome da Razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser. Mas como homem é homem e não máquina, não somos passíveis de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução.

Percebo, portanto, o quanto nós, indivíduos, somos comprometidos com a humanidade: não me sinto livre, desvinculado, pronto a reinventar o mundo a partir de agora. O que ficou para trás não faz parte somente do âmbito da morte, porque somos reflexos de um construto humano. Há um traço que me une historicamente à ancestralidade. Compreender o que sou, o que quero, conhecer meus medos e desejos, assumir fraquezas e enfrentar desafios, são questões que além de subjetivas, psicológicas ou até mesmo transcendentes, passam necessariamente à esfera do humanamente histórico.

Por isso acredito na urgência de reforçar o traçado e construir a ponte. Para tanto não se faz necessário chegar à Pré-História. Tampouco à Antiguidade Clássica, embora fosse mais que desejável. Vou ficar aqui mesmo, na Modernidade, e passear pelo Século das Luzes, pela crise romântica, pelo medo da ciência e da vida racional. Então estaremos eu e você, homens e mulheres contemporâneos, cada qual com seus desafios, agora identificados como agentes e sujeitos da História, minimamente conscientes dos pressupostos ideológicos, filosóficos e antropológicos que até aqui nortearam a nossa civilização moderna.

Resta, por fim, saber se depois dessa empreitada estaremos mais aptos a escolher a vida que realmente queremos viver. O que em última instância determina nossas preferências? Nossas escolhas partem mais da razão ou do coração?

Gostaria de entregar às entrelinhas qualquer sugestão. Por outro lado, mesmo assumindo riscos, garanto que a qualidade de minhas escolhas melhorou muito depois que marquei o vinco da História e da Filosofia. Identifico em mim as mesmas aflições abissais que o remoto Empédocles possuía. O “demônio” de Sócrates também fala em mim, assim como o hedonismo mal compreendido de Epicuro ou a resignação estóica de Sêneca. Poderia procurar em Montaigne, em Schopenhauer ou em Nietzsche tudo o que sou. O poeta Baudelaire, na efervescente Paris do século XIX, sou eu perambulando por São Paulo em meados do século XXI. Tudo isso sem confessar que tanto o perfeccionismo classicista como a mística exaltação romântica disputam espaço incontestável em minha personalidade: é nesse imenso escaninho poético da Literatura, da Arte, da Filosofia e da História, enfim, das Humanidades, e suas produções “demasiadamente humanas”, que eu me reconheço, me consolo e vislumbro possibilidades de ação e reação.


Referência Bibliográfica:

Gallian, D.M.C. Forças Humanizadoras e Desumanizadoras. Palestra proferida no Curso de Pós-Graduação “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades. Unifesp-EPM, em 13/10/2009.

Ruschel, R. O Reino dos Struldbruggs. Brasileiros. Revista Mensal de Reportagens, nº 27, outubro de 2009.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A Festa da Poesia

“Experimento, logo existo”: ouvi a paráfrase no “Café Filosófico” da TV Cultura. Estavam lá Viviane Mosé, psicanalista e filósofa, e o terapeuta corporal Nelson Lucero, que juntos discutiam o poder dos afetos. Meus domingos à noite têm sido assim: o finzinho do Fantástico e alguma filosofia.

Embora estivesse sonolento, não me esqueço quando eles disseram que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”. E mais, “eu só tenho acesso à experiência do outro por meio de sua expressão”. E que “o pensamento puramente racional impede os afetos, impedindo de criar”. Nossa! Eu poderia me perder por aqui...

Mas o que eu queria mesmo dizer era que hoje estive mexendo em papéis velhos. E achei algumas poesias antigas, minhas, de uma época em que eu vivia seguindo Adélia Prado. É verdade: eu e o Marcelo íamos juntos onde ela estivesse em São Paulo. Tenho fotos em preto e branco e tudo. Na época eu havia comprado aquele livro verde e roxo, “Poesia Reunida”, que ela me autografou, enquanto conversávamos sobre trem de ferro, Divinópolis, Minas Gerais... “Só faltou tirar o terço e rezar”, ironizou o Marcelo morto de inveja, porque ele é o maior adorador da Adélia. Sabe seus poemas de cor.

No meu livro ela escreveu:

“Para o Licurgo desejando-lhe a festa da Poesia.
Com Carinho, Adélia Prado”.

Voltando aos papéis velhos, li os poemas e senti aquela natural pontinha de vergonha. E notei que escrevo poesia em primeira pessoa. “Bem que eu podia deixar de ser tão confessional”, reclamei. Mas agora, lembrando do Nelson Lucero, que “a experiência é sempre singular, sempre de primeira pessoa”, senti orgulho da minha pequena criação. Se elas são boas ou não, que importa, mas sei que são criações explosivas de “afetos” verdadeiros.

Enfim, tímido, publico duas:



TÊNUE ESTAMPA

Gostava tanto daquela saia de lã...
O pai, de tão magro, parece um gato...
Disse ela mirando as fotos nos binóculos da juventude,
como de quem escapava um pensamento.

Eis minha mãe.
Eis o tempo.
Pude percebê-los em gema de cristal.
Ele passara e da saia de lã restava apenas a tênue estampa.

Que saudades dessa mulher que não me lembro.
Se pudesse lhe devolveria as cores vivas
de quando eu nem havia nascido,
a presenteá-la com o tempo,
essa variável sem acordos,
que desbota os tecidos,
amarela os papéis,
mas não lhes tira a marca d'água.


O tempo apaga o retrato,
vinca a memória,
resseca os intestinos,
mas não desfaz o encantamento:
somos todos “cada um”.

Só então pude perceber:
há um pedaço da minha mãe que não se curva.
Invulnerável, alheio, nascido.
Morrerá com ela,
Indestrutível em minha memória.

BEATICE

Qualquer suavidade é sempre rogada
- suplico a calmaria, a expressão exata, o gesto preciso -
Que sou dos secos.

Mas hoje não vou sem um arroubo,
sem a prática que me alivia:
- uma cega alimentava o filho às escuras!

Quis trazê-la ao colo,
a soprar seus os olhos no ímpeto de avivá-los.
Por ela fiquei santo,
- Santo Deus nas alturas! -
a ponto de arrebatar as pessoas inteiras.

Quem então enxergava os grãos de bico?

A cega, de grão em grão, separava-os cismada.
Mas quando a vida não basta, não basta.
No metrô, os “entendidos” entreolhavam-se com ousadia!
A avó de um amigo está no morre não morre.
“Nesse estabelecimento não se fuma”, anunciava o cartaz.

Nas ruas, uma gente e suas estampas
cinzas a tempestear a calmaria dos dias.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desvios e Estridências

Eu, e esse meu elã exagerado, declaro ter lido na semana passada um dos grandes livros da minha vida, “O Romantismo” de J. Guinsburg. Diria o melhor sem grandes pudores se ainda hoje não tivesse terminado “O Espírito das Luzes” de Tudorov. Sou como aqueles artistas que sempre elege a obra atual sua melhor performance.

Ah, embora não pareça, estou tentando conter meu entusiasmo, já que em excesso as coisas tendem mesmo a se anular: a crítica quando excessiva mata a própria crítica; a informação quando demais sufoca a própria informação. E por não suportar que a empolgação da minha prosa por vezes poética invalide meu entusiasmo e minha vitalidade, a contenção é o que me resta.

Montaigne, nos Ensaios, recomenda que é preciso saber alternar momentos de leitura com os de reflexão e escrita: se nos últimos quinze dias eu nada escrevi, ao menos li dois calhamaços cujas paisagens invadiram meus dias agora nunca mais monótonos. Mas estou cheio de medo: como dar conta de tudo o que sei ou penso que sei? Por isso resolvi simplesmente me desobrigar da escrita, sabendo que a qualquer hora seguirei os instintos do mestre ensaísta.

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Voltando ao Laboratório de Humanidades, fui outra vez solicitado a pensar sobre ele e escrever, numa espécie de prova, sobre suas repercussões. Pode não parecer, mas o LabHum é um curso de pós-graduação, o que exige certas obrigações - embora eu nem seja aluno pós-graduando. Enfim, embora o tema pareça repetitivo, não o é. O texto é muito mais revelador do que eu mesmo teria pretendido. Ele se fez assim, saiu assim, e eu nada pude fazer. Eis a minha pequena redação:

Mentalmente fico elaborando estratégias que eu usaria caso um pesquisador me pedisse para narrar a história da minha vida. O roteiro básico, eu sei, não comoveria ninguém. Mas se um entrevistador experiente fiasse do meu olhar certos desvios e dos silêncios desfizesse as estridências, a espontânea premeditação escorreria em líquido espesso. Então eu teria que me transcriar num instante e mentir contando certas verdades. Sabe como é, cada um inventa a sua verdade como pode. Mas voltando às estratégias, penso que, se o roteirizar a própria vida é um exercício de pontuar momentos categóricos, saber que se está em um desses existires decisivos é em si viver plenamente. E eu estou vivendo 2009 em si. Por isso falo sobre o Laboratório de Humanidades, essa experiência crucial.

Faz uns dois anos que vi num cartaz a novidade. Creio que na época liam Ana Karenina. Fiquei meio interessado, mas como vivia desestimulado naqueles dias, deixei planar no céu das coisas pretendidas, adiadas e por vezes esquecidas. Meses, anos se passaram quando finalmente, numa conversa casual fiquei sabendo dos cursos de Filosofia que eram ministrados na Escola Paulista. Dessa vez algo se fez diferente: era o sinal do agora.

O ano de 2008 fora atípico pra mim. Novamente passara a frequentar as livrarias da cidade e a desejar seus livros, especialmente os que se relacionassem à história do pensamento filosófico. Tudo começou quando emprestei da Neusa “Juliano”[1] e “O Mundo de Sofia”[2]. Depois comprei “Novas Vitaminas Filosófica”[3], que traz a sabedoria clássica para os dias de hoje, no sentido de resgatar, por meio da Filosofia, o autocuidado e a arte de viver bem. Desde então vivo a avalanche de um assunto que puxa o outro, de uma matéria que se remete a outra: um filósofo, um escritor, um poeta novo a cada dia.

Nessa efervescência fui à secretaria do CeHFi a fim de participar do Laboratório de Humanidade, além de solicitar, com toda humildade de um funcionário distante das atividades acadêmicas da Universidade, a possibilidade de ser aluno ouvinte, ou especial, da disciplina de pós-graduação que se anunciava: “Humanização e Desumanização: Entre as Ciências e as Humanidades”. Infelizmente me disseram que haviam muitos alunos inscritos, o anfiteatro era pequeno etc e tal. Mas mesmo assim deixei meu contato, entrei em uma fila de espera, quando finalmente a Da. Mercedes veio com a boa notícia de que eu havia sido plenamente aceito.

Antes de falar do LabHum e da sua repercussão em mim, preciso fazer um brevíssimo relato da minha trajetória na Escola. História estritamente profissional. Friso porque os fatos pessoais desenrolados aqui são inconfessáveis, pelo menos assim, nesse formato. Bem, ingressei, por meio de um concurso público, em 1985: Assistente Administrativo, uma espécie de secretário da disciplina em que trabalho. Era também estudante de Jornalismo. Aos poucos fui me envolvendo com o laboratório de fotografia do setor, assumindo o mesmo em meados de 90, quando prestei novo concurso público e ingressei na carreira de nível superior.

Mas depois de 2000, o setor em que trabalho estagnou e por fim deslizou a rampa da decadência. Fiquei mais que ocioso. Tentei uma transferência, que não consegui. Tentei outra vez, em vão. Sem nada para fazer de estimulante, sem estar engajado em nenhum projeto importante ou desimportante, permaneço até hoje. De início fiquei frustrado. Até que em 2008, no afã de leituras e descobertas, assumi o ócio feliz. Tenho algumas obrigações, cumpro meu tédio diário, me dissolvo no tempo e me entrego a um bom livro.

Por isso digo que cheguei ao Laboratório de Humanidades profissionalmente vazio, mas pessoal e intelectualmente repleto. E lá reencontrei a literatura e seu poder humanizador. No contato com o grupo, no partilhar das emoções de cada um, na percepção das diferentes leituras de uma mesma história, nas identificações e rejeições com circunstâncias e personagens, o poder transformador do LabHum foi se insinuando. Quase terapeuticamente fui me redefinindo, me reconhecendo distinto, com maneiras e reações singulares aos estímulos literários, poéticos e filosóficos. A cada encontro, algo novo explodia em mim.

Numa dessas explosões, era sexta-feira à tarde, quero dizer, logo após o encontro semanal do LabHum, eu completamente envolvido pela trama e o sangue de Macbeth, parei no meio da rua quando rápida e ansiosamente escrevi, com medo de que me escapassem as palavras, toda iluminação que o texto clássico e teatral fora capaz de me provocar. Eu novamente era um homem extravagante, capaz de ser mal, ambicioso e sórdido. Eu não era mais feito de palha.

Foi assim que entendi que no meu caso a informação e a experiência não se bastam, que elas nada são se não elaboradas na escrita. É no escrever o que sinto, sobre o que penso que aprendi, que a informação se cristaliza não só em conhecimento, mas em reconhecimento de mim. Por isso, numa ousadia criei “O Gosto do Infinito”. Nele tenho registrado minhas descobertas intelectuais, experiências de leituras e os acontecimentos interpelativos estimulados pela poeticidade da vida e pelo Laboratório de Humanidades.

Se o LabHum tem sido uma força humanizadora na minha vida pessoal e profissional? Certamente que sim, sobretudo porque, além do vasto repertório de tramas e personagens, cada qual com suas singularidades e circunstâncias tipicamente humanas, tenho a oportunidade, no próprio grupo de pessoas que compõe o Laboratório, de encarar o outro não mais virtualmente - como na literatura - mas de percebê-lo enquanto ser que é real, que sente ou não como eu, que tem experiências diversas ou tão iguais às minhas, que me irrita ou me comove, não importa, mas que em sua grandeza ou fragilidade é tão-somente um ser humano, como eu, em luta.


Para terminar, um poema de Walt Whitman que o Fábio escreveu pra mim num lindo cartão. Quando li pensei nele aqui, culminando o meu post.


VIDA

Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



[1] Juliano, de Gore Vidal.
[2] O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder.
[3] Novas Vitaminas Filosóficas, de Theo Ross.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Em Zona de Tangência

O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério - Face a face...
(O Mistério do Mundo - Fernando Pessoa)


Mestres, poetas, filósofos, bruxos! Alguém que se apresente. Todos vocês, feiticeiros em geral, me arrastem que eu quero estar como Empédocles (1) à beira da cratera. Tenho em mim o imenso desejo de cair: anseio a epifania, o sagrado, o gosto do infinito.

Ah, o mistério! “Ele é a vida e a morte”. “Paro à beira de mim e me debruço... Abismo... E nesse abismo o Universo” (2). Foi o Rafael (3) que me insinuou esse Fernando Pessoa abissal. E que também me disse que as “verdades são epifânicas”. Juro, se eu não fosse tão afeito às agudezas da vida, teria sido arrebatado. Mas como posso decifrar esse mistério? Vou apenas desenhar aqui uma fina brecha por onde penetre ao menos um filete de luz.

Epifania é o afeto condensado ao limite da explosão: arrebatamento de amor, de piedade. É aparição ou manifestação divina. Revelação súbita da verdade que aplaca a razão e traz à tona a inteireza das coisas do coração.

Sabe quando você se depara com uma pessoa na rua, olha para ela, talvez em farrapos, e uma beleza injustificada salta daquele ser, seu coração soa mais alto, uma ternura invade a cena? Então você compreende tudo e enxerga naquela figura sua real nobreza, ao mesmo tempo em que o entorno desaparece, o momento se faz distinto, o peito infla de presença divina. Acontece em segundos, mas pode revelar o eterno. Isso é epifania.

Normalmente acontece em situações banais e pelos objetos mais prosaicos. Ou quando se está sensibilizado pela arte, pela literatura, pela música, na contemplação da natureza. De repente, um desarranjo na crosta que somos faz irromper o inesperado: o precipício que se abre e de onde emerge o que temos de mais oculto. Tudo o que é desvio, obscuro e sinistro desaparece. Tudo o que é perfeito, iluminado e belo desvanece. Não existe o bem, não existe o mal. Ali, na cratera de nós, não há divisão. Nasce a porção maior do prazer, o gosto do infinito.

E como já disse no texto inaugural desse blog, uma vez experimentado o infinito, por ele perseguimos a vida. Instaura-se, então, a grande busca, ainda que nem sempre encontremos um fim. A “busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar” (4). Seja como for, o que se busca são esses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”, nas palavras de Michel Leiris (5), poeta e ensaísta francês.

“Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem à obscuridade lodacenta donde haviam emergido”.

“Lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Michel Leiris, no ensaio “O Espelho da Tauromaquia”, explora essa tangência, associando-a primeiro às touradas, depois à arte, à poesia moderna, ao erotismo. O conceito é complexo, a prosa é poética. Roberto Alves, mestre que na Casa das Rosas me apresentou ao ensaio, colheu uma frase do texto escrevendo-a no quadro, em forma de pista:

“... a condição essencial da Beleza está num descompasso, num desvio, numa dissonância”.

Oh Deus imanente, clareia. Oh Deus transcendente, dai-me as palavras dessa compreensão. Oh poeta moderno, Baudelaire, que na grande arte proclama uma metade transitória, fugidia, e na outra metade o eterno, o imutável, salvai-me dessa aflição tangente!

Michel Leiris foi genial no refinamento dessa concepção do poeta, quando determina uma região de experiência privilegiada onde o homem confronta - tangencia - o mundo e a si mesmo. Essa zona de tangência se dá quando um elemento reto (o eterno) está lado a lado disposto a um elemento torto (o transitório), num íntimo contato. Mas não há mistura, apenas insinuação de um no outro, numa quase troca de posição e de fluídos. Creio que é nessa zona de tangência que se dá a criação artística. É nela que grandes e pequenas epifania podem acontecer, e a verdade ser revelada, e uma voragem nos arrastar às profundezas clarificantes de nós mesmos.

As touradas, as tragédias, o erotismo genital, a grande arte, são regiões onde invariavelmente encontramos esse atrito, essa coincidência de contrários como motor da estética moderna: uma metade reta e outra torta, uma bela e outra feia. Um lado sol e um lado sombra. Gotas de virtude e vício, união e separação, acumulação e dissipação, contração e relaxamento. Enfim, são nessas situações nada triviais, em que elementos em contraste, dispostos sob efeito de tensão e perigo, nos colocam em condições de extrair mais facilmente o “eterno do transitório” de Baudelaire, ou as “verdades epifânicas” do Rafael.

No exemplo epifânico, quando o maltrapilho desperta o acontecimento pungente, certamente foi o conflito entre algum elemento reto e virtuoso, em contraste com sua condição torta e miserável, o estopim e o combustível da própria epifania. Na poesia de Baudelaire e nas mais tocantes obras de arte há sempre de haver uma gota de veneno a perturbar a virtude, do mesmo modo como uma pitada de virtude haverá sempre de desestabilizar o vício a torná-lo misteriosamente encantador.

Embora epifania e arte sejam coisas distintas e não exista entre elas uma relação necessária de causa e efeito - a arte nem sempre provoca a epifania e essa acontece a despeito de qualquer manifestação artística - não se pode negar o poder sensibilizador da arte, tampouco deixar de reconhecer a superioridade das obras que nascem nessa zona de tensão, onde mais facilmente podemos ver espelhada nossa vulnerável condição humana.

Dentre os autores da nossa literatura, Clarice Lispector é certamente a escritora que mais construiu narrativas epifânicas. Tanto sua escrita é provocadora em nós, leitores, de tais experiências, quanto seus personagens são constantemente arrebatados por elas. A epifania, em Clarice, é o corte abrupto, o ritual de passagem que transvalora uma existência engessada na rotina e na trivialidade da vida.

Em “Perto do Coração Selvagem” (6), seu romance de estreia, Clarice descreve inúmeros momentos epifânicos de sua personagem Joana. Em um deles, estando ela sentada numa Catedral, são os “sons cheios, trêmulos e puros de um órgão” que subitamente detonam a sensação:

“As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-me dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. E era tão perfeito o momento que eu não temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus”.

E na continuação, Joana / Clarice, plenamente consciente da verdade epifânica, é tomada pelo desejo de cair em si mesma, de transpor o abismo, de desaparecer na cratera.

“Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer instante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda”.

Haveria, assim, um atalho epifânico, uma tal situação ou lugar em que eu pudesse ali me colocar para viver e reviver a experiência vital? Como me pôr em zona de tangência?

Antes de tudo é preciso ter a determinação da cratera. E o afã de se deixar afetar pela vida. Depois é preciso se contaminar de um viver poético: afinar a pele, comover o olhar, a escuta, o paladar. Por fim, não deixar de se expor à grande arte, pois são os artistas os verdadeiros construtores de tangências: suas criações estão impregnadas de perigo e tensão. Por isso tenha coragem. Não tenha medo de se perder na trama ardente de acontecimentos, sentimentos e desejos próprios da arte, ainda que tudo pareça irreal, enevoado, talvez triste, fantasioso, fútil, cruel demais. Enfim, deixe-se possuir pelo entusiasmo do que é humano.

Creio que o “Laboratório de Humanidades” funcione como um desses construtores de tensão: facilitador de “acontecimentos interpelativos”, como diz o Prof. Dante, coordenador do Laboratório, cuja dinâmica de nos colocar em contato íntimo com a literatura clássica nos atira sem dó em zona privilegiada. Basta notar que agora estamos tentando entender a estranha vida de Joana. Ela é mesmo uma víbora? É chata? Amarga? Ou é uma mulher intensa e corajosa, determinada a estar sempre presente à vida que pulsa? Vejam que foi Joana e seu coração selvagem que despertou em mim toda a epifania desse texto. Preciso dizer mais alguma coisa: virei Clarice Lispector!

Antes de encerrar, uma questão derradeira: o simples colocar-se em tangência é garantia de revelações epifânicas? Frequentar tal zona de tensão é dar como certo o milagre epifânico da criação? É saber dos mistérios? Creio que não, já que tudo o que é humano é incerto. E citando Joana, indago: “Depois de ser feliz o que acontece?”. “Ser feliz é para conseguir o quê?”. Coisas de Clarice... Mas volto para tentar responder. Por enquanto voltemos como Empédocles à beira da cratera e do mistério.

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
(Fernando Pessoa)



NOTAS:

1. EMPÉDOCLES (495/490 - 435/430 aC) foi filósofo grego, médico, legislador, professor, místico e profeta. Sustentava a ideia de que o mundo seria constituído por quatro princípios: água, ar, fogo e terra. Tudo seria uma determinada mistura desses quatro elementos, em maior ou menor grau. Para Empédocles, duas forças fundamentais eram responsáveis pela manutenção do universo: O AMOR que unia os elementos (raízes) e o ÓDIO que os separava. Cedo virou figura legendária: ele mesmo se atribuía poderes mágicos. Conta a lenda que Empédocles teria se atirado na cratera do Etna, para provar que era um deus.

2. Fernando Pessoa e seu poema “O Mistério do Mundo”.

3. Rafael Ruiz é um dos dois coordenadores do Laboratório de Humanidades.

4. Palavras de Jorge Luis Borges.

5. Leiris, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

6. Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


POEMAS EPIFÂNICOS

O MISTÉRIO DO MUNDO
(Fernando Pessoa)

Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó dor, aonde me irei?
[...]
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
[...]
O abstrato Ser [em sua] abstrata ideia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério – Face a face...


EPIFANIA
(Adélia Prado)


Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
‘Assim também, Deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
‘O café está pronto’.
Ai, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.


ALÉM-DEUS
(Fernando Pessoa)


I. Abismo

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo em redor –
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.






terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Mal-Estar da Minha Pós-Modernidade

Seu nome reverbera em mim sensações primevas. Som que ecoa em chiados de memória, microfonia, e o tom de protesto nos anos 60: E Viva Cacilda Becker!, gritou Caetano Veloso no Tuca. Mas Cacilda, surpreendida, nada entendeu.

Bem mais tarde, já nos 90, das paredes em preto e branco do Centro Cultura São Paulo, vejo em exposição a figura enigmática dessa mulher de aura mítica, cuja imagem ainda flutua nebulosa em nosso imaginário: afinal quem foi Cacilda Becker?

Em 2002 li “Fúria Santa”, uma biografia da atriz que morreu há exatamente 40 anos após sofrer derrame cerebral, no palco, enquanto encenava “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Da infância miserável em São Paulo ao estrelato: foram mais de 80 peças, dezenas de teleteatros ao vivo, alguns poucos filmes e novelas, e a grandeza de uma mulher de voz pequena e anasalada, magra, muito magra, mas que mesmo assim dominava a platéia de forma irresistível. “O que é preciso deixar claro para a geração de hoje é que Cacilda não ficou grande depois que morreu, como acontece com a maioria dos mitos. Já era um mito em vida”, ouvi de Boris Casoy, nas páginas do livro.

Por isso recomendo “Fúria Santa” aos amigos. E por que não recomendaria? Sim, recomendo, ainda que confesse meu grande mal-estar: numa espécie de esgotamento disfarçado, eu seguia encantado e sofria escondido. Sofri, juro que sofri bem devagarzinho. Abandonei a leitura antes do capítulo final porque tudo aquilo era demais para mim. Ler a morte de Cacilda era como ver morrer em mim toda esperança de uma vida significativa. Cacilda era fascinante. Insuportável.

Tanta certeza. Tanto significado. Cacilda sabia e sempre soube. Cacilda era. Não havia dúvida naquela mulher, de pura vocação. Sem meias palavras, fiquei com INVEJA de Cacilda Becker. E passei a viver em crise, uma crise de sentido: eu haveria de alcançar a existência dos não-medíocres, dos bem-sucedidos, essa tal inclinação que a tudo torna significativo e transbordante.

De início fiquei paralisado no sentimento, que eu ainda não reconhecia como tal. Era uma ânsia, uma mera insatisfação, uma vontade. Sobrevieram questões típicas como “o que fazer”, “por que eu, afinal”, “ah, a felicidade...”. Depois o aforismo de Nietzsche, “Quem tem por que viver aguenta quase todo como”. E, então, uma sedutora determinação de procura, e as tangências do encontro.

Não foi, portanto, a INVEJA que me salvou?

A religião já se me tornara nostálgica demais. A metafísica e a transcendência, por não se deitarem nesse mundo, de pouco me serviriam. E o que seria afinal o mal-estar da pós-modernidade? Pressenti aí a salvação: eu precisava compreender o contemporâneo para nele me incluir.

Fui didático. Puxei e prendi a corda do tempo na Antiguidade. De comentador em comentador, um pouco de Sócrates, Epicuro, Sêneca. Afrouxando, Montaigne, Schopenhauer, Nietzsche. O iluminismo, o progresso, a perfectibilidade. Por fim, Zygmunt Bauman e a “Modernidade Líquida”. Seria “tomar o paraíso de um só golpe” percorrer agora toda essa aventura, e ainda por cima me detalhar nos males da contemporaneidade. Além do que, sendo exatamente esse é o sabor do blog: “o gosto do infinito”, certamente muito desses pratos serão servidos aqui.

Mas além de Cacilda, o fermento do meu bolo de chocolate, outras especiarias realçaram o sabor: Alice, o gato, e Osho.

Foi o gato de “Alice no País das Maravilhas” que me alertou para o óbvio: “para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve”. Serviu de ajuste de foco. Também é do livro de Lewis Carroll a passagem redentora:

“Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso”.

Vejo tanta correria, tanta competição, tanto estresse. E o perigo que ronda: estar ultrapassado; ser descartado. O que resta senão correr desesperadamente em busca do sucesso? No entanto, apesar do esforço sobre-humano para vencer, poucos são os que de fato saem do lugar. Foi assim que deixei de me sentir o perdedor, aquele que está sempre girando em torno da roda, mas que de fato nunca se vê inserido nela. Fui absolvido. A ciranda que girasse sozinha. Eu teria agora uma vida absolutamente comum.

Naturalmente muitos devem dizer que esse meu aparente desprezo pelo sucesso é sintomático do meu fracasso, das minhas covardias, e, principalmente, da minha falta de talento em geral. Sob um certo olhar, sim, já que sou humano. Mas sob um olhar mais generoso, não significa desprezo, nem fuga, mas senso de realidade e inteligência para perceber outras possibilidades de felicidade e realização que necessariamente não passem pela visibilidade e mensurabilidade da vida.

E aqui necessariamente chego às palavras de Osho:

A sociedade dá às pessoas, de muitas maneiras, a sensação de que elas são “extraordinárias”. Por isso é muito difícil não encontrar uma pessoa que, lá no fundo, não acredite que é especial, o filho único de Deus.

A pessoa comum é a pessoa natural. A natureza não produz pessoas especiais. Ela produz pessoas únicas, mas não especiais. Todo mundo é único à sua própria maneira.

Ser comum é a coisa mais extraordinária deste mundo. Basta olhar para você. Dói muito, é doloroso aceitar que você não é extraordinário. Então observe o que acontece quando você aceita a ideia de que é comum. Um grande peso sai dos seus ombros. De repente, você está num espaço aberto, natural, simplesmente do jeito que você é.

As pessoas são únicas, incomparáveis. Elas não podem ser comparadas, então como você pode dizer quem é inferior e quem é superior? A margarida é inferior à rosa? Como você vai decidir? Elas são únicas em sua individualidade. Toda a existência só produz pessoas únicas; ela não acredita em cópias.

Eu defendo a unicidade do ser humano. Sim, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser ela mesma. Em outras palavras, toda pessoa deve ter a mesma oportunidade de ser desigual, de ser única.

E foi assim, na crise da minha pós-modernidade, justamente quando me compreendi singular e pessoa comum, que o infinito em mim estremeceu e o horizonte gritou: viva a rotina, vida Adélia Prado. Mas essa é uma outra longa história.


E Viva Cacilda Becker: sobre o grito de Caetano Veloso

Em setembro de 1968, em tempos de ditadura militar, justamente quando Cacilda Becker era excluída da TV Bandeirantes por pressão da Censura Federal, ocorria a fase nacional do III FIC - Festival Internacional da Canção, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo.

Nos festivais de música, a arma de combate era a “festivaia”, uma vaia ensurdecedora acompanhada de tomates, ovos e qualquer outro objeto à mão. No dia 28 de setembro, o alvo era Caetano Veloso, que se apresentava na fase semifinal com a marchinha pop “É Proibido Proibir”. O uso de guitarra, símbolo do imperialismo ianque e a letra de sabor anarquista soaram acintosos para a plateia estudantil presente. Caetano estava consciente da provocação que fazia ao entrar no palco. Não conseguiu ultrapassar os primeiros versos: o público, em delírio, vaiou furiosamente. Caetano revidou: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada... Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais a quem? Àqueles que foram ao “Roda-Viva” e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles; vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker, viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse viva aqui; não tem nada a ver com vocês”.

Caetano não tinha qualquer relação – pessoal ou profissional – com Cacilda. Seu brado em favor da atriz, por conta das perseguições que ela vinha sofrendo da Censura, surgiu de maneira que nem mesmo ele explica exatamente por quê: “Só vi Cacilda atuando uma vez. Foi em “Quem tem Medo de Virgínia Woolf?”, em 1965 ou 1966. [...] Eu sei que dizer aquilo era uma homenagem. Eu não achava que fosse ter maiores repercussões. Talvez dizer aquilo desnorteasse as pessoas que estavam lá”, afirma Caetano.



Livros citados:
Prado, Luis André. Cacilda Becker: Fúria Santa. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

Osho. O Livro da Sua Vida: crie seu próprio caminho para a liberdade. São Paulo: Cultrix, 2007.

Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Laboratório de Humanidades

Nietzsche escreveu que nenhuma ideia seria suficientemente confiável se não concebida durante longa caminhada. É que o filósofo romântico prezava o vigor, a potência, embora ele mesmo tivesse uma saúde frágil. E dizem que Nietzsche admirou, até o fim, Montaigne e Goethe, grandes sensuais que não temiam o pecado. Ele desprezava a covardia, sobretudo as morais.

E eu, também um caminhante, dou créditos a Nietzsche: sofro de inspirações justamente quando percorro, a pé, longos trajetos. Mas é especialmente na sexta-feira, dia do Laboratório de Humanidades, que meus pensamentos mais agudos tocam “a ponta afiada do infinito” e dançam alegremente com os “seres moventes do céu”, nas imagens do poeta Baudelaire, eterno inspirador desse blog.

Enfim, desses encontros semanais saio profundamente afetado. O Laboratório de Humanidades é um lugar privilegiado dentro da Universidade, onde nos reunimos semanalmente para discutir, em grupo, clássicos da literatura. Recentemente fui criminoso, matei o rei, usurpei seu trono. Também invoquei a maldade, mudei de sexo, enlouqueci. Mas antes lutei contra as forças do mal, fui um mocinho bom e justo. E agora me preparo para viver uma mulher intensa, perplexa diante de si e da vida. Assim, de Tolkien a Clarice Lispector, passando por Shakespeare, inaugurei minha participação no LabHum, como carinhosamente chamamos essa experiência de humanização.

Humanizar, na concepção do Prof. Dante Gallian, coordenador do LabHum, não é uma questão de verniz, de cobertura de bolo. “Antes é preciso mexer na massa, alterar seus ingredientes”. Não se trata, portanto, de disfarce, de ajuste, mas de comprometimento e vontade.

Mas qual o sentido de “humanizar” o próprio homem? Estaríamos nós, os homens, nos tornando menos humanos? O fato é que nos dias de hoje o termo desumanização nem causa estranheza e frequentemente nos deparamos com os tais “projetos de humanização”, sobretudo em setores da sociedade que lidam com o homem em sua dimensão mais frágil, ou seja, mais humana, tais como hospitais, empresas de convênio médico e afins.

Aprendi com o Prof. Dante que esses “projetos” são na verdade meras tentativas de se amenizar os efeitos colaterais, as distorções causadas pela Modernidade que tenta excluir do homem o transcendente, o não controlável, o não dominável, o não utilizável, tudo em nome da razão que deve estar a serviço do progresso incessante, embasada numa visão puramente cientificista e tecnológica de que somos seres perfectíveis, ajustáveis, programáveis tal qual uma máquina deve ser.

Mas como homem é homem e não máquina, não somos passível de treinamento. Tampouco ficamos mais felizes, ou conformados, seguindo manuais de instrução. Nesse sentido o LabHum é quase terapêutico já que propõe mudanças na estrutura do homem impulsionadas pelo poder que tem a literatura de afetar e ampliar nossa perspectiva existencial.

Nas palavras de Rozélia, labhuniana como eu, o Laboratório de Humanidades é como o “muro de Berlim que se abre entre nós e o mundo”. “É um espaço para falar e ouvir”. É claro que ninguém fala nada de muito íntimo e o foco sempre é a obra literária, mas há o movimento de se perceber no grupo e no outro, de negar e reconhecer certos aspectos da personalidade que se encontrava adormecido. Então, ao mesmo tempo em que é uma experiência altamente intelectual é também uma vivência de reflexão subjetiva, de autoconhecimento, pois ao me envolver, e opinar sobre os personagens, sinto-me exposto na própria carne. Por fim, o que me resta senão elaborar esses sentimentos em mim? O aprendizado que se dá não é apenas intelectual, mas, sobretudo, humano.

Nas palavras do Prof. Dante, no blog do LabHum:

Explorar e aprofundar a experiência afetiva que se produz ao nos depararmos com uma obra literária, é o objetivo primevo do Laboratório de Humanidades, pois sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização. Por isso, antes de adentrarmos em discussões filosóficas, sociológicas ou históricas mais profundas – que não apenas são desejáveis, mas inevitáveis – incentiva-se, antes de tudo, a manifestação e compartilhamento das sensações, das emoções. Tal dinâmica não apenas amplia a própria experiência da leitura individual do sujeito, como abre novas possibilidades de leitura para os outros que o escutam. Começa a experiência da “ampliação da esfera do ser”, como bem coloca Teixeira Coelho em seu ensaio sobre “A Cultura como Experiência”.

[...] Por fim, percebe-se o impacto de toda esta experiência humanística quando, após um certo tempo de participação no Laboratório, começa a se verificar como esta “ampliação da esfera do ser” passa a interferir na prática profissional e na vida como um todo, realidade aferida por não poucos colaboradores desta atividade. O processo, afetivo e intelectivo, detonado pela experiência da leitura e desenvolvido pela dinâmica do compartilhamento e discussão coletiva, completa-se na esfera volitiva, desencadeando mudanças de visão e atitudes; mudanças estas próprias de um movimento de “ampliação”, enfim de humanização.

E foi na “ampliação da esfera do ser” que surgiu essa necessidade de me denunciar publicamente. “Escrever é um ato obsceno”, digitei para minha amiga Eliana quando lhe contei sobre “O Gosto do Infinito”. Mas sei que não é só isso: os desdobramentos dessa experiência certamente serão muitos, a começar pelo infinito DESEJO DE CAIR!

E com esse aparente absurdo encerro, na promessa de voltar a escrever sobre essa idéia tão maluca quanto genial de Maurice Blanchot, ensaísta francês.


O Laboratório de Humanidades (LabHum) é uma atividade extra-curricular e também uma disciplina na pós-graduação, oferecida pelo Centro de Historia e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (CeHFi - UNIFESP - EPM).

Site: http://www.unifesp.br/centros/cehfi/labhum.htm
Blog: http://www.labhum.blogspot.com/

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Canto da Sereia


Um dia, ainda na faculdade, uma amiga me emprestou “A Paixão Segundo GH” citando, segundo ela, a própria Clarice Lispector: “este é um livro para pessoas de alma formada”. “E é tão, tão difícil”, acrescentou. Minha alma já mirrada ficou apreensiva. Peguei o livro hesitante, com a frouxa determinação de chegar até o final, e não cheguei.

Resignado, fui obrigado a devolvê-lo confessando minha total inexperiência e, sobretudo, minha alma malformada, meu raquitismo existencial. Fui então aconselhado a comprar o livro e deixá-lo no meu quarto sempre à vista, na expectativa de um dia, por milagre, engolir a barata até a última substância, conquistando, assim, um lugar aos céus no paraíso das pessoas que “entendiam”.

Depois, já passando bem dos 30, numa nova tentativa, mas com a mesma vaidade, amarguei novamente o fracassado.
Engano total. Hoje sei que a questão é exatamente não entender. Não entender nada, pelo menos no sentido convencional, ou seja: analisar, esquematizar, classificar, explicar, reduzir a uma moral, a um sentido lógico qualquer. Tem sido uma libertação.

Nesta semana li na Revista da Cultura uma entrevista com o biográfo da Clarice, Benjamim Moser, que concluiu, depois de analisar os sofrimentos da escritora e suas “brigas” com Deus, o seguinte:

“Em ‘A Paixão segundo G.H.’, por exemplo, [Clarice] está querendo se reunir a esse Deus que acha horroroso. O símbolo de Deus é a matéria da barata”.

Tudo bem, eu sei que a biografia da Clarice é primorosa e eu não menosprezo nem questiono tal conclusão, muito pelo contrário, mesmo porque, na maioria das vezes, tudo o que se quer é alguém que nos ajude a desatar os pensamentos. Mas não posso deixar de manifestar aqui minha alegria quando prescindo de tais facilidades, já que o grande impacto do livro, e de tantas outras obras semelhantes, é exatamente fazer o leitor entregar-se ao mistério, ao abismo que se abre.

Como as mitológicas sereias, mulheres-peixe cujo canto doce atrairiam os tripulantes dos navios para colidirem com os rochedos e afundarem em regiões abissais, a palavra em Clarice é voragem, é o próprio abismo, a tormenta que nos arrasta às profundezas, à perplexidade diante de si, diante da vida.

Ler Clarice é entrar numa espécie de devaneio, é colocar-se numa outra ordenação que não a da vida prática, mas no domínio do informe, do não conhecido, da suspensão de significado, de um território que se aproxima da morte. Por isso, para enfrentar a sereia e sucumbir ao seu canto sedutor, é preciso coragem, sem a qual a cratera onde mora o verdadeiro entendimento jamais se abrirá.

E quem, em sã consciência, se lançaria ao abismo? Não sei, só sei que a palavra, em Clarice, é o canto da sereia.


O que Clarice de verdade escreveu sobre a “alma formada”:
A Possíveis Leitores
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C.L.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Apelo da Alma: Epiteto

Filosofia virou exemplo de reflexões abstratas e textos herméticos. No livro “Novas Vitaminas Filosófica”, Theo Roos a descreve, não a Filosofia em si, mas esta tal qual a compreendemos hoje, como “disciplina aparentemente analítica, conceitual, acadêmica, geralmente abstrata e autoreferente, com pouco ou nada a dizer sobre o mundo real, prático, cotidiano”. “Especular em vez de existir”, esse é o comentário do filósofo dinamarquês Soren Kiekegaar (1813 - 1856) sobre tal concepção da Filosofia.

No entanto, na antiguidade clássica, filosofia e prática eram indissociáveis, pois o conhecimento estava necessariamente ligado à ascese, ou seja, ao exercitar-se. Entendia-se, portanto, que a “arte de viver bem” é uma prática ou um “cuidado de si mesmo”. Mas o que seria esse “cuidar” de “si mesmo”? Na concepção de Sócrates seria o “conhece-te a ti mesmo”, o ocupar-se da própria alma.

Para Epíteto, ex-escravo romano e filósofo estóico que nasceu por volta de 55 d.C, “a principal tarefa da filosofia é responder ao apelo da alma. É procurar compreender o sentido de nossas dores e medos e, assim, nos libertar da sua influência”. Epíteto acreditava que a meta principal da filosofia era ajudar as pessoas comuns a enfrentar positivamente os desafios do cotidiano e a lidar com as inevitáveis perdas, decepções e mágoas da vida.

“Quando a alma grita seu apelo”, disse Epíteto, “é sinal de que chegamos a um estágio necessário e maduro de reflexão sobre nós mesmos. O segredo é não ficar bloqueado nesse ponto, perturbado, torcendo as mãos, mas ir em frente decidido a curar a própria vida. O que a filosofia nos pede é uma opção pela coragem. Seu remédio é expor, sem hesitar, inflexível e obstinadamente, as premissas falsas e enganadoras nas quais baseamos nossas vidas e nossa identidade”.

Então, seria a Filosofia uma espécie refinada de autoajuda?

Se for, pouco importa. Mas na tentativa de elucidar a questão, não vou falar por mim mesmo, vou continuar citando o mestre estóico com um recorte do seu texto intitulado “O verdadeiro propósito da Filosofia”. Viva Epiteto!

O propósito da filosofia é iluminar os caminhos da alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignas de nós. O principal antídoto a tudo isso é um autoexame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria também pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.

A habilidade no uso da lógica e do debate e o desenvolvimento da capacidade de definir as coisas com seus nomes certos são alguns instrumentos que a filosofia nos oferece para alcançar a clareza de visão e a tranquilidade interior que constituem a felicidade verdadeira.

Essa felicidade, que é nossa meta, deve ser corretamente entendida. A felicidade costuma ser confundida com prazer ou lazer experimentados passivamente. Este conceito de felicidade só é bom até certo ponto. O único e precioso objetivo de todos os nossos esforços é uma vida em expansão no caminho da plenitude.

A verdadeira felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. A vida em expansão, cuja base é a intenção de buscar a virtude, é algo que improvisamos continuamente, que construímos a cada momento. Ao fazê-lo, nossa alma amadurece. Nossa vida tem utilidade para nós mesmos e para as pessoas que tocamos.


Citei aqui dois livros que li recentemente e que foram muito importantes pra mim no entendimento que tenho hoje sobre Filosofia. São eles:

Ross, Theo. Novas Vitaminas Filosóficas: receitas para uma boa vida. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

Epíteto. A arte de viver: uma nova interpretação de Sharon Lebell. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Concepção Ensaística da Vida

Depois de uma aula morna, durante o blecaute, na cama, à luz de uma lanterna, reli as primeiras estrofes de ”O Corvo” de Edgar Allan Poe. Sem nenhuma intenção tétrica, já que por uma infernal coincidência a aula fora exatamente sobre o poema, ao contrário do que se possa deduzir dos contos de horror, nada aconteceu. E acabei por me entregar à escuridão depois de sorver a elegante prosa poética de Baudelaire.

Mas hoje, à luz do dia, espremido no metrô, e com os versos insistentes à mão, respirei fundo, procurei me abandonar, ativando os olhos e os ouvidos de dentro, declamei em silêncio:

Numa meia-noite cava, quando, exausto, eu meditava
Nuns estranhos, velhos livros de doutrinas ancestrais
E já quase adormecia, percebi que alguém batia
Num soar que mal se ouvia, leve e lento, em meus portais.
Disse a mim: “É um visitante que ora bate em meus umbrais -
É só isto, e nada mais”.


Atentando ao ritmo, à cadência, segui pela segunda, terceira, quarta estrofe. E meu coração ACELEROU. ACELEROU. Na quinta estrofe precisei voltar do INFINITO, das zonas ancestrais, do hiato entre o pensamento e a palavra, do lugar sem nome onde o homem “tangencia o mundo e a si mesmo”. Não tive coragem de continuar, ali, a declamação surda. Apenas disse: “O instante poético é solitário, é íntimo. E isto é tudo, e nada mais”.

Bem, eu só queria entender por que uma exposição muitas vezes correta, planejada, cujo professor é profundo conhecedor do tema e tem todos os requisitos básicos e necessários, não consegue transmitir “essencialidades”, sobretudo as poéticas?

A resposta talvez esteja na “concepção ensaística da vida”, ou seja, o problema não é de conteúdo e competência, mas de uma abordagem ao tema que tente sensibilizar e transmitir o “intransmitível”: o conhecimento que não se ensina, a sensação que não se pode fazer sentir, a experiência singular que não se pode reproduzir no outro.

“Três Ensaístas Franceses: Baudelaire”. É um curso na Casa das Rosas. Até três quartos da aula eu estava irritado. Nada de fato acontecia, o poeta passava longe, voltas e mais voltas, somente. No final uma pequena redenção. Na segunda aula fomos recebidos a todo volume, uma música dissonante, alta, e o barulho da Paulista tornava sofrível acompanhar o que o professor, Roberto Alves, balbuciava. No terceiro encontro, intencionalmente ou não, a iluminação principal da sala se apagava e, na semiescuridão, o professor tentava prosseguir na leitura. A luz ia e vinha, e assim ficou até o final. Enfim, percebi que tudo tinha um porquê, mesmo o não deliberadamente planejado: o intento do Mestre era esclarecer a questão da aproximação ao tema, tão essencial quando se trata do gênero estudado,

Também percebemos que no Ensaio há, por natureza, camadas de significação, que as leituras do texto podem privilegiar uma ou outra camada, que a função poética e abordagens não convencionais constituem formas de construção e transmissão de conhecimento.

Com tudo isso, e nada mais, retomando o Corvo, e imediatamente saltando a Baudelaire, que por sua vez encontrou em Poe uma grande influência, estou apaixonado pelo gênero de escritura que é o Ensaio, sobretudo os que estou lendo agora, os do Poeta francês. Mas, na verdade, tudo o que disse até aqui foi para anunciar: “mudei minha concepção de vida, serei ENSAÍSTICO”. Que Dramático, diriam!

Por que ser tão certinho? Por que ser tão sistemático, recheado de começo, meio e fim? Por que não começar pelas beiradas, girar em torno dela, apenas? Por que essa necessidade de a tudo reduzir, concluir, significar?

Agora me permito ler poemas, romances, assistir a filmes, contemplar objetos de arte, conversar, e não entender absolutamente nada. Confio que algum sentido penetrou em mim, que a arte e a poesia fizeram o seu papel, que pelo menos um sentimento daquilo tudo sobreviverá! É uma lição que trago para vida: suspender os significados, abandonar a intencionalidade, e fruir.

Não ensaísticamente, conclui.

Me contradigo?
Tudo bem, então.... me contradigo;
Sou vasto.... contenho multidões.
(Walt Whitman)


Paul Valéry, Michel Leiris, Maurice Blanchot: os três ensaístas franceses. Roberto Alves, o Mestre da Casas das Rosas. Baudelaire e Poe, os Poetas. A todos, obrigado!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Tragédia, o Bode, e Macbeth


No “Laboratório de Humanidades” estamos terminando o ciclo Macbeth. Depois da trilogia “O Senhor dos Anéis” veio Shakespeare a me reconciliar com a concepção trágica da vida. Tragédia vem do grego “tragos” e significa bode, ou seja, viver a tragédia é estar no lugar do bode a caminho do sacrifício: o homem sem autonomia e que luta eternamente contra o destino, consciente de sua derrocada final.

Fatalista, pessimista, concepção trágica demais? Talvez. Mas, embora na vida diária seja importante acreditar que de algum modo venceremos no final, é também humanamente necessário que aceitemos nossas limitações, que encaremos o fato de que pouco na vida realmente está sob nosso controle, que viver é mesmo estar em contato permanente com essa fragilidade que somos. Então, ao contrário de cair no desencanto, encarar a tragédia na vida real ou por meio dos heróis das obras da literatura clássica, traz a ideia de que vale a pena continuar lutando contra o destino, de que essa luta por si só é a vida, e de que é pelos vitoriosos embates cotidianos que nos percebemos corajosos e aptos a enfrentar a vida com dignidade. A morte virá, é certo, mas até lá muito som e muita fúria agitará nossa sombra ambulante.

Agora falando de Macbeth, foi uma catarse. Li de uma tacada só. Ao terminar, após longa caminhada, tive anseios de escrever e teclei com toda lucidez. Veja o que escrevi, exatamente, no momento catártico:

Como o mago Gandalf, que para se tornar o cavaleiro branco precisou passar pelos abismos de fogo e pela escuridão das águas profundas, mergulhar em Macbeth e no seu reino de ambição, intriga, superstição e assassinatos também me iluminou. Foi por Macbeth que redescobri a miséria da escuridão. Foi por Macbeth que, paradoxalmente, me veio à luz essa compreensão: um mergulho nas profundezas mais vis revigoraria meu espírito a me revelar a vida real, diferente de um croqui cinza riscado sobre o papel, mas vida que é perspectiva e sombra, cor e volume.

Meio que por superstição fiquei habituado a uma leitura solar. Nada de pessimismo, desamparo e miséria. Tudo deveria afirmar. Nada remeter ao tormento, à dúvida, ao ressentimento. Milagrosamente tudo deveria me salvar do terror da finitude, do tempo que se acaba, da fraqueza. Hoje finalmente me libertei: vou com Macbeth e Rimbaud passar uma temporada no inferno.

Finalmente vejo o quanto essa minha negação do lado visceral e tenebroso da humanidade foi capaz de me desumanizar. Mesmo sem saber, de repente agi como Macbeth ao acreditar em vaticínios de bruxas e maus espíritos. É como se a maldição sobreviesse a mim se com a maldição eu tratasse, ainda que por meios solares, como a arte e a literatura. Passei então à covardia e ao receio de me ver outra vez rendido ao desencanto existencial que um dia tomou conta de mim quando li “A Náusea”, de Sartre.

Quanto a Sartre e os meus 20 anos, contarei depois essa louca iniciação. Também desvendarei o Laboratório de Humanidades.